3. Incapacidade do Menor e a Capacidade para Consentir
Conforme se percebe no que fora acima descrito, é bastante complicado o embate entre dois direitos constitucionais - quais sejam: o direito à vida e o direito à liberdade religiosa. Esse confronto pode ser observado na recusa da transfusão de sangue pelas testemunhas de Jeová. Se a transfusão de sangue for realizada contra sua vontade, para salvar sua vida, estaria se ferindo a sua liberdade de crença. Por outro viés, se respeitasse a autonomia e autodeterminação do paciente em recusar o referido tratamento, estaria se ferindo o direito constitucional à vida.
Percebe-se, diante disso, quão sensível é esta situação. Se há a dificuldade em solucionar uma situação na qual esteja envolvido um paciente que seja testemunha de Jeová capaz, imaginemos, pois, a extrema dificuldade que envolva um menor de idade, ou seja, um incapaz. Os pais, curadores ou tutores teriam liberdade para recusarem um tratamento que venha a salvar a vida daqueles que estão sob sua responsabilidade? Vejamos.
Bem, o entendimento aparentemente mais razoável é o seguinte: O instituto da incapacidade (que abarca entre outros sujeitos, os menores de idade) é disposto em nosso ordenamento jurídico no intuito de proteger e salvaguardar o interesse dos incapazes. Seria, de certa forma, desarrazoada a recusa da transfusão de sangue para o incapaz pelos pais, tutores ou curadores, pelo simples fato de que, nessa situação, não se está decidindo sobre sua própria vida mas, sim, pela vida de um terceiro incapaz que, em virtude da idade, não tem a capacidade de responder pelos próprios atos. Por isso, entende-se que ainda que haja a melhor das intenções por parte dos responsáveis do menor, não seria de bom senso abrir mão da vida dele por convicções religiosas.
É interessante ressaltar, ainda, que a depender da idade do menor e dependendo do seu grau de amadurecimento, seria possível levar em consideração a manifestação de sua vontade. Vamos imaginar um adolescente de 15 anos de idade. Ora, ainda que seja considerado de menor pelas nossas leis, compreende-se que ele já é dotado de certo discernimento, inclusive no que diz respeito a sua saúde.
Nesse sentido, vejamos o que dispõe o inciso II, do art. 16 do Estatuto da Criança e do Adolescente: “Art. 16. O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos: II - opinião e expressão.” Por este motivo, o entendimento mais razoável se pauta naquele em que se respeita a opinião do menor quando já se identificar que o mesmo tem possibilidade de decidir sobre alguns de seus direitos. Caso haja conflito entre a vontade desse menor e a vontade de seus responsáveis legais, haveria uma intervenção judicial no intuito de resguardar os interesses desse incapaz.
Agora, quando estamos diante de um menor de idade que não tenha qualquer tipo de discernimento sobre as coisas, o cenário é outro. A título de exemplo, imaginemos uma criança de 4 anos de idade. É nítida a situação de ausência de discernimento por parte desse menor.
Nessa situação, quando da recusa da transfusão de sangue por parte de seus responsáveis, poderia uma pessoa interessada na situação ou até mesmo o próprio Ministério Público, requerer uma autorização judicial para que o procedimento da transfusão se efetive. O próprio médico, inclusive, ao verificar a necessidade da transfusão para o menor, poderia requerer essa autorização judicial.
Por isso, repete-se mais uma vez: ainda que haja a melhor das intenções por parte dos responsáveis, ainda que não se conformem com uma possível autorização judicial, há de se entender que se está diante da vida de outra pessoa - isso torna a discussão do assunto ainda mais sensível.
Com base no que foi descrito acima, quanto ao médico que venha a realizar a transfusão de sangue no menor, acredita-se que se ele estiver certo de que realizou o procedimento para salvar sua vida, que não havia tratamento alternativo para melhorar a sua situação clínica ou quando o mesmo estiver munido de uma autorização judicial, não seria razoável falar em sua punição, já que ele estaria amparado pelo dever legal da profissão, qual seja, o de salvar vidas.
4. O STJ e a transfusão de sangue em testemunhas de Jeová
Nota-se, claramente, quão difícil foi o trabalho do Superior Tribunal de Justiça ao se deparar com esta celeuma. Diante da situação, percebe-se a eclosão de situações opostas: de um lado, a autonomia da vontade do paciente em decidir o que será feito com o próprio corpo e, de outro, a “direito-dever” da vida. E não é só – no meio de tudo isso, encontra-se o médico e sua autonomia profissional que pode vir a ser limitada, dependendo das circunstâncias.
Ao que parece mais razoável, torna-se necessária a aplicação de certos pesos e medidas para cada situação fática. Ou seja, deve-se buscar, o máximo possível, a coexistência de ambos os direitos. No entanto, certas situações estarão em seu limite. No caso em que estiver diante de um risco de morte iminente, conforme dito acima, o médico tenderá a preservar a vida do paciente, ainda que contra sua vontade e, assim sendo, necessariamente, sacrificará o direito à liberdade religiosa.
Um caso concreto acerca do assunto chegou ao STJ para ser decidido – está se falando do julgamento do HC N. 268.459/SP. Em 1993, os pais de uma menina de 13 anos, ambos testemunhas de Jeová, foram encaminhados a Júri Popular pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Denunciados pelo Ministério Público, em 1997, foram acusados do crime de homicídio. Para esse Tribunal, ambos teriam cometido o crime ao recusarem a transfusão de sangue em sua filha, que corria risco de morte iminente em virtude de uma grave leucemia. Segue o detalhamento do caso:
“A filha do casal sofria de anemia falciforme, uma doença sanguínea rara que deforma as hemoglobinas. Ela foi levada pelos pais ao Hospital São José durante uma crise na qual seus vasos estavam obstruídos. A mãe chegou a dizer que preferia ver a filha morta do que vê-la receber a transfusão. Era 22 de julho de 1993. Em 1997, o casal foi denunciado pela promotoria sob a acusação de homicídio. Para o Ministério Público, os pais da vítima, "apesar de todos os esclarecimentos feitos por médicos do hospital recusaram-se a permitir a transfusão de sangue no paciente, invocando preceitos religiosos da seita Testemunhas de Jeová, da qual eram adeptos".[16]
Dois ministros da 6ª Turma do STJ, o ministro Sebastião Reis Júnior e a ministra Maria Theresa de Assis Moura, em 2014, entenderam pela não constituição de crime a recusa pela transfusão de sangue, por acreditarem que o fato constituía uma atipicidade, na medida em que os pais estavam movidos pela emoção e pela convicção religiosa.
O entendimento desses ministros foi encarado como verdadeira vitória às testemunhas de Jeová, haja vista o reconhecimento da liberdade plena religiosa. Segundo Alexandre de Morais[17],
(...)a tensão entre a dupla proteção conferida pela consagração à liberdade religiosa é máxima, pois os pais não podem ser constrangidos a renunciar à sua própria fé, não podendo existir mandamento legal forçando-os a autorizar o procedimento contrário a seus dogmas religiosos, e, consequentemente, não podem ser responsabilizados criminalmente por sua conduta omissiva, uma vez que a Constituição Federal lhes garante sua opção religiosa; ao mesmo tempo em que o Estado, mantendo sua total liberdade de atuação em relação a esse dogma religioso, deve efetivar a proteção aos direitos fundamentais, determinando aos profissionais responsáveis pela saúde pública e privada a realização de todos os procedimentos necessários à preservação da vida, independentemente das convicções religiosas dos pais ou parentes daquele que necessita do tratamento médico.
Ao que parece, ainda faltava a opinião de outros ministros no julgamento desse Habeas Corpus. Finalmente, em 2015, após o caso percorrer por mais de 20 anos na justiça, foi decidido pelo trancamento da ação Penal, firmando-se o entendimento de que os pais não poderiam ser responsabilizados pela morte da filha já que, embora tivessem sido contra a transfusão, não poderiam impedir sua realização uma vez que a menina encontrava-se internada (sob a custódia do hospital).
O voto da relatora (que foi diferente dos votos da maioria dos ministros), que partiu da conclusão lançada pelos dois votos vencidos, foi bastante emocionante. Em uma de suas falas, argumenta que o consentimento informado é considerado, hoje, um dos grandes temas da Bioética e que deve ser levado em consideração.
Ademais, o Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como própria Constituição Federal, preveem normas que asseguram a proteção integral à saúde da criança e do adolescente. Senão, vejamos o que disse a relatora:
Extrai-se do artigo 227 do Texto Maior, que é "dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem, admitida a participação de entidades não governamentais, mediante políticas específicas".
No artigo 7º do Estatuto da Criança e do Adolescente, estatui-se que a "criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência".
O direito à saúde, insculpido na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, é direito indisponível, em função do bem comum, maior a proteger, derivado da própria força impositiva dos preceitos de ordem pública que regulam a matéria.[18]
Diante dos argumentos expostos pela relatora, muito embora os pais tenham negado o consentimento à realização da transfusão de sangue, nada impedia dela ser realizada. Em seu entendimento, acredita que se houve alguma falha, esta foi dos médicos responsáveis pela internação que ausente um tratamento alternativo, não procederam com a transfusão de sangue, não cumprindo com o dever de salvar a vida da garota. Logo após a defesa de seu entendimento, a relatora destaca:
Um viés humanitário, concernente ao sofrimento que esses pais já passaram, não só pela perda da filha (o que já não é pouco), mas, também, pelo tempo que este processo se arrasta. De pronto, verifico a impossibilidade do reconhecimento do perdão judicial, que demanda a prévia condenação. Todavia, dadas as feridas que não puderam ser cicatrizadas pelo transcurso do tempo, mas, pelo contrário, eram, frequentemente, reabertas pelo evolver processual, acredito que o atroz sofrimento amargado por toda essa via crucis já representou reprimenda mais intensa que qualquer privação de liberdade possa infligir.
Deste modo, percebe-se que neste caso concreto, o Judiciário entendeu pela não culpabilidade dos pais que negaram a transfusão, uma vez que a mesma poderia ter sido realizada independente de sua vontade, já que a situação configurava risco de morte à adolescente caracterizando, assim, dever dos médicos de procederem com todos os meios necessários para a preservação da vida da paciente.
Muito embora o trancamento dessa ação penal já seja considerado um passo importante do judiciário, não resolveu a instabilidade da situação. Afinal de contas, ainda inexiste um precedente que norteie a tomada de qualquer decisão que envolva a transfusão de sangue em testemunhas de Jeová, mas, tão somente, resoluções e pareceres do Conselho Federal de Medicina. Inexistem, ainda, regras jurídicas que disciplinem sem instabilidades situações como essa. Resta-nos, pois, esperar para que o ordenamento jurídico apresente um norte que deva ser seguido tanto pelos médicos, como pelos adeptos dessa religião.