O princípio do amplo acesso ao Judiciário, expressamente previsto no atual texto constitucional (art. 5º, XXXV), inserido nos Direitos e Garantias Fundamentais, mostra com clareza a exclusividade do controle jurisdicional sobre os direitos e deveres individuais e coletivos.
O direito à jurisdição é uma prerrogativa subjetiva do cidadão que se julga lesado ou ameaçado, nas suas garantias ou direitos legitimamente protegidos.
Assim, as decisões definitivas concernentes a uma controvérsia jurídica só podem ser julgadas pelo Poder Judiciário, visto que, fora dele, não há jurisdição.
No que se refere à coisa julgada administrativa, verifica-se que é apenas uma preclusão de efeitos internos que não tem o alcance de coisa julgada judicial.
Exauridos os meios de impugnação administrativa, torna-se irretratável, administrativamente, a última decisão, mas nem por isso deixa de ser atacável por via judicial, como leciona Hely Lopes Meirelles[1].
Os atos, procedimentos e decisões dos Tribunais de Contas são de natureza administrativa e estão sujeitos ao exame pelos órgãos do Poder Judiciário, mesmo aqueles que operaram coisa julgada administrativa pela preclusão.
Nessa linha de entendimento, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu: “A decisão que aprecia as contas dos administradores de valores públicos faz coisa julgada administrativa no sentido de exaurir as instâncias administrativas, não sendo mais suscetível de revisão naquele âmbito. Não fica, no entanto, excluída de apreciação pelo Poder Judiciário, porquanto nenhuma lesão de direito pode dele ser subtraída. 6. O art. 5º, inc. XXXV da CF/88, dispõe que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. 7. A apreciação pelo Poder Judiciário de questões que foram objeto de pronunciamento pelo TCU coaduna-se com a garantia constitucional do devido processo legal, porquanto a via judicial é a única capaz de assegurar ao cidadão todas as garantias necessárias a um pronunciamento imparcial. (STJ – REsp. 472.399/AL – 1ª Turma – DJ 19.12.2002 – p. 00351 – Rel. Min. José Delgado).
Mais recentemente, o STJ foi mais pontual ao proferir o seguinte julgamento:
“O míster desempenhado pelos Tribunais de Contas, no sentido de auxiliar os respectivos Poderes Legislativos em fiscalizar, encerra decisões de cunho técnico-administrativo e suas decisões não fazem coisa julgada, justamente por não praticarem atividade judicante. Logo, sua atuação não vincula o funcionamento do Poder Judiciário, o qual pode, inclusive, revisar as suas decisões por força Princípio Constitucional da Inafastabilidade do Controle Jurisdicional (art. 5º, XXXV, da Constituição). (REsp 1032732/CE, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 25/08/2015, DJe 08/09/2015)
Outros tribunais já vinham adotando a mesma posição:
"A lei não excluirá da apreciação do PoderJudiciário lesão ou ameaça a direito", nos termos do disposto no art. 5º , XXXV , da CF/88 . II - A decisão do Tribunal de Contas da União que aprecia as contas de Prefeitos faz coisa julgada na esfera administrativa, mas está sujeita à apreciação do Poder Judiciário, eis que o direito de ação é público e subjetivo. III - Apelação provida, com o retorno dos autos ao Juízo de origem para regular processamento do feito. TRF-1 - APELAÇÃO CIVEL AC 11112 MG 2000.38.00.011112-7 (TRF-1),
“Os atos do Tribunal de Contas, mesmo os julgamentos, não são discricionários, mas vinculados. Os primeiros possuem mérito - que é insindicável, consoante o entendimento (ainda) dominante -, sendo que os segundos são plenamente vinculados e questionáveis, nos limites admitidos por tal categoria de atos administrativos. O que ora importa sublinhar, de forma clara - já que é esse o preciso objeto da pretensão recursal -, é a efetiva possibilidade de revisão das decisões administrativas prolatadas pelo Tribunal de Contas da União, pelo Poder Judiciário, ao qual compete o controle e a tutela jurisdicionais, nos termos dos balizamentos supra delineados” (art. 5º, XXXV da CF; e art. 745, V, do CPC). Dou provimento ao recurso, para anular a sentença recorrida. (TRF2 - APELAÇÃO CIVEL: AC 340934 RJ 2000.51.01.016320-5 Relator(a): Desembargador Federal POUL ERIK DYRLUND Julgamento: 12/06/2007 Órgão Julgador: OITAVA TURMA ESPECIALIZADA Publicação: DJU - Data::15/06/2007 - Página::381
No decorrer da tramitação da tomada ou prestação de contas, quando citado, o interessado apresenta sua defesa escrita com os esclarecimentos devidos e juntada de documentos, que são analisados pela Auditoria da Corte de Contas, que pode acolhê-las ou rejeitá-las. Em seguida, o feito é encaminhado para o Ministério Público, que emite parecer favorável, contrário ou parcial.
Sobreleva ressaltar que, em sendo a defesa rejeitada pela Auditoria e o parecer ministerial no mesmo sentido, restará evidenciada a potencialidade dos argumentos desta decisão serem adotados pelo voto do Relator, seja na Câmara ou no Pleno, e com maior probabilidade de serem acolhidos pelos demais Conselheiros.
De modo que, na hipótese da defesa entender que a interpretação racional de normas foi desprezada ou que as provas foram desconsideradas, afetando a sua valoração no contexto jurídico, surge a oportunidade da propositura de uma demanda judicial de natureza declaratória ou anulatória.
Essa ação deverá pleitear o deferimento de antecipação de tutela para que suspenda aquele processo administrativo até decisão definitiva pelo órgão jurisdicional. Neste caso, na petição inicial, deverá figurar no polo passivo a União, o Estado ou o Município.
A propositura deverá vindicar o provimento judicial que reconheça a eficácia e legitimidade dos elementos probatórios não valorizados pelo Tribunal de Contas, na dimensão de suas relevâncias ou com a interpretação jurídica razoável e condizente com os fatos defensivos expostos à luz da normatividade de regência.
Se, ao final, a demanda for julgada procedente, o Tribunal de Contas, sob pena de nulidade, deverá considerar o que foi decidido judiciosamente pelo órgão judicante.
O outro momento apropriado para a judicialização é após o julgamento pela Câmara ou Plenário do Tribunal de Contas.
Aqui, é importante ressaltar que o interessado deverá apresentar recurso de reconsideração, no prazo de 15 (quinze) dias, que tem efeito suspensivo, conforme preceitua o art. 32 da Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União, cujo dispositivo é reproduzido pelos demais Tribunais de Contas, seja estadual ou municipal, e dentro deste mesmo prazo, e de forma simultânea, ingressar com a ação judicial própria com pedido de antecipação de tutela para suspender o julgamento até decisão definitiva, no âmbito do Poder Judiciário.
O recurso de reconsideração já deverá ser instruído com a petição inicial endereçada à vara fazendária.
A postulação judicial deverá estar focada na proteção dos direitos e garantias fundamentais do devido processo legal, do exercício da ampla defesa e do contraditório.
A garantia do devido processo legal deve retratar a realidade procedimental do desenrolar de todo o processo a ser materializado pela verificação de todas as formalidades e exigências normativas.
O exercício da ampla defesa é o direito à prova lícita, à paridade de tratamento, à presença em todos os atos do processo e à oportunidade de questionar e impugnar.
Já o contraditório é a garantia de bilateralidade de audiência do confronto de provas, contanto que sejam consideradas e valorizadas na importância do seu contexto conjuntural. O desvalor de provas ou seu menosprezo significará a manifesta negação do direito de defesa.
É condição de validade dos julgamentos a manifestação do julgador pelo livre convencimento, mas motivado e vinculado às alegações fundadas e às provas produzidas, circunstâncias que afastam o ato de julgar ato de vontade do pretor.
O julgador, ao ignorar a valoração de provas ou incorrer em interpretações impróprias, sem respaldo no ordenamento jurídico ou dissociado do valor das provas, se manifesta por um ato de vontade, numa posição de arbitrariedade inquisitorial.
Se, por um lado, a garantia do exercício da ampla defesa é assegurar o direito de prova ao acusado, por outro, a prova juntada ou produzida não poderá ser desconsiderada ou menosprezada pelo entendimento voluntário, sob o pretexto do livre convencimento, para assim, realizar um julgamento administrativo arbitrário, em virtude de ser dissociado da realidade processual e desprovido de base legal.
Extrai-se, desse contexto, que a aplicação de sanções é taxativa às suas tipificações, não comportando cominações com largueza ou interpretações analógicas que agravem a situação do agente.
A visão de julgar além dos limites legais induz à possibilidade de erro de valoração da prova para agregar desvalor jurídico em detrimento da defesa; ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5º, II, CF).
Com efeito, se a lei não veda, não é o intérprete que poderá fazê-lo para satisfazer a sua vontade.
A respeito do valor da prova, merecem destaques os seguintes julgados: “Valoração da prova. Erro. O erro na valoração da prova ocorre quando mal apreciado seu valor jurídico como meio de prova”. (STJ – 4ª Turma – Ag. 15.083/SP – Rel. Min. Sálvio de Figueiredo – j. em 04.12.1991 – DJU 03.02.1992, p. 472). ■ “Valoração da prova. A valorização da prova diz respeito ao valor jurídico desta, para admiti-la ou não em face da lei que a disciplina, razão por que é questão estritamente de direito”. (RTJ 132/1.337).
Quando a Carta Política condiciona a legitimidade dos julgamentos à sua necessária fundamentação é porque não admite que se releve o valor da prova produzida pelo agente, sem a indispensável motivação plausível, para que, assim, se conheça as suas razões.
Se a motivação não for justa e razoável equivale à negação ao direito de prova.
Assim, a valorização de prova diz respeito ao valor jurídico desta, no contexto da defesa, invocada em razão de disposição legal em favor de quem a produziu. Sendo a prova desprezada de forma desproporcional, na sua importância para a apuração da verdade e resultado do julgamento, esse comportamento do julgador redunda no desprestígio do valor legal da prova, implicando, assim, na negação do contraditório, cuja essência é o direito de ser ouvido, compreendido e considerado no processo com as provas produzidas.
Consiste, portanto, no exame da qualificação jurídica dos fatos, a reclamação de apreciação e pronunciamento de aspectos que não são analisados, mas pertinentes à prova, tais como: perícias, documentos públicos ou privados, oitiva de testemunhas, pareceres, decisões judiciais etc., que mereçam manifestação explícita, porque estariam relacionados ao resultado influente do deslinde.
A propósito do erro de julgar, veja-se a lição de José Afonso da Silva:
[...] os erros do juiz podem derivar de uma má interpretação das questões de fato ou da má compreensão de direito. Significa dizer que o juiz, por qualquer circunstância, não compreende o sentido das condutas (fatos) sob seu conhecimento (erro de fato), ou não compreende o sentido dos esquemas genéricos, o Direito escrito, invocados, no processo, e que orientam aquelas condutas, e lhe servem de guia na interpretação das várias intencionalidades objetos do seu juízo (erro de direito).
E José Miguel García Medina, depois de examinar no corpo de sua monografia de modo percuciente a matéria, “excluem-se das questões de fato a qualificação jurídica dos fatos, pois quando se qualifica erroneamente um fato há, em consequência, aplicação incorreta da lei”.
Por oportuno, impede-se a transcrição do seguinte julgado:
■ Valoração da prova. Relativa. Ato jurídico perfeito. Adequação à lei. A valoração da prova é relativa ao ato jurídico perfeito. Adequação da prova Constituição e à lei ordinária. Compreende admissibilidade e formação consoante o ordenamento jurídico. A primeira é consentimento, constatável em plano meramente normativo. A segunda, porque relacionada com os princípios de realização, própria também da experiência jurídica, não se confunde com a interpretação da prova, ou seja, avaliação dos dados fáticos elaborada pelo magistrado. (STJ – REsp. 112087/DF – 6ª Turma – DJ 27.10.1997 – p. 54.843 – Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro)
A pertinência temática se apresenta oportuna diante de algumas posições adotadas pelas auditorias, pareceres ministeriais e decisões de natureza administrativa que se imiscuem nos limites da garantia do poder discricionário dos gestores públicos, repelem a ilegitimidade ativa de atos e a competência da responsabilidade de ordenação de despesas, assim como atribuem para a responsabilidade de ressarcimento de despesas cujos serviços foram prestados ou produtos fornecidos, numa sugestão de enriquecimento sem causa para o erário.
Por fim, recomenda-se que a ação judicial seja proposta contra a Entidade Pública (União, Estado ou Município), porque “na ação em que um particular argúi a nulidade de ato administrativo emanado pelo Tribunal de Contas estadual, é o próprio Estado, dotado de personalidade jurídica, quem deve ser arrolado como legitimado passivo, porquanto, como regra geral, referido órgão não possui capacidade processual”. (TJ-PR - AI: 5125431 PR 0512543-1, Relator: Abraham Lincoln Calixto, Data de Julgamento: 26/05/2009, 4ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ: 192).
E mais:
“Os Tribunais de Contas são partes ilegítimas para figurarem no pólo passivo de ação ordinária visando desconstituir ato de sua competência”. (STJ - REsp 504.920⁄SE, Rel. Ministro José Delgado, DJ 13⁄10⁄03).
[1] Direito Administrativo Brasileiro, 27ª Ed., Malheiros Editores: São Paulo, 2001, p. 649.