O advento do Decreto nº 61.522/2015[1] do Estado de São Paulo colocou em relevo, novamente, o debate acerca da cobrança de ICMS sobre a comercialização de softwares, sobretudo no que diz respeito à aquisição de programas via download pela internet. A matéria, há muito debatida nos tribunais pátrios, ainda não foi pacificada, no entanto há fortes argumentos que sustentam a inconstitucionalidade da incidência do ICMS sobre tais operações.
A análise da inconstitucionalidade passa, inicialmente, pelo exame do conceito de “mercadorias”. Como amplamente sabido, o ICMS é imposto incidente sobre a “circulação de mercadorias”, nos termos do art. 155, II, da Constituição Federal, sendo necessário, portanto, delimitar o significado e alcance dessa expressão.
Leandro Paulsen e José Eduardo Soares de Melo[2] definem mercadoria como “o bem corpóreo da atividade profissional do produtor, industrial e comerciante, tendo por objeto a sua distribuição para consumo, compreendendo-se no estoque da empresa, distinguindo-se das coisas que tenham qualificação diversa, com é o caso do ativo permanente.” No mesmo sentido, mas numa abordagem distinta, o Dicionário Técnico Jurídico da Editora Rideel[3] caracteriza mercadoria como “todo bem móvel objeto de ato de comércio, que seja apreciável, suscetível de ser cortado, pesado e medido”.
Como se depreende das definições acima colacionadas, a mercadoria, necessariamente, pressupõe a existência de bem corpóreo, o que é incompatível com a natureza dos softwares. Com efeito, trata-se o software de bem imaterial, incorpóreo, que não se confunde com a noção de mercadoria, para fins de incidência do ICMS.
Nesse sentido, decidiu o Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE nº 176626[4], leading case sobre a tributação da licença de uso de softwares: “não tendo por objeto uma mercadoria, mas um bem incorpóreo, sobre as operações de "licenciamento ou cessão do direito de uso de programas de computador" "matéria exclusiva da lide", efetivamente não podem os Estados instituir ICMS”.
Nessa oportunidade, assentou a Suprema Corte, ainda, o entendimento de que o ICMS incidiria apenas sobre os chamados “softwares de prateleira”, produtos em que o programa é comercializado por meio de mídia física. Como, na hipótese sob exame, o software é disponibilizado através de download, não há dúvidas de que inexiste suporte físico capaz de dar azo à tributação.
Ainda que, numa aventura hermenêutica, o software seja considerado mercadoria, vale destacar que sua comercialização não constitui hipótese de incidência do ICMS, vez que não há “circulação” do bem, um dos elementos constitucionais do fato gerador do tributo, como descrito anteriormente.
Por circulação, conforme doutrina majoritária, entende-se a transferência da propriedade do bem (circulação jurídica). Nesse particular, como bem leciona Sacha Calmon Navarro Coelho[5], “somente terá relevância jurídica aquela operação mercantil que acarrete a circulação da mercadoria como meio e forma de transferir-lhe a titularidade”. Ou ainda, consoante escólio de Geraldo Ataliba[6]: “circular significa para o Direito mudar. Se um bem ou uma mercadoria mudam de titular, circula para efeitos jurídicos”.
Nas operações envolvendo softwares, ao revés, não há transferência da titularidade do bem, mas apenas concessão do seu uso. Conforme prevê o art. 9º da Lei nº 9.609/1998 (Lei de Software), os casos de uso de software são regidos por contratos de licença, em que o titular de um direito de propriedade intelectual concede a outra pessoa o direito de utilizá-lo. E não é sem razão, sendo o software um bem imaterial, um esforço intelectual, não pode ser passível de compra e venda, mas sim de cessão de direitos.
Como o download do software não configura alienação do programa, mas tão somente licença de uso, não ocorre a translação da propriedade, o que constitui óbice para incidência do ICMS, por ausência de um dos elementos do fato gerador do tributo, qual seja, a circulação jurídica do bem.
Outra circunstância que enseja a inconstitucionalidade da cobrança de ICMS sobre a comercialização de softwares é a inadequação da legislação vigente para regular tributariamente tais negócios jurídicos.
Como cediço, a Lei Complementar nº 87/96 dispõe sobre as normas gerais de tributação do ICMS. Ocorre que grande parte das disposições do referido diploma é incompatível com as operações de licenciamento de softwares, tendo em vista que, à época da edição da LC nº 87/96, o legislador não anteviu a possibilidade da realização de tais negócios jurídicos. Dessa incompatibilidade resulta a impossibilidade da cobrança do ICMS, por ausência de normas gerais sobre a matéria, em afronta ao art. 146, III, a, da Constituição Federal.
A exemplo da mencionada inadequação, cita-se o art. 11 da LC 87/96, que define o local da operação, para efeitos de determinação dos sujeitos ativo e passivo da relação jurídica tributária. De acordo com o inciso I, a, do dispositivo tratando-se de mercadoria ou bem, o local da operação será o do estabelecimento onde se encontre, no momento de ocorrência do fato gerador.
Esse dispositivo, por si só, suscita vários questionamentos. Imagine-se uma empresa sediada no Estado A, que, por meio da internet, licencia softwares armazenados em um servidor localizado no Estado B. Nesse caso, qual seria o Estado Competente para cobrança do ICMS: aquele em que se localiza o servidor que hospeda o software ou onde se situa o estabelecimento físico da empresa responsável pelo licenciamento do programa? Como determinar o momento de ocorrência do fato gerador? Seria o início do download, o término? E quando o software estiver armazenado em servidor situado fora do país, como determinar o sujeito ativo da cobrança?
Afigura-se, portanto, primordial a definição de tais aspectos, que se revelam essenciais para que a cobrança do imposto seja possível, o que deve ser feito por meio de lei complementar, nos termos do art. 146, III, a, da Constituição Federal, já que constituem normas gerais de tributação do ICMS.
Ante o exposto, afere-se como inconstitucional a cobrança de ICMS sobre operações de aquisição de softwares via download, sob os fundamentos de que: (i) o software não se enquadra no conceito de mercadoria; (ii) não há circulação do software, tendo em vista que seu licenciamento não caracteriza transferência de propriedade; e (iii) a cobrança não é aplicável, ante a ausência de regulamentação legal específica.
[1] Com a edição do Decreto nº 61.522/2015, o ICMS deixa de ser calculado sobre o dobro do valor de mercado dos suportes informáticos dos softwares (vide Decreto nº 51.619/2007), passando a ser calculado sobre o preço total dos programas. Embora o decreto não seja expresso nesse sentido, com a modificação na base de cálculo, existe a possibilidade de a Fazenda Estadual exigir o recolhimento do imposto na hipótese de licenciamentos de softwares via download pela internet. Até então, essas operações não eram tributadas, em razão da ausência de base de cálculo, já que esta restringia-se à mídia magnética.
[2] PAULSEN, Leandro; MELO, José Eduardo Soares de. Impostos: federais, estaduais e municipais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 239
[3] GUIMARÃES, Deocleciano Torrieri (Org.). Dicionário técnico jurídico. 2.ed. São Paulo: Rideel, 1999. 550 p.
[4] STF - RE: 176626 SP, Relator: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Data de Julgamento: 10/11/1998, Primeira Turma, Data de Publicação: DJ 11-12-1998 PP-00010 EMENT VOL-01935-02 PP-00305 RTJ VOL-00168-01 PP-00305
[5] COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p.483.
[6] ATALIBA Geraldo. ICMS – Incorporação ao ativo – empresa que loca, oferece em “leasing” seus produtos – Descabimento do ICMS. RDT 52/74)