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O dever do Estado e o direito do cidadão.

A eficácia do artigo 196 da Constituição Federal

Agenda 06/01/2016 às 11:25

Breve análise sobre a eficácia e pertinência do artigo 196 da Constituição frente ao Estado.

                                                                                             

Torna-se desnecessário mencionar a frase lapidar de Ferdinand Lassale em seu “A essência da Constituição” de 1863. Lassale em sua palestra a um grupo de operários prussianos, palestra essa que se converteu no “pequeno” livro mencionado, em seu último parágrafo traz a famosa frase: A constituição sem inserção social “ ... é uma folha de papel”. Após trair Karl Marx e apoiar Otto Von Bismarck, faleceu em 31 de agosto de 1864 em duelo em disputa por jovem chamada Hélène Von Dönniges.

Esse preâmbulo é para refletir a extensão da frase do prussiano Ferdinand Lassale frente à seguinte afirmação:       

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (Constituição Federal do Brasil/1988).

Uma Constituição que pactua tal direito e tal dever deve ser confiável e estar alinhada com a sociedade, objetivo máximo do texto constitucional. A prática é quase sempre uma possibilidade da teoria. Com o artigo 196 da Carta de 1988 não é diferente. O constrangimento é a afirmação “dever do Estado e direito do cidadão”. Como aceitar que tal afirmação está apenas na folha de papel? A Carta Fundamental é o instrumento que visa fazer cumprir o pacto/contrato do povo com as instituições que o povo legitima como seus representantes, em outras palavras, o povo é a teleologia da constituição em Estado democrático e soberano.  A Constituição Federal de 1988 põe a vida como sendo o bem maior dos direitos fundamentais, sendo assim, em teoria, estamos bem. A prática , no entanto, é o descaso, a precariedade, desvios de dinheiro destinados à saúde, por fim o caos. Com o texto constitucional não é possível mitigar, assim como os órgãos que cuidam dos impostos e sua arrecadação não mitigam com o contribuinte. Ser cidadão não é ser apenas contribuinte, ser cidadão é ser “protegido” pelo disposto no artigo em comento em sua maior extensão possível.

O direito à saúde pública encontra-se positivado na Constituição Federal expressamente nos artigos 6º e 196, sendo um direito social e fundamental, é um dever do Estado. A saúde é inerente ao ser humano, bem como à sua vida com dignidade, sedo fundamento da República Federativa do Brasil, expresso na Constituição Federal em seu artigo 1º, inciso III.

Preceitua o nobre José Afonso da Silva:

 “A saúde é concebida como direito de todos e dever do Estado, que a deve garantir mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença e de outros agravos. O direito à saúde rege-se pelos princípios da universalidade e da igualdade de acesso às ações e serviços que a promovem, protegem e recuperam.”[1]

Afonso da Silva ainda nos conclama a refletir sobre os princípios da universalidade que nos levam ao caput do art. 5º da CF/88.  A questão vai mais além que uma posição contratualista à moda de Thomas Hobbes (1588-1679) ou John Locke (1632-1704). Que o Estado brasileiro é um Leviatã não se discorda, a sanha pela arrecadação e os desmandados políticos e a corrupção extorquem do povo seus direitos e nada se faz para resolver a etiologia do problema.  A denúncia do emérito Victor Nunes Leal em seu Coronelismo, Enxada e Voto” [2] de 1948, livro que visualiza a forma coronelista de “feudos” brasileiros e sua forma decadente de existência. Obviamente o estrago na saúde e nos serviços públicos não surgiram de ontem para hoje.   

“O Princípio da Reserva do Possível ou Princípio da Reserva de Consistência é uma construção jurídica germânica originária de uma ação judicial que objetivava permitir a determinados estudantes  cursar o ensino superior público embasada na garantia da livre escolha do trabalho, ofício ou profissão.  Neste caso, ficou decidido pela Suprema Corte Alemã que, somente se pode exigir do Estado a prestação em benefício do interessado, desde que observados os limites de razoabilidade. Os direitos sociais que exigem uma prestação de fazer estariam sujeitos à reserva do possível no sentido daquilo que o indivíduo, de maneira racional, pode esperar da sociedade, ou seja, justificaria a limitação do Estado em razão de suas  condições socioeconômicas e estruturais”.[3]

Vejamos o posicionamento do STF, verbis:

“Supremo Tribunal Federal, no exame da matéria (RTJ 171/326-327, Rel. Min. ILMAR GALVÃO – RE 195.192/RS, Rel. Min. MARCO AURÉLIO –            RE 198.263/RS, Rel. Min. SYDNEY SANCHES – RE 237.367/RS, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA – RE 242.859/RS, Rel. Min. ILMAR GALVÃO –      RE 246.242/RS, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA – RE 279.519/RS, Rel. Min. NELSON JOBIM, v.g.):

PACIENTE COM HIV/AIDS – PESSOA DESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS – DIREITO À VIDA E À SAÚDE – FORNECIMENTO GRATUITO DE  MEDICAMENTOS – DEVER CONSTITUCIONAL DO PODER PÚBLICO (CF, ARTS. 5º, CAPUT, E 196) – PRECEDENTES (STF) – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO.

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O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA.

- O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar.

- O direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional.

Esse entendimento vem sendo aplicado pelo Supremo Tribunal Federal, cujas decisões – proferidas em sucessivos julgamentos sobre                   a matéria ora em exame – têm acentuado que constitui obrigação solidária dos entes da Federação o dever de fornecimento gratuito de tratamento médico e de medicamentos indispensáveis em favor de pessoas carentes (AI 732.582/SP, Rel. Min. ELLEN GRACIE – RE 586.995- -AgR/MG, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA – RE 607.385-AgR/SC, Rel. Min.                    CÁRMEN LÚCIA – RE 641.916-AgR/PR, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, v.g.):

AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSTITUCIONAL. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. LEGITIMIDADE PASSIVA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA ENTRE OS ENTES DA FEDERAÇÃO EM MATÉRIA DE SAÚDE. AGRAVO IMPROVIDO.

I – O Supremo Tribunal Federal, em sua composição plena, no julgamento da Suspensão de Segurança 3.355-AgR/RN, fixou entendimento no sentido de que a obrigação dos entes da federação no que tange ao dever fundamental de prestação de saúde é solidária.

II – Ao contrário do alegado pelo impugnante, a matéria da solidariedade não será discutida no RE 566.471-RG/RN, Rel. Min. Marco Aurélio.

III – Agravo regimental improvido.”

(AI 817.938-AgR/RS, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI – grifei)

Brasília, 10 de setembro de 2013.

Ministro CELSO DE MELLO”

Relator

Cabe cumprir o dever uma vez que vivemos em Estado Democrático de Direito, sendo a Carta Republicana um instrumento vivo e eficaz e não letra morta. A sociedade que vive a democracia e pactua com o Estado as obrigações deve ter a consciência do que lhe é direito não é favor é dever e insistimos direito não se mitiga.


[1] SILVA, José Afonso da.Curso de direito constitucional positivo. 19ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001.p. 808.

[2]Leal, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto. 7ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

[3] Fernando Gomes Correia Lima e Viviane Carvalho de Melo. Médico, advogado e presidente do CRM-PI.  Odontóloga e advogada. In: http://www.portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=22526:o-principio-da-reserva-do-possivel-o-minimo-existencial-e-o-direito-a-saude&catid=46

Sobre o autor
Sérgio Ricardo de Freitas Cruz

Mestre e doutorando em Direito. Membro do IBCCRIM e do IBDFAM.

Informações sobre o texto

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