Ao disciplinar a chamada "Doutrina da Proteção Integral", o Estatuto da Criança e do Adolescente estabeleceu um parâmetro ideológico para o processamento (judicial ou não) de questões afeitas à juventude e à infância.
No que se refere ao processo judicial, deixou de bastar a mera resolução da lide posta em juízo. A prestação jurisdicional exigível do Estado não se reveste exclusivamente de caráter formal, como se costumava interpretar à luz do princípio da demanda.
Em procedimentos, digamos, comuns, o Estado terá por cumprida a sua função com o esgotamento da atividade jurisdicional, através da extinção do processo, ainda que sem julgamento de mérito (tanto em demandas cíveis como criminais).
Entretanto, em se tratando de temas afeitos à jurisdição protetiva, entende-se ser exigível ao Estado-Juiz que ofereça tutela integral aos interesses dos incapazes. É claro que, limitado à sua posição naturalmente inerte, somente poderá o Poder Judiciário fazê-lo na medida da provocação externa que receber.
Esta iniciativa corresponde, na ordinariedade das vezes, ao espaço político-jurídico ocupado pelo Ministério Público, titular da defesa dos interesses transindividuais e daqueles indisponíveis. Há, portanto, previsão estrutural para a veiculação de tais demandas.
Nesse prisma, e dando matizes processuais ao estudo, pode-se concluir que o legislador brasileiro, ao edificar o Estatuto da Criança e do Adolescente, fez claro o preceito de que, em matéria protetiva, o princípio da demanda, e a prestação jurisdicional exigível do Estado, alcançam a relação jurídica de direito material, de maneira que a resolução da lide não se perfectibiliza com a extinção do processo, mas sim com a resolução do conflito de caráter material, ocorrido no plano dos fatos.
Esta afirmação, que pode causar objeção em primeiro momento, tem respaldo na sistemática estabelecida em lei para a tutela da incapacidade civil.
O art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente impõe garantia integral e preferencial a toda a sorte de prerrogativas que atribui aos jovens. A rigor, não faz mais que ordenar a preferência de tais direitos, muitos deles naturais e/ou de caráter fundamental, em qualquer situação de conflito ou oposição a interesses diversos.
É difícil conceber uma situação de litígio que envolva um incapaz na qual não se façam ameaçados quaisquer dos direitos acima indicados.
Seja na condição de infrator, vítima ou titular de interesses contrariados, toda a vez em que figurar uma criança ou um adolescente em qualquer dos pólos de uma demanda judicializada, dever-se-á observar a obrigação de proteção integral, com o consectário processual anteriormente definido, qual seja, a extensão do princípio da demanda à relação jurídica de direito material.
Portanto, pode-se dizer que as premissas utilizadas neste trabalho encontram aprovação no texto legal e no sistema de princípios do devido processo legal.
Resta, assim, verificar a existência de recursos jurídicos aptos a respaldar semelhante proposta, ou seja, de mecanismos suficientes para a efetivação do compromisso estatal com o fundamento material da doutrina de proteção.
Neste momento, convém esclarecer que o presente estudo não tem a pretensão de esgotar a avaliação desses mecanismos, até porque isso seria tarefa por demais extensa e suscetível de falhas, dada a complexidade do tema. Procura-se, isto sim, definir quais os momentos em que o sistema de proteção deve compreender recursos diferenciados, a partir de situações freqüentes de periclitação ou violação efetiva dos direitos em tese intocáveis.
Por exemplo, tomem-se os casos de violência doméstica, configurados juridicamente sob enorme variedade de tipos penais.
É alarmantemente comum a ocorrência de crimes de maus-tratos, lesões corporais, abandono material e intelectual e, sobretudo, crimes contra os costumes em prejuízo de vítimas incapazes. Tais fatos, na amostragem em que são descobertos, recebem tratamento penal mais ou menos rigoroso, na medida das penas abstratamente cominadas e do procedimento judicial legalmente estabelecido.
A saber, as lesões corporais e os maus-tratos são tidos como "infrações penais de menor potencial ofensivo", e não raro acabam determinando transação penal. Os delitos de abandono, via de regra, permitem suspensão condicional do processo, estabelecendo diferenciado nível de efetividade da atuação repressiva do estado. Por sua vez, os estupros e atentados violentos ao pudor são tidos como crimes hediondos (Lei n. 8.072/90), e dão ensejo à aplicação de penas carcerárias executáveis em regime integralmente fechado.
Assim, o questionamento a ser feito é se, de fato, os procedimentos acima resumidos contêm a potencialidade de cumprirem a demanda exigível, qual seja, a proteção integral aos interesses violados no mundo dos fatos.
Pergunta-se, por exemplo, se a condenação de um estuprador importa em proteção integral aos interesses da vítima incapaz. Ou se o cumprimento de transação penal restitui o status quo anterior ao cometimento de maus-tratos.
A resposta necessariamente transita pela percepção de que a Justiça Criminal não tem alcance suficiente para tanto, pois seu compromisso é com o aspecto social do fato delituoso, pois só é crime aquilo que atenta contra o interesse público da incolumidade das esferas jurídicas. Por isso, há previsão de medidas de proteção específicas e genéricas na legislação extrapenal.
Além disso, há mecanismos paralelos que se associam aos mecanismos de efetivação da proteção integral.
O legislador, sabiamente, estruturou o procedimento criminal sumaríssimo sobre a influência da vítima. Com razoável segurança, pode-se dizer que, pela primeira vez, o processo penal deu maior atenção à vítima do que ao delinqüente.
Ao largo das críticas que podem ser feitas ao procedimento implantado pela Lei n. 9.099/95 (muitas delas procedentes, porém estranhas ao tema deste estudo), é possível dizer que, nos crimes que define, o ofendido tem maiores chances de ver reparada a violação material dos seus direitos. Não fosse pela possibilidade de composição civil, ou pela flexibilidade da transação penal, a exigência de representação importa em largo avanço.
Nos casos que ora se analisam, derivados dos fenômenos de violência doméstica, o mais das vezes compreende agressões praticadas pelos pais contra seus filhos incapazes. Havendo flagrante conflito de interesses, o direito de representação deverá ser cumprido por curador especial, nomeado pelo juízo.
Pois a presença de tal curador é a brecha por onde podem luzir os interesses efetivamente merecedores de tutela, sejam eles afeitos ao caráter formal do litígio, ou mesmo derivados da relação jurídica de direito material. Ao representar, o curador poderá, ainda, requerer o direcionamento do tema à via protetiva, através de postulação específica, ou simplesmente por remessa ao conhecimento ministerial, uma vez que, em muitas Comarcas, o agente encarregado da ação penal não coincide com o titular da legitimidade protetiva.
A rigor, é dever do Promotor de Justiça, e também do Juiz de Direito, encaminhar ao órgão ministerial que detenha tal atribuição os casos em que detecte potencial necessidade de tutela protetiva. O cumprimento dessa obrigação poderia minimizar o risco de omissão em procedimentos que não demandem curadoria especial, sobretudo aqueles em que se processam crimes hediondos.
De toda forma, percebe-se que o cumprimento da proteção integral efetiva, e, por conseqüência, da prestação jurisdicional plena, dificilmente irá ocorrer em processamento isolado, ou mesmo sob exclusiva acepção jurídica. Da mesma forma como o processo criminal não recompõe a relação jurídica de direito material violada, a judicialização extrapenal não detém a condão de responder ao interesse público de origem constitucional.
Junte-se a isso a tendência, a todo momento crescente, de exclusão da legitimidade ministerial para a propositura de medidas de proteção destinadas ao restabelecimento de vínculos familiares, sobretudo nos municípios que contem com Conselho Tutelar e Assistência Social atuantes.
D’outra banda, mais visível insuficiência existe no tratamento do adolescente infrator. Quanto a este, não se pode negar o défice de atendimento aos interesses tutelados pela lei, uma vez que, sintomaticamente, a medida a ele aplicável detém o conceito de sócio-educativa.
Neste ponto, muito já se disse sobre a necessidade de regulamentação sobre a execução de tais medidas, pois a inexistência de regras próprias acaba dando espaço a procedimentos empíricos, casuístas e, muito pior, assemelhados à execução de penas criminais.
Portanto, com o devido reconhecimento ao aprimoramento constante da prestação sócio-educativa de caráter administrativo, a amostragem forense permite concluir que, nesses casos, a atuação estatal não está dirimindo os conflitos havidos no campo do direito material.
Ainda que seja este seu declarado objetivo, e aí resida apenas défice de eficiência, e não deformação principiológica, é deveras questionável o aproveitamento material das medidas disponíveis.
Como quer que seja, é seguro afirmar que a atuação do Estado na esfera administrativa tem muito maiores chances de êxito, no que diz com a correção das relações de direito material, do que a judicialização de tais fatos, pois a efetividade plena da prestação jurisdicional ainda é proposta mais utópica do que a aplicação direta dos preceitos da proteção integral.
Sem que a reflexão proposta assuma demasiada extensão, pode-se adotar ao menos um par de conseqüências, quais sejam: (1) a prestação jurisdicional do Estado, em matéria de tutela aos direitos de crianças e adolescentes, não pode se resumir ao aspecto formal, devendo ser estendido o conceito de demanda à reposição das violações perceptíveis no mundo dos fatos; e (2) a concretização de tal proposta somente será possível quando o Estado, sob o prisma administrativo, concluir o processo de aperfeiçoamento estrutural necessário à adequada prestação de medidas de proteção e sócio-educativas, sejam elas determinadas diretamente, ou pela via judicial.