SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. A PROVA NO PROCESSO CIVIL. 2.1. Conceito jurídico de prova. 2.2. Evolução histórica. 2.3. Meios de prova. 3. OS SISTEMAS DE AVALIAÇÃO DA PROVA. 3.1. Sistema da prova legal. 3.2. Sistema do livre convencimento. 3.3. Sistema da persuasão racional. 3.4. O sistema brasileiro. 3.5. O sistema português. 4. CONCLUSÕES.
1. INTRODUÇÃO
O tema da prova é um dos mais relevantes e sedutores no âmbito do Direito, especialmente pela sua incontestável influência no sucesso da lide, uma vez que, sem a sua exitosa realização e demonstração, não há como se atingir uma adequada solução para o litígio.
Dessa forma, com a finalidade de realizar uma sucinta comparação entre os meios de prova utilizados nos sistemas adotados por Portugal e pelo Brasil, salientando os princípios utilizados por cada um desses ordenamentos jurídicos, iremos, incialmente, expor de forma breve o conceito e a história da prova como instrumento processual, concluindo com o confronto entre o direito lusitano e o direito brasileiro.
2. A PROVA NO PROCESSO CIVIL
2.1. Conceito jurídico de prova
A palavra prova deriva do latim probatio, que significa verificação, exame, inspeção. Por conseguinte, o verbo provar deriva do verbo probara, que significa demonstrar, examinar, confrontar, verificar, etc, contendo, assim, várias acepções. Logo, podemos definir como prova toda a atividade probatória que contenha elementos produzidos pelas partes ou pelo o juiz, com a finalidade de estabelecer a existência de certos fatos, ou um estado de certeza.
Para Grego Filho, “prova é todo elemento que pode levar o conhecimento de um fato a alguém”.[1]
Já para Plácido Silva:
(....) entende-se prova, no sentido jurídico, a demonstração, que se faz, pelos meios legais, da existência ou veracidade de um ato material ou de um ato jurídico, em virtude da qual se conclui por sua existência ou se firma a certeza a respeito da existência do fato ou do ato demonstrado.[2]
No mesmo sentido, leciona Tourinho Filho que “a palavra prova significa, de ordinário, os elementos produzidos pelas partes ou pelo próprio juiz, visando a estabelecer, dentro do processo, a existência de verificação do thema probandum”.[3]
Por fim, o autor português Fernando Pereira Rodrigues afirma que “a prova é, em enunciação básica, ou por definição meramente gramatical, aquilo que demonstra ou estabelece a verdade de um facto”.[4]
No entanto, a palavra prova, no processo, bem como em outros ramos das ciências, pode assumir diferentes conotações. Tanto o é que possui vários sentidos, tanto na linguagem popular quanto no uso técnico, e dentre eles, o dos juristas. É considerada qualquer evidência de fato que ajude a estabelecer a verdade de algo, ou seja, é todo meio destinado a convencer o juízo, seu destinatário, a respeito da verdade de um fato levado ao conhecimento do juiz-estado. Serve, outrossim, para nomear os elementos fornecidos ao juiz, pela atividade probatória, para que este, com tais elementos, reconstrua mentalmente aqueles fatos relevantes.
Nesse diapasão, o já citado Fernando Pereira Rodrigues, ao fazer uma distinção entre os conceitos de realidade e verdade, expõe que:
(...) a realidade é aquilo que as coisas ou os factos são em si mesmos e a verdade é aquilo que deles sabemos ou tentamos saber. Quando um juiz interroga uma testemunha sobre determinados factos, o que pretende é firmar a sua convicção sobre a verdade do que se passou através da percepção que a testemunha deles teve. É uma realidade relativa, ou parcela da realidade, daquilo que pôde ser captado.[5]
Em suma, a prova é tão importante para o processo que, sem ela, este não poderia subsistir. Sua importância é esclarecer qualquer dúvida sobre um ponto relevante da questão. A avaliação da prova sempre compete ao juiz. A prova se destina a firmar a convicção deste sobre a verdade dos fatos alegados pelas partes em juízo. Pode-se concluir, portanto, que não se busca uma certeza absoluta sobre o fato, mas sim uma certeza relativa que implica o convencimento do juiz.
2.2. Evolução histórica
No Direito Romano, em suas linhas gerais, os julgamentos eram realizados procurando-se aplicar a lei em função dos fatos ocorridos, existindo uma correlação entre prova e civilização.
As provas, neste período, podem ser consideradas tão extraordinariamente desenvolvidas, que é possível dizer que, ainda hoje, aquelas concepções jurídicas não foram superadas. Podemos afirmar que o mais notável no sistema probatório grego, que, por decorrência, herdou o sistema romano, foi a exigência da “critica lógica” e “racional” como princípio para a valorização da prova, sem a necessidade de uma norma ou da utilização de uma tabela de valores, pré-determinada, com a importância desta ou daquela prova.
Os romanos conheceram e nos legaram vários dos meios de prova admitidos no direito moderno, dentre os quais, o depoimento de testemunhas, a confissão, os escritos, o juramento, a perícia e as presunções.
Tudo quanto no processo se alegava devia ser provado. A prova devia ser feita por quem alegava e não por quem negava, não sendo dirigido ao juiz, nem visava a firma-lhe convicção. Era, antes, endereçada ao adversário e recaia sobre a pretensão global do litigante.
Era ao autor que geralmente competia afirmar e, por isso, provar o alegado. Por sua vez, o réu podia repelir as acusações do autor, devendo provar as falsidades dessas afirmativas.
Na impossibilidade ou desnecessidade de demonstrar a verdade dos fatos, que eram irrelevantes para a sentença, a prova constituía no juramento das partes e de seus conjuradores, o que importa dizer na afirmação da justiça ou da injustiça das pretensões formuladas.
A queda da civilização romana, subsequente à derrubada do Império Romano do Ocidente, teve como consequência o surgimento da Idade Média, de declínio profundíssimo, tendo sido talvez, o período em que mais sofreu a racionalidade do direito relativo à matéria probatória. Nessa época, vigoraram os chamados juízes de Deus ou as ordálias, profundamente impregnadas de religiosidades.
A prova, por esse meio, não visava a formar a consciência do juiz respeito da verdade, mas tinha por escopo determinar a culpa ou a inocência do acusado por meio da participação de elementos da natureza e cujo resultado é interpretado como um juízo divino, constituindo-se um meio de prova exclusivamente formal, sem objetividade, no sentido de que não havia uma relação de causa entre os fatos ocorridos e aqueles que se provavam em juízo.
Provas rudes, por vezes mortais, tomaram a denominação de juízos de Deus, por se fundarem no sentimento, ou na convicção de que, a elas submetidos os acusados, ou os litigantes, a divindade não desampararia o inocente, ou o que tivesse bom direito.
Constituíam os juízos de Deus na chamada prova pela sorte, prova pelo fogo, prova pelo veneno, prova pela bebida amarga, prova do pão bento, prova da serpente, prova do cadáver, prova pelo pão e queijo, pela água fervente, pela água fria, prova da cruz, prova da eucaristia.
Com a evolução da teoria das provas, as pessoas passaram a valorizar a prova testemunhal, como ocorreu no Direito Romano. Com a difusão da escrita, passaram os povos a valorizar também a prova literal. Surgiu, assim, o tabelião, tendo funções importantes com os atos lavrados por ele autênticos.
No Direito Brasileiro, passou a vigorar o sistema jurídico vigente em Portugal. A avaliação probatória era espaço concedido às partes para fazerem as suas provas.
No conceito de prova alguns diziam que era de direito privado, outros diziam que era ¨ tudo aquilo apto a convencer.
Entretanto, somente os meios de provas admitidas pelo direito positivo é que são juridicamente aptos a convencerem, com o fim de que o convencimento produza efeito jurídico.
2.3. Meios de prova
A tradução daquilo que venha a ser meio de prova não se confunde com a própria prova. O meio é o caminho, o iter, o instrumento pelo qual se visa chegar à demonstração dos fatos alegados. O próprio Código de Processo Civil brasileiro, no artigo 332, deixa nítida a diferença:
Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa.
O Código Civil de Portugal, outrossim, preconiza em seu artigo 341.º que “as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos”, também caracterizando a prova como resultado da atividade em juízo desenvolvida.
No direito português, destacam-se como meios de prova: a confissão (artigos 352.º/361.º), a prova documental (artigos 362.º/388.º), a prova pericial (artigos 388.º/389.º), a prova por inspeção (artigos 390.º/391º), a prova testemunhal (artigos 392.º/396.º todos do Código Civil). Essa enumeração não é taxativa, pois há outros meios de prova previstos, como a apresentação de coisas móveis ou imóveis, os chamados monumentos, a que alude o artigo 518.º, a decisão estrangeira não revista (artigo 1094.º/2).
Por seu turno, o Código de Processo Civil brasileiro elenca como meios de prova: o depoimento pessoal (artigos 342/347), a exibição de documentos ou coisa (artigos 355/363), a prova documental (artigos 364/399), a confissão (artigos 348/354), a prova testemunhal (artigos 400/419), a inspeção judicial (artigos 440/443) e a prova pericial (artigos 420/439). Contudo, a exemplo do que ocorre no CPC português, o CPC brasileiro também não possui rol taxativo, dispondo que “todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa” (artigo 332).
Através dos meios de prova é que se possibilita a verificação da veracidade dos fatos alegados, devendo ficar absolutamente indene de dúvidas que prova é daquilo que se alega. Os meios probantes estão definidos nos CPC português e brasileiro não de modo exaustivo, como visto acima, pois vige no direito luso-brasileiro o princípio da liberdade das provas (ou princípio da prova livre), excetuando-se as ilícitas, embora, quanto a estas últimas, exista possibilidade de sua aceitação, quando, em confronto com princípios constitucionais, puder ser aplicado o princípio da proporcionalidade.
Nesse sentido, o processualista brasileiro Fredie Didier Junior entende que o princípio da proporcionalidade nos ensina a medida a ser adotada, ao “estabelecer um iter procedimental lógico seguro na tomada de uma decisão, de modo a que se alcance a justiça do caso concreto”.[6]
Nos ensinamentos de José dos Santos Carvalho Filho, obtém-se o tríplice fundamento na observação do princípio da proporcionalidade, divisão esta provocada na doutrina alemã, qual seja:
a) adequação, significando que o meio empregado na atuação deve ser compatível com o fim colimado; b) exigibilidade, porque a conduta deve ter-se por necessária, não havendo outro meio menos gravoso ou oneroso para alcançar o fim público, ou seja, o meio escolhido é o que causa o menor prejuízo possível para os indivíduos; c)proporcionalidade em sentido estrito, quando as vantagens a serem conquistadas superam as desvantagens.[7]
Há opiniões no sentido de admitir-se a prova obtida ilicitamente como válida e eficaz no processo civil. Hoje em dia, vige a corrente intermediária, coadunando-se com o princípio da proporcionalidade, acima referida: sopesam-se, na interpretação da norma jurídica, os interesses e direitos em jogo, de modo a dar-se a solução concreta mais justa. O desatendimento do preceito não pode ser mais forte nem ir além do que indica a finalidade da medida a ser tomada contra o preceito a ser sacrificado.
Cumpre assinalar, por oportuno, que meios de prova científicos ocupam um lugar de destaque na ciência do Direito e possuem valor elevado para a formação da convicção do julgador.
3. OS SISTEMAS DE AVALIAÇÃO DA PROVA
Quanto à forma de avaliação da prova, o ordenamento jurídico, ordinariamente, adota 03 (três) sistemas: o da prova legal ou tarifada; o do convencimento moral ou íntimo (também denominado de livre convencimento) e o da persuasão racional ou livre convencimento motivado.
3.1. Sistema da prova legal
Esse sistema baseia-se na valoração da prova previamente pelo legislador em caráter geral e abstrato, limitando a liberdade do julgador diante da situação fática que lhe é apresentada. É que aquele fixa, aprioristicamente, normas as quais valoram a eficácia dos diversos meios ou fontes de prova que serão observados no caso concreto, estabelecendo para cada prova um valor constante que não pode ser modificado pelo juiz diante das circunstâncias fáticas.[8]
Conforme afirma Cândido Rangel Dinamarco,[9] as provas são tarifadas no sentido de estabelecer um vínculo normativo à formação do convencimento pessoal do magistrado, reduzindo ou até mesmo retirando o espaço para valoração conforme o contexto fático. Por esse motivo, ao tratar do tema, Fredie Didier afirma que “o juiz não passa de mero aplicador da norma, preso ao formalismo e ao valor tarifado das prova”.[10]
Contudo, embora houvesse uma tentativa de combater ao máximo o arbítrio do julgador,
enganam-se os que pensam que o sistema da prova legal funcionou em decorrência de um rígido automatismo, havendo, no próprio método inquisitório, hipóteses em que, seja por expressa disposição legal, seja por imperfeição normativa, mostrava-se relevante o arbitrium iudicis, como uma espécie de porta de entrada ao sistema do íntimo convencimento. Assim, por exemplo, ocorria com as provas privilegiadas subtraídas da classificação e da hierarquia comuns do sistema da prova legal, e com as penas extraordinárias, que poderiam ser aplicadas ausente prova plena, segundo o arbítrio iudicis. Tais embriões do livre convencimento estavam presentes na República Veneta (que não praticava o sistema da prova legal), assim como em alguns precedentes legislativos do Reino de Nápoles, do Vaticano e do Granducado da Toscana e, em particular, nas Leis e Constituições de Vittorio Amedeo II di Savoia de 1723-1729 e na reforma Penal do Granducado da Toscana de 1786, em cujo art. CX surgiu a primeira codificação do íntimo convencimento, a despeito da opinião contrária de Carmignani que, de qualquer forma, reconhece a existência de orientação jurisprudencial naquele sentido.[11]
Outro aspecto relevante é que este sistema se desenvolveu no processo germânico e, normalmente, é vinculado pela doutrina a traços de irracionalidade, principalmente observados nas ordálias.
A afirmação se dá em razão de que os juízos de Deus, como eram também chamadas as ordálias, tinham em comum o fato de que tomavam como premissa a convicção de que Deus, invocado para assistir as partes, determinaria diretamente o resultado da prova, fazendo demonstrar a inocência ou culpabilidade daquele que se submetia à ordália.
Deve-se ter em mente, todavia, que, na época em que era vigente este paradigma, tudo estava vinculado, regido e protegido por uma divindade, sendo esta parte integrante do cotidiano, portanto era razoável se pensar que tais valores, também, estivessem presentes nas normas do período.[12] Nesse sentido, Michele Taruffo discorre sobre o tema e alerta que tal classificação decorre do fato de que, normalmente, se valoram aspectos passados utilizando-se de concepções atuais, no entanto, ao menos em dois aspectos, as ordálias podem ser consideradas racionais: culturamente, uma vez que condiziam com os valores preponderantes do período; e funcionalmente, porquanto historiadores do direito medieval analisaram e discutiram tal enfoque, sendo, preponderantemente, um instrumento do poder coercitivo.[13]
Há, assim, valores inseridos que emanam na forma de apreciação da prova, o que é bem traduzido pela afirmação de Danilo Knijnik: “as práticas probatórias sintonizam-se, em última análise, com o modelo cognoscitivo e político em vigor numa dada sociedade”.[14]
Em novembro de 1215, como resultado do Quarto Concílio de Latrão, convocado por Inocêncio III, a Igreja aboliu a prática de ordálias como meio para determinar se uma parte deveria ser vencedora ou não em uma controvérsia judicial. Na verdade, a determinação se limitava a proibir os sacerdotes de participar de ordálias judiciais, contudo, como os instrumentos que eram utilizados no procedimento deveriam, necessariamente, ser consagrados por eles, a restrição, portanto, tornava impossível a celebração da ordália.
É evidenciada a relevância do evento narrado por ser nítido o afastamento da Igreja das controvérsias judiciais, especialmente, porque desafiar a Deus a intervir em assuntos para determinar a vitória do inocente e a derrota do culpado foi tomado por algo repugnado; visto que, teologicamente incorreto.
3.2. Sistema do livre convencimento
Tal sistema institui valores completamente opostos aos da prova tarifada, pois, enquanto o último enclausura o convencimento judicial em valores previamente postos para cada prova apresentada, o primeiro arvora-se na ampla liberdade para apreciação da prova sem estabelecer restrições quanto aos meios de provas utilizáveis, bem como quanto à qualidade ou a origem da prova.
Assim, é plenamente possível que o juiz se utilize de fatos não discutidos no processo, suas convicções pessoais ou, até mesmo, o comportamento das parte para a valoração das provas, recorrendo, assim, à sua ciência privada, sem necessitar fazer referência aos motivos que direcionaram a sua convicção.
Nesse sentido, Didier afirma que:
O juiz é soberanamente livre quanto à indagação da verdade e apreciação das provas. A consciência do juiz não está vinculada a qualquer regra legal, quer no tocante à espécie de prova, quer no tocante à sua avaliação. Esse sistema ainda sobrevive nos julgamentos do júri popular.[15]
É digno de nota que tal modelo inviabiliza o contraditório e qualquer possibilidade de controle sobre os juízos de fato, sendo, entre os três sistemas citados, aquele em que há maior possibilidade de haver decisões arbitrárias.
3.3. Sistema da persuasão racional
Com o avanço das ideias iluministas, modifica-se o centro da confiança humana, que sai das normas legais, como ocorria com a prova legal, para a razão do juiz.[16] Com base nisso, constitui-se o paradigma de avaliação da prova como um misto entre os dois sistemas mencionados: ao juiz liberdade para apreciar a prova e valorá-la conforme a sua convicção, mas impondo, por outro lado, a necessidade de motivação e referência, necessariamente, aos fatos discutidos no processo.
A liberdade na apreciação das provas está sujeita a certas regras quanto à convicção, que fica condicionada (e porque é condicionada, há de ser sempre motivada): a) aos fatos nos quais se funda a relação jurídica; b) às provas destes fatos colhidas no processo; c) às regras legais de prova e às máximas de experiência. O livre convencimento motivado também fica limitado pela racionalidade, não sendo admitida a apreciação das provas de acordo com critérios irracionais, por mais respeitáveis que sejam; não pode o magistrado, em um Estado laico, decidir com base em questões de fé, por exemplo.[17]
No ordenamento brasileiro, foi instituído no Código de Processo Civil de 1939 e teve sua continuidade assegurada pela atual legislação processual, conforme se observa no artigo 131 do atual Código de Processo Civil:
Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento.
É de se observar que a necessidade de motivação e a remissão necessária aos fatos tratados no processo é uma forma de viabilizar o controle dos atos judiciais por meio do contraditório, o que não ocorria com o sistema do livre convencimento, no qual as partes não possuíam subsídios para impugnar as decisões, uma vez que os critérios não eram claramente expostos.
Enganam-se, contudo, os que pensam que a transição entre os sistemas se deu de modo estanque. Conforme relata Taruffo, houve uma lenta gradação até se chegar ao paradigma atual, conforme explicado abaixo.
Entre os séculos VII e XIII, na Europa, já é possível observar que são traçados os contornos da sistemática probatória hodierna. Para a elucidação do tema, faço a opção de utilizar a técnica de narrativa adotada por Michele Taruffo, antecipando um acontecimento para, logo após, regredir um pouco no tempo e, em seguida, analisar as suas consequências posteriores.
Dando alguns passos atrás na linha do tempo, no período que sucedeu à Queda do Império Romano do Ocidente, observa-se que a Europa foi tomada pelos bárbaros, que trouxeram consigo os seus costumes, entre eles o meio de resolução de conflitos: as ordálias. A origem do método é bastante antiga e obscura, porém acredita-se que surgiu na Índia e foi trazida para a Europa Central, onde foi absorvido pelos povos germânicos. Com a dominância desses povos pela Europa Continental, tornaram-se as ordálias o meio de prova mais utilizado tanto para as demandas penais, como cíveis, tendo em vista que, neste período da História, não era a clara distinção entre essas esferas.
O termo designava, na verdade, uma infinidade de técnicas que podiam ser mais ou menos cruéis, todavia um expediente, em particular, era recorrentemente utilizado: o juramento. Este poderia ser feito por uma das partes (compurgatio); ou, por um grupo de indivíduos (usualmente chamado de coniuratores) em auxílio a uma das partes.
Os juízos de Deus, como eram também chamados, tinham em comum o fato de que tomavam como premissa a convicção de que Deus, invocado para assistir as partes, determinaria diretamente o resultado da prova, fazendo demonstrar a inocência ou culpabilidade daquele que se submetia à ordália. Em consequência da conversão dos povos bárbaros ao catolicismo, tornou-se obrigatória a presença de um sacerdote no procedimento que deveria, também, consagrar os instrumentos utilizados. A formalidade tinha importância, pois os procedimentos eram minuciosamente descritos e qualquer vício gerado prejudicaria a validade da prova, bem como a justiça e a aceitação do seu resultado.
Apesar de, nos tempos modernos, ser um lugar comum afirmar que as ordálias seriam meios de prova irracionais, é de se observar que essa avaliação pode estar contaminada pelo o que os germânicos chamavam de Rückschluss, ou seja, deixar a interpretação de fatos passados ser contaminada com critérios atuais. Uma observação do contexto em que se vivia revela que as ordálias pareciam culturalmente racionais, o que se demonstra pelo cotidiano daquela época, que estava imerso em misticismos, milagres, santos e demônios. Nesse sentido, parece razoável concluir que a divindade deveria ocupar um espaço bastante grande na determinação do curso da vida das pessoas.
As ordálias, nesse ambiente retratado, nada mais eram que uma intervenção divina em acontecimentos importantes como os processos judiciais. Quanto ao tema, Michele Taruffo faz uma importante observação: as ordálias eram concebidas como uma liturgia de um milagre judicial que se realiza através de uma épreuve, ou melhor, através da superação de uma prova, mais que através da produção de provas no sentido moderno do termo.
As ordálias, também, eram funcionalmente racionais, uma vez que, segundo os historiadores que tratam do direito medieval, havia uma racionalidade funcional das ordálias na sociedade e nos sistemas políticos e institucionais, com ênfase em sua utilidade como instrumentos de um poder coercitivo. Nesse contexto, merece destaque um comentário acerca dos juízos de Deus: o procedimento consistia na exposição perante o tribunal das demandas e defesas das partes, que determinava, por meio de uma sentença denominada Beweisurteil, quais eram os fatos controvertidos e quais seriam as provas a serem praticadas por cada parte.
A decisão referida marcava o fim da atividade do tribunal e era definitiva. Após a decisão, a ordália deveria ser executada conforme o procedimento e tinha-se, com caráter decisivo, uma resposta clara. É que a parte que se submetia a ordália deveria purgar-se da acusação que lhe tinha sido dirigida pela parte contrária, sendo os resultados positivos ou negativos da prova observado por todos. Assim, não se fazia necessária uma nova intervenção do tribunal para emitir outro pronunciamento fundado no resultado da prova, pois a combinação entre a ordália e a Beweisurteil fornecia elementos suficientes para a solução da controvérsia, seja para as partes, o tribunal ou o público.
Todavia, possuía a Beweisurteil um caráter residual, visto que, antes de seu pronunciamento, eram colhidas outras provas, como documentos, testemunhos e os juramentos já mencionados acima, e, somente se não fosse possível obter um resultado claro em relação aos fatos, é que se buscava a solução por meio das ordálias. Caso fossem suficientes as provas prévias, a corte restringia-se a proferir decisão com base no que se havia demonstrado. Desse modo, pode-se observar que as ordálias não se constituíam como um meio de prova em sentido estrito, ou melhor, um instrumento para determinar a verdade dos fatos controvertidos, mas sim como uma técnica para solucionar as controvérsias quando os meios de prova comum não eram capazes de dirimir as dúvidas acerca dos fatos. Pode-se entender, então, que as ordálias funcionavam como meios para alcançar uma decisão definitiva nos casos de incerteza, mais do que, propriamente, um procedimento destinado à busca da verdade.
O sistema medieval das ordálias, no entanto, sofreu uma série de influências que deram forma à construção probatória moderna. Para ilustrar os acontecimentos, o relato de uma pequena porção da história do Reino Lombardo é bastante esclarecedor. Há vários indícios que permitem concluir que, antes do século VIII, não obstante a cultura das ordálias ter extrema influência, os juízes lombardos já tinham uma preocupação com a verdade dos fatos, utilizando-se de várias fontes de prova para elucidar os fatos. Contudo, é com as reformas de Liutprando que se observam significativas mudanças. Este rei, embora tenha mantido o esqueleto formal do procedimento germânico, repudiava o duelo como meio de solução de controvérsias, que já tinha sofrido certo desprestígio por Rotário. A legislação instituída, ainda que não tenha vedado a prática de tais procedimentos, limitou consideravelmente as hipóteses em que poderia ocorrer, dando uma preferência ao juramento como meio mais apto a verificar a verdade dos fatos. Além disso, consagrou, ainda, outros meios probatórios mais modernos, como, por exemplo, os documentos.
Dessas afirmações, pode-se concluir que, mesmo que não tenha abolido por completo os vínculos com o sistema anterior, as leis editadas por Liutprando redirecionaram os rumos dos procedimentos, dando-se um enfoque a verdade objetiva. É o que se demonstra com os registros dos procedimentos em curso no século VIII, em que os juízes já se apresentavam como ativos e indagadores da verdade, servindo-se de uma infinidade de meios de prova como documentos e testemunhos.
Todas essas mudanças se observaram em maior ou menor grau em vários lugares da Europa, o que culminou na evolução do procedimento para algo bastante similar ao que se observa hoje: as partes apresentavam, oralmente, suas argumentações diretamente ao tribunal que, logo após, as interrogava. Em seguida, os juízes iniciavam a produção probatória da qual participavam ativamente, lendo documentos e colhendo testemunhos e, verificando-se a necessidade, era dado prazo as partes para produzirem suas provas. Por fim, ao proferir a sentença, tinha-se a preocupação de embasá-la nas provas produzidas ou em confissões, não mais em ordálias ou duelos.
Contribuíram de forma definitiva para isso o estudo dos textos romanos do Corpus Juris Civilis, bem como a formação dos juristas com ensinamentos de lógica e retórica e o nascimento de uma tradição cartorária. Aqui, em específico, frisa-se as obras conhecidas como ordines iudiciarii, que descreviam os procedimentos aplicados em controvérsias cíveis ou submetidas ao direito canônico.
Com essas considerações, fica claro que a proibição emitida em 1215 veio como uma confirmação formal de uma realidade já consolidada, no entanto, sem dúvidas, contribuiu para que, nos lugares onde ainda eram praticadas, a sua abolição se desse de modo mais acelerado. Deve-se destacar, ainda, que não se pode entender que se abandonou os juízos de Deus por serem taxados de irracionais, mas sim por conta de sua progressiva abolição é que foram tidos por irracionais.
3.4. O sistema brasileiro
Não obstante a atual legislação processual, conforme afirmado, consagre o princípio do livre convencimento motivado, o sistema brasileiro é, na verdade, temperado, pois há no Código de Processo Civil e no Código Civil regras legais de apreciação da prova. Desse modo, há uma preponderância das regras que consagram o livre convencimento motivado, com alguns resquícios da prova legal, ou como denomina Ovídio Baptista, “sequelas”.
Esses vínculos normativos à convicção do juiz estão presentes no ordenamento brasileiro em normas que estabelecem presunções legais relativas, nas normas que limitam a admissibilidade ou a eficácia de algum meio de prova e nas que de algum modo afirmam ou disciplinam essa eficácia.
No primeiro caso, tem-se, por exemplo, o fato presumido, onde se considera, ainda que controvertido, como existente, admitindo-se, contudo, a prova em contrário. Vislumbra-se, também, no artigo 319 do Código de Processo Civil, outra presunção relativa - efeito material da revelia - que induz a da verdade dos fatos alegados pelo autor e não contestados pela parte contrária, consagrando-se, no sistema processual brasileiro, o princípio da eventualidade.
O segundo, é observado no artigo 401 do Código de Processo Civil, que limita a prova testemunhal a contratos de até dez salários mínimos, bem como a vedação de prova testemunhal para fatos que necessitem de conhecimento técnico, sendo obrigatória a necessidade de perícia. Outros exemplos são encontrados na distribuição do ônus da prova, que orienta o juiz a considerar inexistentes os fatos alegados e não provados e a regra que nega eficácia a provas ilícitas.
E, por fim, quanto ao último grupo, há a exigência de que, para terem validade, os documentos apresentados em juízo devem utilizar o vernáculo, bem como a necessidade do registro civil para a comprovação do casamento. Além disso, há a equivalência de eficácia probatória ao documento original e a sua reprodução idônea. Por último, a norma estabelece que os livros comerciais são idôneos para fazer prova contra o seu autor.
Deve-se ter em mente, contudo, que, conforme afirma Fredie Didier, as regras que determinam a valoração prévia da prova devem ter, pelo magistrado, afastada a sua aplicação diante do caso em análise, se ele verificar a ocorrência de injustiça ou impropriedade.[18]
Trata-se de posição bastante ponderada, posto que, na legislação processual civil brasileira, prepondera o livro convencimento motivado do magistrado, não tendo qualquer sentido que este, diante das circunstâncias que lhe são apresentadas, afaste regras de valoração prévia da prova.
Outro ponto característico de nosso ordenamento é a possibilidade de o juiz produzir a prova, que não é presente em todos os ordenamentos, conforme exposto por Joan Picó i Junoy em sua obra intitulada “El juez y la prueba. Estudio de la errónea recepción del brocardo iudex iudicare debet secundum allegata et probata, non secundum conscientiam y su repercusión actual”. Relata o autor que, por uma falha na tradução, transmitiu-se de forma equivocada o brocardo iudex iudicare debet secundum allegata et probata, non secundum conscientiam, trocando-o por iudex iudicare debet secundum allegata et probata partium. Tal fato alimentou, na Espanha, uma corrente que defendia que o juiz seria impedido de interferir na instrução do processo, posição que perdurou por muitos anos, somente sendo modificada recentemente, em razão do trabalho do citado doutrinador.[19]
3.5. O sistema português
O ordenamento jurídico português adota os princípios da prova livre e da prova legal, os quais estão previstos no artigo 607.º, n.º 5, do CPC, que estabelece que
o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
De acordo com o que decorre do preceito supra enunciado vigora no ordenamento jurídico lusitano, em regra, o princípio da liberdade de julgamento (ou da prova livre), segundo o qual o que torna provado um fato é a íntima convicção do juiz, gerada em face do material probatório trazido aos autos do processo (bem como, porventura, da conduta processual das partes) e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens; não a pura e simples observância de certas formas legalmente prescritas. O que decide é a verdade material e não a verdade formal.[20] Diferentemente, era o que ocorria na legislação anterior, representada pelo Código Civil de 1867 (Código de Seabra), onde predominava o princípio da prova legal, sendo o princípio da prova livre aplicado apenas em situações excepcionais.
Assim, o princípio da liberdade de julgamento faculta ao juiz apreciar livremente as provas e fixa a matéria de fato em sintonia com a convicção que tenha firmado acerca de cada fato controvertido, excetuando os casos em que a apreciação livre deve ceder perante a exigência de formalidade legal, de documento ou de prova já plenamente efetuada.
Segundo este princípio, que se contrapõe ao princípio da prova legal, as provas são valoradas livremente, sem qualquer grau de hierarquia, nem preocupação do julgador quanto à natureza de qualquer delas.[21]
Acrescente-se que a livre apreciação da prova não quer dizer prova arbitrária ou irracional, mas que a prova foi apreciada com inteira liberdade pelo julgador, sem uma obediência a uma tabela hierárquica ditada pelo legislador. Em outras palavras, corresponde ao processo mental, traduzido em juízos e desenvolvido em raciocínios, no espírito do julgador, através de processos psicológicos que presidem ao exercício da atividade intelectual, exercitada segundo as máximas de experiência e as regras da lógica. O que está em conceito é a liberdade do juiz sem que, contudo, conferir-lhe o poder arbitrário de julgar os fatos sem provas ou contra as provas.
Corroborando com o CPC, vários são os dispositivos legais do Código Civil que aplicam o princípio da prova livre, dentre os quais, podemos citar os artigo 358.º, n.º 4 – que dispõe que “a confissão judicial que não seja escrita e a confissão extrajudicial feita a terceiro ou contida em testamento são apreciadas livremente pelo tribunal” – o artigo 389.º - que reza que “força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal” – o artigo 391.º - que diz que “o resultado da inspecção é livremente apreciado pelo tribunal” - e o artigo 396.º - que dispõe que “força probatória dos depoimentos das testemunhas é apreciada livremente pelo tribunal”.
O princípio da prova legal, por outro lado, submete o julgador à apreciação das provas segundos as regras ditadas pela lei que lhes designam o valor e a força probatória, sendo aplicado em detrimento do princípio da livre apreciação da prova em determinadas situações, a exemplo do caso da prova por confissão, da prova por documentos autênticos e dos autenticados e particulares devidamente reconhecidos.
De acordo com a classificação de Manuel de Andrade, a prova legal possui as seguintes gradações: a) a prova bastante, que é a prova que cede perante contraprova, que torna o facto respectivo incerto; b) a prova plena, que é a prova legal que só cede perante prova do contrário, que torna o facto respetivo como não verdadeiro e c) a prova pleníssima, que é a prova legal que não admite sequer a prova do contrário.[22]
O princípio da prova livre cede em face da prova pleníssima, tendo fato respectivo de ser havido como provado, sem que se admita qualquer espécie de prova em contrário. Já em relação à prova bastante e à prova plena, atua o princípio da livre apreciação da medida em que tem de ser apreciadas as provas deduzidas ou perpetradas em contrário.[23]
No mesmo sentido, há diversos dispositivos do Código Civil que rezam pela aplicação do princípio supra exposto na valoração da prova, como o que ocorre no artigo 358.º, n.º 1 - segundo a qual a confissão judicial escrita tem força probatória plena contra o confitente (cujo reconhecimento por sentença é obrigatório ao juiz, nos termos do artigo 607, n.º 3, do CPC) – e o artigo 358.º, n.º 2 - que reza sobre a força probatória plena da confissão extrajudicial feita à parte contrária em documento autêntico ou particular.