1. INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é identificar a teoria da ação que orientou a elaboração do Código Penal Militar - CPM, e fazer uma análise crítica do anacronismo do CPM em relação ao Código Penal comum - CP.
O momento é propício para este estudo, porque existe uma proposta de reforma do CP tramitando no Senado Federal (PLS 236/2012), mas não existe proposta de revisão da parte geral do CPM em tramitação. Então, é oportuno chamar a atenção da comunidade jurídica e do Poder Legislativo para o inaceitável descompasso entre os dois códigos.
Não se olvida que existe uma proposta de extinção da Justiça Militar, em estudo no Conselho Nacional de Justiça[1], mas isso em nada reduz a importância deste trabalho, pois os crimes militares continuarão existindo, embora julgados pela Justiça comum, estadual ou federal.
Quanto ao aspecto metodológico, o presente trabalho inicia com a apresentação de um histórico da legislação penal militar e das teorias da ação, para, em seguida, identificar a teoria adotada pelo CPM.
Por fim, faz-se uma análise crítica sobre o anacronismo a que foi relegada a legislação penal militar.
As fontes do presente trabalho são doutrina e legislação penais.
2. BREVE HISTÓRICO DA CODIFICAÇÃO PENAL MILITAR NO BRASIL
A guerra é um fenômeno social a que toda comunidade humana está sujeita (FIGUEIREDO, 2004, p. 6). Desde os tempos imemoriais, os homens se lançam em hostilidades uns contra os outros, seja pelo desejo de conquista, seja pelo instinto de defesa. Daí a necessidade de um direito militar.
No início do período colonial, o Brasil (então, Terra de Vera Cruz) foi submetido às leis lusitanas, que eram organizadas em compêndios denominados ordenações (TEIXEIRA, 1979, p. 62). Vigoraram no Brasil as Ordenações Afonsinas, Manuelinas, Sebastianas e Filipinas.
Ainda no período colonial, o Alvará de 18 de fevereiro de 1763 consagrou os "artigos de guerra do Conde de Lippe", que representaram um recrudescimento do direito penal militar, embora trouxesse avanços no aspecto processual (VERAS, 2007, p. 29).
Em 15 de novembro de 1889, foi proclamada a república no Brasil. No ano seguinte, foi a provado Código Penal da Armada (Decreto nº 949, de 5 de novembro de 1890), que veio a ser revisto e estendido para o Exército nove anos mais tarde (FIGUEIREDO, 2004, p. 13).
Em 1940, entrou em vigor o Código Penal Comum (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 dezembros de 1940). No fim da Era Vargas, em 1944, entrou em vigor um Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 6.227, de 24 de janeiro de 1944).
Durante o governo militar, foi decretado, com base no Ato Institucional nº 5/68, o Código Penal Militar vigente (Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969). Na mesma data foi decretado um novo Código Penal comum (Decreto-Lei nº 1.004, de 21 de outubro de 1969), que veio a ser revogado antes de entrar em vigor.
Apesar do conturbado contexto político da época, o Código Penal Militar foi resultado de um intenso trabalho doutrinário, devendo-se destacar o esforço para uniformizar o Direito Penal Militar e o Direito Penal Comum.
Atualmente, o CPM conta com mais de 30 anos de vigência, período ao longo do qual sofreu apenas as quatro alterações pontuais.
3. TEORIAS DA AÇÃO
Passamos a apresentar uma breve síntese dos modelos penais mais relevantes, para, em seguida, identificar o modelo adotado pelo CPM.
3.1 - Teoria causal-naturalista
O modelo clássico do delito (modelo Liszt - Beling), que surgiu no final do século XIX, partia de uma premissa ontológica, ou seja, de que o delito é um fenômeno do mundo dos fatos, cabendo ao jurista apenas observar e descrever, tal como se procede no método científico das ciências naturais.
Sob esse prisma, a ação seria um comportamento humano voluntário que provoca modificação no mundo exterior.
Nesse sentido, René Ariel Dotti (2012, p. 394) transcreve passagem do Tratado de Direito Penal Allemão, em que Franz von Liszt define ação como:
o facto que repousa sobre a vontade humana, a mudança no mundo exterior referível à vontade do homem (...). Dest'arte são dados os dois elementos, de que se compõe a idéia de acção e portanto a de crime: acto de vontade e resultado. A estes dois elementos deve accrescer a relação necessária para que elles formem um todo, a referencia do resultado ao acto.
Essa teoria limita a ação ao seguinte encadeamento naturalístico: vontade, conduta e resultado.
O conteúdo da vontade, ou seja, a intencionalidade do agente, não importa para a análise da tipicidade, pois o foco da teoria causal é o desvalor do resultado naturalístico, não da conduta.
Os demais elementos do crime, segundo a teoria causal-naturalista, são apresentados por NEVES e STREIFINGER (2014, p. 178) nos termos abaixo apresentados.
A tipicidade era mera subsunção da conduta ao tipo legal em abstrato, desprovida de elementos normativos (valorativos) ou subjetivos.
A antijuridicidade consistia na contrariedade do fato ao direito, também analisada de forma objetiva.
A culpabilidade, por sua vez, carregava todo o aspecto subjetivo do modelo, caracterizando-se pelo vínculo psicológico entre o autor e o fato típico e antijurídico. Daí a denominação "teoria psicológica da culpabilidade".
Agregava-se ainda à culpabilidade a imputabilidade, ou seja, a capacidade compreender o caráter ilícito do fato.
Esquematicamente, os elementos do crime no modelo causal-naturalista podem ser assim apresentados:
Tipicidade |
Antijuridicidade |
Culpabilidade |
Conduta humana voluntária[2] |
Contrariedade ao ordenamento jurídico (objetivo-normativa) |
Dolo / culpa |
Nexo causal |
Imputabilidade |
|
Resultado naturalístico |
||
Tipicidade formal (subsunção) |
Esse modelo representou um avanço em relação aos modelos anteriores, porque a introdução do dolo e da culpa como elementos da culpabilidade excluiu a possiblidade de responsabilização penal objetiva.
Porém, o modelo causal apresentava uma série de limitações, dentre elas a incapacidade de explicar o crime omissivo, a tentativa e o crime culposo.
Quanto ao crime omissivo, não é possível estabelecer uma relação de causalidade naturalística, pois "o nada nada produz" (ex nihilo nihil fit).
Quanto à tentativa, o problema são as hipóteses de ausência de resultado (tentativa branca). Von Liszt afirmava que "não há ação, não há injusto, não há crime sem uma mudança operada no mundo exterior, sem um resultado" (LISZT apud GRECO, 2012, p. 148). Essa afirmação, levada a todo efeito, afastaria a tipicidade da tentativa branca.
Quanto aos crimes culposos, não é possível estabelecer um liame psicológico entre o autor e o fato, pois o autor do crime culposo não consente com a ocorrência do resultado.
Outro problema da teoria causalista da ação é uma incoerência no que tange aos chamados tipos anormais, ou seja, aqueles que contêm algum elemento normativo (valorativo) ou subjetivo (psíquico-espiritual).
Deveras, como a tipicidade causalista era desprovida de elementos normativos ou subjetivos, seria necessário chegar à culpabilidade para se concluir pela atipicidade, evidenciando uma flagrante incoerência da teoria.
Exemplo de tipo anormal é o tipo do crime de receptação: "Art. 180. Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte". Observe no trecho grifado que não basta o elemento objetivo - a aquisição de produto de crime. Para que se realize a figura típica, é necessário ciência de que o bem é produto de crime. Porém, essa ciência integra o dolo, que estava situado na culpabilidade. Seria necessário, portanto, ir até à culpabilidade, para depois voltar à tipicidade, o que demonstra uma incoerência do sistema.
É certo que os próprios autores causalistas propuseram alterações no modelo, para superar essas limitações, mas, sem sucesso.
Relativamente à omissão, por exemplo, von Liszt afirmava que omitir é verbo transitivo: não significa deixar de fazer de modo absoluto, mas deixar de fazer alguma coisa, e, na verdade, o que era esperado (LISZT apud NEVES e STREIFINGER, 2014, p. 180).
Contudo, para se identificar qual seria a conduta que se esperava do agente, seria necessário fazer um juízo de valor, com base no ordenamento jurídico, o que vai de encontro à premissa ontológica adotada pelo modelo, desnaturando-o, portanto.
Era necessário, portanto, uma mudança radical de paradigmas, o que só veio a ocorrer com o advento da teoria finalista da ação.
3.2 - Teoria causal-normativa
A teoria causal-normativa, também chamada neoclássica ou neokantiana, surgiu nas primeiras décadas do século XX, tendo com expoentes os penalistas alemães Edmund Mezger e Max Ernest Mayer.
Essa teoria agregou à teoria causal elementos normativos e axiológicos, adotando um método científico típico das ciências humanas, sob influência da filosofia neokantista.
Sobre esse ponto, o ilustre penalista alemão Hans-Heinrich Jescheck, assim descreve a mudança de paradigma que a teoria causal-normativa representou, verbis:
o modo de pensar próprio dessa fase veio determinado de forma essencial pela teoria do conhecimento do neokantismo (Stammler, Rickert, Lask) que, junto ao método científico-naturalístico do observar e descreve, restaurou a metodologia própria das ciências do espírito, caracterizada pelo compreender e valorar". (apud BITENCOURT, ob. cit., p. 208)
Essa mudança de paradigma impôs transformações nos elementos do crime, como apontam NEVES e STREIFINGER (ob. cit., 180 et. seq.).
A ação, que antes estava relacionada a um movimento corpóreo causador de modificação no mundo exterior, passou a ser entendida como comportamento humano voluntário, de modo a abranger também a omissão.
A tipicidade deixou de ser vista como mera subsunção da conduta ao tipo penal, passando a agregar a efetiva ofensa ao bem jurídico protegido pela norma (tipicidade material).
Outra alteração da tipicidade foi a aceitação de elementos normativos e subjetivos no tipo, o que se mostrava incompatível com o modelo de tipicidade formal do sistema causal-naturalista.
A antijuridicidade deixou de ser vista como mera contrariedade ao ordenamento jurídico, sendo agregada de valoração sobre a danosidade social da conduta, o que permite a existência de causas supralegais de exclusão da antijuridicidade, como o consentimento do ofendido.
A culpabilidade, antes analisada exclusivamente sob o plano psicológico, passou a ser idealizada sob o ponto de vista normativo, como um juízo de valor sobre a conduta em concreto (reprovabilidade), por influência da teoria psicológico-normativa da culpabilidade, de Reinhard Frank.
Surge então a exigibilidade de conduta diversa, como elemento da culpabilidade, pois só há falar em reprovabilidade quando for possível exigir outra conduta do agente.
Por fim, o dolo, que era a simples vontade de realizar o fato típico, com previsão do resultado, fica associado à consciência da ilicitude (dolus malus), de modo que só há reprovabilidade se o agente tem consciência de que está agindo em contrariedade à ordem jurídica.
Os elementos analíticos do crime, segundo a teoria causal-normativa, podem ser assim descritos:
Tipicidade |
Antijuridicidade |
Culpabilidade |
Comportamento humano voluntário |
Ausência de causas legais de justificação. |
Dolo / culpa |
Nexo causal |
Danosidade social (ausência causas supralegais de justificação) |
Consciência da ilicitude (dolus malus) |
Resultado naturalístico |
Exigibilidade de conduta diversa |
|
Tipicidade formal (subsunção) |
Imputabilidade |
|
Tipicidade material (ofensa ao bem jurídico tutelado) |
Apesar dos avanços da teoria causal-normativa, ainda havia problemas estruturais nesse modelo penal.
A tipicidade da tentativa era um deles.
O problema é que o resultado do crime tentado não coincide com o resultado previsto no tipo. A tentativa de homicídio produz um resultado mais brando do que a morte, uma lesão corporal, por exemplo.
Ou seja, observando-se apenas aspectos objetivos do fato, não é possível identificar a tipicidade de uma tentativa.
O que efetivamente diferencia a tentativa de um crime consumado é o elemento subjetivo, o dolo do agente, mas, para os causalistas, o dolo se encontrava na culpabilidade, não na tipicidade.
Esses problemas estruturais das teorias causalistas levaram ao surgimento de outra teoria, a finalista, que será objeto do item seguinte.
3.3 - Teoria finalista
Proposta pelo penalista alemão de Hans Welzel, em 1939, essa teoria alterou profundamente a estrutura analítica do delito, ao deslocar dolo e culpa para a tipicidade, sob o fundamento de que não existe ação neutra, toda ação humana é uma ação final, e não uma atividade mecânica.
Manteve-se, assim, uma premissa ontológica, que busca a essência do fato criminoso, porém o deslocamento do dolo e da culpa gerou alterações significativa na estrutura do crime.
Sobre a ideia de atividade final, René Ariel Dotti (2012, p. 396) transcreve esta ilustrativa passagem do livro Derecho Penal Alemán, de Hans Welzel:
Esto pressupone que los miembros de la sociedad pueden actuar conscientes del fin, es decir, proponerse fines, elegir los medios requeridos para su obtención y ponerlos en movimiento con conciencia del fin. Esta actividad final se llama 'acción'.[3]
E arremata: "a finalidade é, por isso, - em sentido figurado - 'vidente', e a causalidade, 'cega' ".
Para a teoria finalista da ação, portanto, mais importante do que a cega mecânica dos fatos, é a intencionalidade do agente. O desvalor do resultado, eixo da teoria causalista, dá lugar ao desvalor da ação.
Damásio E. de Jesus (1999, p. 235 - 236) apresenta um exemplo que bem evidencia a diferença entre as duas teorias:
Se eu vejo um homem, empregando um fuzil, atirar em outro, matando-o, pela simples apreciação objetiva não posso dizer qual o tipo penal realizado: pode tratar-se de homicídio doloso, se quis a morte ou assumiu o risco de produzi-la; pode tratar-se de erro de tipo invencível, se pelas circunstâncias foi levado a crer que era o vulto um animal bravio; pode ser um homicídio culposo; ou um erro de fato provocado por terceiro; ou crime de disparo de arma de fogo.
Partindo desse exemplo, Damásio explica que somente é possível definir o tipo penal em que incorre o agente "mediante um exame dos processos psicológicos na mente do sujeito" (1999, p. 236). Ou seja, o mero conhecimento da mecânica dos fatos não é suficiente para a se estabelecer a tipicidade de um crime. Daí, concluir-se que o dolo integra a tipicidade penal, não a culpabilidade.
Quanto ao crime culposo, WELZEL afirma que ele consiste na inobservância do cuidado objetivo, cuidado este que seria um dever geral de diligência que a vida em sociedade imporia a todos os homens. A partir daí, WELZEL estabelece a tipicidade do crime culposo nos seguintes termos:
Com o comportamento adequado que assim se estabelece, deve ser comparado o efetivo comportamento do agente, para verificar se ele é típico no sentido de um crime culposo: toda ação que não corresponder a tal comportamento adequado é típica no sentido do crime culposo. (WELZEL apud DE JESUS, 1999, p. 236)
Logo, a culpa integra a tipicidade, não a culpabilidade.
No que tange ao crime omissivo, WELZEL supera a questão metafísica "ex nihilo nihil fit" ao introduzir a finalidade na conduta omissiva.
Nas palavras do próprio autor, a omissão:
es la no producción de la finalidad potencial (posible) de un hombre en relación a una determinada acción. Solo aquella acción que está subordinada al poder final del hecho (domínio del hecho) de una persona, puede ser omitida. (...) Omissión no significa un mero no hacer nada, sino un no hacer una acción posible subordinada al poder final del hecho de una persona concreta[4] (WELZEL apud DOTTI, 2012, p. 398).
De outra parte, a existência de tipos anormais não causa nenhuma perplexidade no âmbito do finalismo, pois o dolo e a culpa estão contidos no tipo, seja este tipo normal ou anormal.
O já citado problema da tipicidade da tentativa também encontra fácil solução na teoria finalista, pois o crime tentado, embora possa produzir o mesmo resultado de um crime menos grave, é praticado com o mesmo dolo do crime consumado.
Sobre esse ponto, confira-se as palavras do próprio autor da teoria finalista, verbis:
A tentativa não é um mero processo causal que não produz seu efeito, mas uma conduta que aponta a um resultado escolhido previamente: por conseguinte, uma ação na qual o conteúdo da vontade é um elemento constitutivo. Como se poderia definir de outro modo a tentativa de homicídio, a não ser como um ação com a qual o autor quer matar a um homem? Se o conteúdo da vontade é uma parte integrante, necessária, da ação, na tentativa, seguirá sendo assim quando se produz o resultado. Em face desse fato, fracassa toda interpretação causal da ação. (WELZEL apud DE JESUS, 1999, p. 232)
Os elementos analíticos do crime, segundo a teoria finalista, podem ser assim descritos:
Tipicidade |
Antijuridicidade (subjetiva[5]) |
Culpabilidade |
Comportamento humano voluntário |
Ausência de causas legais de justificação. |
Potencial consciência da ilicitude |
Nexo causal |
Danosidade social (ausência causas supralegais de justificação) |
Exigibilidade de conduta diversa |
Resultado |
Imputabilidade |
|
Dolo natural / culpa |
||
Tipicidade formal (subsunção) |
||
Tipicidade material (ofensa ao bem jurídico tutelado) |
A teoria finalista não ficou imune a críticas.
Claus Roxin, renomado penalista alemão, apontou limitações na teoria finalista, descrevendo, por exemplo, a hipótese consumação do crime por meio da sujeição da vítima a um risco juridicamente permitido.
Confira-se o seguinte trecho da obra do referido autor:
Consideremos, agora, que A deseje provocar a morte de B! A o aconselha a fazer uma viagem à Flórida, pois leu que lá, ultimamente, vários turistas têm sido assassinados; A planeja que também B tenha esse destino. B, que nada ouviu dos casos de assassinato na Flórida, faz a viagem de férias, e de fato é vítima de um delito de homicídio. Deve A ser punido por homicídio doloso? Se reduzirmos o tipo objetivo ao nexo de causalidade, esta seria a conclusão. Afinal, A causou, através de seu conselho, a morte de B, e almejava esse resultado. (ROXIN apud NEVES e STREIFINGER, 2014, 191)
Roxin entende que problemas como esse decorrem da premissa ontológica adotada pela teoria finalista. Propõe, então, adotar-se uma premissa axiológica, a partir da qual formula a teoria da imputação objetiva.
O estudo das teorias que surgiram após a teoria finalista escapa aos objetivos do presente trabalho, pois, como será demonstrado no item seguinte, o Código Penal Militar adotou a teoria causal-normativa da ação.
4. TEORIA ADOTADA PELO CPM
Apresentadas as três principais teorias da ação, passemos a analisar a teoria adotada pelo CPM.
NEVES e STREIFINGER apontam quatro evidências de que o CPM teria adotado a teoria causal-normativa da ação, a saber.
Quanto à localização do dolo e da culpa, o CPM os localiza na culpabilidade, conforme expressamente consignado no art. 33, diferentemente do CP, que adotou a teoria finalista após a reforma de 1984.
Comparem-se os dois dispositivos legais:
CPM |
CP |
Art. 33. Diz-se o crime: Culpabilidade I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo; II - culposo, quando o agente, deixando de empregar a cautela, atenção, ou diligência ordinária, ou especial, a que estava obrigado em face das circunstâncias, não prevê o resultado que podia prever ou, prevendo-o, supõe levianamente que não se realizaria ou que poderia evitá-lo. Excepcionalidade do crime culposo Parágrafo único. Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente. |
Art. 18 - Diz-se o crime: Crime doloso I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo; Crime culposo II - culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. Parágrafo único - Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente. |
A localização do dolo na culpabilidade exclui a teoria finalista.
No que tange à coação moral e física irresistível, o CPM as localiza na culpabilidade, ao dispor que "não é culpado...".
Confira-se:
CPM |
CP |
Art. 38. Não é culpado quem comete o crime: Coação irresistível a) sob coação irresistível ou que lhe suprima a faculdade de agir segundo a própria vontade; ........................ § 1°- Responde pelo crime o autor da coação [...]. |
Coação irresistível e obediência hierárquica Art. 22 - Se o fato é cometido sob coação irresistível [...], só é punível o autor da coação [...]. |
O CP prevê a coação irresistível, sem distinguir entre a física e a moral, mas, diferentemente do CPM, não as localiza na culpabilidade, deixando ao intérprete a possibilidade de localizar a primeira na tipicidade (ausência de conduta) e a segunda na culpabilidade.
A localização da coação física na culpabilidade é sintoma de um sistema causalista, pois, no sistema finalista, a coação física irresistível exclui a voluntariedade da conduta, eliminando, por conseguinte, a tipicidade.
Relativamente à inexigibilidade de conduta diversa, há previsão expressa no art. 39 do CPM.
Confira-se:
CPM |
CP |
Estado de necessidade, com excludente de culpabilidade Art. 39. Não é igualmente culpado quem, para proteger direito próprio ou de pessoa a quem está ligado por estreitas relações de parentesco ou afeição, contra perigo certo e atual, que não provocou, nem podia de outro modo evitar, sacrifica direito alheio, ainda quando superior ao direito protegido, desde que não lhe era razoàvelmente exigível conduta diversa. |
Não há dispositivo correspondente. |
Como se vê, a inexigibilidade de conduta diversa foi localizada na culpabilidade, o que indica a adoção da teoria causal-normativa, pois, na teoria causal-naturalista, a culpabilidade é puramente psicológica, não contendo elementos normativos.
Por fim, NEVES e STREIFINGER apontam que o CPM adotou a teoria do dolus malus, ou seja, dolo que já contém a consciência da ilicitude, conforme se verifica no art. 36, que trata do erro de fato.
Confira-se:
CPM |
CP |
Êrro de fato Art. 36. É isento de pena quem, ao praticar o crime, supõe, por êrro plenamente escusável, a inexistência de circunstância de fato que o constitui ou a existência de situação de fato que tornaria a ação legítima. Êrro culposo § 1º - Se o êrro deriva de culpa, a êste título responde o agente, se o fato é punível como crime culposo. Êrro provocado § 2º - Se o êrro é provocado por terceiro, responderá êste pelo crime, a título de dolo ou culpa, conforme o caso. |
Erro sobre elementos do tipo Art. 20 - O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei. Descriminantes putativas § 1º - É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo. Erro determinado por terceiro § 2º - Responde pelo crime o terceiro que determina o erro. |
O que se verifica no cotejo desses dispositivos é que o CP distingue o dolo da consciência da ilicitude, pois o erro de fato exclui o dolo, ao passo que o erro sobre uma causa de justificação exclui a culpabilidade ("é isento de pena"), por não haver consciência da ilicitude (o agente crê que sua ação é legítima).
No CPM não há essa distinção, excluindo-se a culpabilidade em ambos os casos, indistintamente.
Esse fato denota que o CPM adotou a teoria causal-normativa, em que o dolo contém em si a consciência da ilicitude (dolus malus).
Cabe acrescentar, ainda, as figuras do erro de direito, do CPM e de erro de proibição, do CP.
Confira-se:
CPM |
CP |
Êrro de direito
Art. 35. A pena pode ser atenuada ou substituída por outra menos grave quando o agente, salvo em se tratando de crime que atente contra o dever militar, supõe lícito o fato, por ignorância ou êrro de interpretação da lei, se escusáveis.
|
Erro sobre a ilicitude do fato Art. 21 - O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço. Parágrafo único - Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência. |
O art. 21, parágrafo único, do CP prevê a hipótese de o agente atuar com dolo, mas sem consciência da ilicitude.
Essa hipótese não é prevista no CPM, pois, segundo a teoria causal-normativa, o dolo contém em si a consciência da ilicitude (dolus malus).
Destaque-se o rigor do art. 35 do CPM, que apenas abranda a pena na hipótese de erro de direito, ao passo que o CP permite até mesmo a isenção de pena.
Essa divergência de tratamento para o mesmo fenômeno gera situações iníquas, como bem apontou ROMEIRO (1994, p. 115).
É possível vislumbrar, por exemplo, a hipótese de um soldado que recebe ordem para apreender um objeto, com ressalva expressa de que não está autorizada invasão de domicílio para o cumprimento da ordem.
O militar encontra a pessoa que está na posse do objeto, mas esta ingressa no escritório onde trabalha, local não aberto ao público.
Sem ter consciência, sequer potencial, de que o ambiente do escritório se equipara a casa, para os fins do crime de violação de domicílio (cf. art. 226, § 4º, II, do CPM e art. 150, § 4º, II, do CP), o militar invade o escritório e procede à apreensão.
Essa hipótese, sob a ótica do CP, seria enquadrada como erro de proibição[6], e isentaria o agente de pena, uma vez que não havia consciência, sequer potencial, da ilicitude do fato.
Sob a ótica do CPM, diversamente, o agente conseguiria, na melhor das hipóteses, um abrandamento da pena, pois o art. 35 do CPM não prevê isenção de pena.
Na verdade, o art. 35 do CPM é sui generis, pois, segundo a teoria causal-normativa, a hipótese seria de exclusão do dolo, por ausência de consciência da ilicitude.
Porém, essa solução seria inaceitável, porque o agente seria beneficiado por sua própria torpeza, ou seja, quanto menos conhecesse a lei, menor a chance de ser imputado.
Daí a solução sui generis do CPM, de prever apenas um abrandamento da pena em hipóteses como a ora descrita.
Contudo, solução mais equânime é obtida com a teoria finalista, por meio da separação entre o dolo, que passa a ser puramente psicológico (vontade e previsão), e a consciência da ilicitude, que passa a ser apenas potencial.
Com essa separação, torna-se possível isentar de pena o agente que não tinha condições de obter consciência da ilicitude, mantendo-se a possibilidade de se punir aquele que teria condições, mas preferiu manter-se na ignorância.
Esclareça-se que não socorreria ao agente, na hipótese acima descrita, a excludente da obediência hierárquica, pois não houve ordem para a invasão do escritório, pelo contrário, a violação de domicílio foi expressamente vedada.
Pois bem, após análise comparativa dos dispositivos acima apresentados, não resta dúvida de que CPM teve orientação causal-normativa.
Há, contudo, um dispositivo no CPM que se enquadra na teoria finalista.
É o art. 47, no ponto em que trata da qualidade de superior ou de inferior como elemento constitutivo do crime.
Confira-se:
Art. 47. Deixam de ser elementos constitutivos do crime:
I - a qualidade de superior ou a de inferior, quando não conhecida do agente;
...............................................................
Esse dispositivo sugere que a qualidade de superior ou inferior, quando prevista no tipo penal, somente constitui elemento do crime se conhecida pelo agente.
Ora, se a tipicidade é desprovida de elementos subjetivos, como preconizam as teorias causais, o fato de o agente ter ou não consciência da qualidade da vítima não teria relevância para a tipicidade.
Somente na culpabilidade, quando se examinasse o dolo, é que esse fato seria relevante, para excluir o dolo, uma vez que o agente não quis cometer crime contra superior ou inferior.
A referência à exclusão dos elementos constitutivos do crime, portanto, é um isolado caso de influência da teoria finalista no CPM, o que não é suficiente para afastar eixo causal-normativo do código castrense.
5. CONCLUSÃO
A análise da evolução do direito penal militar brasileiro revela que a legislação penal militar brasileira tem sido relegada pelo legislador nas últimas décadas.
Superada a fase da responsabilidade objetiva e dos castigos pessoais, que marcou o período colonial e a república velha, a legislação penal militar vinha sendo atualizada em conjunto com a legislação penal comum, a exemplo dos códigos penais militares de 1944 e de 1969.
Aliás, como o CP de 1969 acabou não entrando em vigor, a legislação penal militar chegou a tornou-se mais avançada do que a legislação penal comum.
Em 1984, contudo, a parte geral do CP foi atualizada sob os influxos da teoria finalista da ação, não tendo havido uma correspondente atualização do CPM.
Passados mais de trinta anos, o CPM continua relegado ao esquecimento, mantendo-se orientado por uma teoria há muito ultrapassada, a causal-normativa (neoclássica).
Esse anacronismo do CPM tem consequências nefastas para os acusados.
Para citar um exemplo, retomemos a figura vetusta do erro de direito, de origem romana, previsto no art. 35 do CPM.
No CPM, o erro de direito conduz, no máximo, a um abrandamento da pena. Diversamente, no CP, o erro de proibição, previsto no art. 21, pode conduzir à isenção de pena.
Essa discrepância gera situações iníquas, como o já citado caso da violação de domicílio em erro de proibição, em que o agente seria isento de pena sob a ótica do CP, mas condenado pelo CPM.
Reitere-se que esse problema não será resolvido com a eventual extinção da Justiça Militar, pois os crimes militares continuarão existindo, embora julgados pela Justiça comum, estadual ou federal.
É premente, portanto, uma atualização da parte geral do CPM.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, vol. 1. 11.a ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
DOTTI, René Ariel. et al. Curso de direito penal: parte geral. 4.a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.
FIGUEIREDO, Telma Angélica. Excludentes de ilicitude no Direito Penal Militar. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte geral, 4ª ed., Rio de Janeiro: Impetus, 2004.
JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal: parte geral. 1º v., São Paulo: Saraiva, 1997.
NEVES, Cícero Robson Coimbra; STREIFINGER, Marcello. Manual de Direito Penal Militar. 4.a ed., São Paulo: Saraiva, 2014.
ROMEIRO, Jorge Alberto. Curso de Direito Penal Militar: parte geral. São Paulo: Saraiva, 1994.
TEIXEIRA, Francisco Maria Pires. História do Brasil: da Colônia à República. 2.a ed. São Paulo: moderna, 1979.
VERAS, Frederico Magno de Melo. Culpabilidade nos crimes propriamente militares. São Paulo: Liv. e Ed. Universitária de Direito, 2007.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal brasileiro: parte geral. Vol. 1. 9.a ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
[1] cf. ata da 166.a reunião do CNJ, realizada em 02/04/2013.
[2] Conforme NEVES e STREIFINGER, a voluntariedade foi introduzida posteriormente na teoria causalista, quando o próprio LISZT passou a definir a ação como: "causação do resultado por um ato de vontade. Este se apresenta como movimento corpóreo voluntário, isto é, com tensão (contração) dos músculos, determinada não por coação mecância ou psicofísica, mas por ideias ou representações, e efetuada por inervação dos nervos motores. O movimento corpóreo e o resultado constituem, pois, os dois elementos igualmente importantes da ideia de ação como comissão". (2014, p. 180)
[3] Isto pressupõe que os membros da sociedade podem atuar conscientes do fim, é dizer, propor-se fins, eleger o meios requeridos para sua obtenção e pô-los em movimento com consciência do fim. Esta atividade final se chama ação. (tradução livre).
[4] “é a não produção da finalidade potencial (possível) de um homem em relação a uma determinada ação. Só aquela ação que está subordinada ao poder final do fato (domínio do fato) de uma pessoa, pode ser omitida. (...) Omissão não significa um mero não fazer nada, senão um não fazer uma ação possível subordinada ao poder final de fato de uma pessoa específica.” (tradução livre)
[5] "Como se exige o dolo para a configuração do tipo, exige-se igualmente o mesmo dolo de agir autorizadamente". (BITENCOURT, 2007, p. 305)
[6] Especificamente, trata-se de erro de um de subsunção do fato (invadir escritório) à norma proibitiva de invasão de domicílio, o que se equipara ao erro de proibição, segundo Welzel (apud BITENCOURT, 2007, p. 392).