12. Direito à origem genética como direito da personalidade, sem vínculo com o estado de filiação
O estado de filiação, que decorre da estabilidade dos laços afetivos construídos no cotidiano de pai e filho, constitui fundamento essencial da atribuição de paternidade ou maternidade. Nada tem a ver com o direito de cada pessoa ao conhecimento de sua origem genética. São duas situações distintas, tendo a primeira natureza de direito de família e a segunda de direito da personalidade. As normas de regência e os efeitos jurídicos não se confundem nem se interpenetram.
Para garantir a tutela do direito da personalidade não há necessidade de investigar a paternidade. O objeto da tutela do direito ao conhecimento da origem genética é assegurar o direito da personalidade, na espécie direito à vida, pois os dados da ciência atual apontam para necessidade de cada indivíduo saber a história de saúde de seus parentes biológicos próximos para prevenção da própria vida. Não há necessidade de se atribuir a paternidade a alguém para se ter o direito da personalidade de conhecer, por exemplo, os ascendentes biológicos paternos do que foi gerado por dador anônimo de sêmen, ou do que foi adotado, ou do que foi concebido por inseminação artificial heteróloga. São exemplos como esses que demonstram o equivoco em que laboram decisões que confundem investigação da paternidade com direito à origem genética.
Em contrapartida, toda pessoa humana tem direito inalienável ao estado de filiação, quando não o tenha. Apenas nessa hipótese, a origem biológica desempenha papel relevante no campo do direito de família, como fundamento do reconhecimento da paternidade ou da maternidade, cujos laços não se tenham constituído de outro modo (adoção, inseminação artificial heteróloga ou posse de estado). É inadmissível que sirva de base para vindicar novo estado de filiação, contrariando o já existente.
Como já tivemos oportunidade de afirmar alhures 22, a evolução do direito conduz à distinção, que já se impõe, entre pai e genitor ou procriador. Pai é o que cria. Genitor é o que gera. Esses conceitos estiveram reunidos, enquanto houve primazia da função biológica da família. Ao ser humano, concebido fora da comunhão familiar dos pais socioafetivos, e que já desfruta do estado de filiação, deve ser assegurado o conhecimento de sua origem genética, ou da própria ascendência, como direito geral da personalidade, como decidiu o Tribunal Constitucional alemão em 1997, mas sem relação de parentesco ou efeitos de direito de família tout court 23 . Nesse sentido, dispõe a lei francesa nº 2002-93, de 22 de janeiro de 2002, sobre o acesso às origens das pessoas adotadas e dos "pupilos do Estado" (filhos de pais desconhecidos ou que perderam o poder familiar, enquanto aguardam inserção em família substituta). A lei francesa tem por fito a necessidade das informações sobre a sanidade, identidade e as condições genéticas básicas, no interesse dos menores, para que possam utilizá-los, principalmente quando adquirirem a maioridade, ou de seus descendentes, para fins de saúde pública e dos próprios, sem qualquer finalidade de parentesco legal. O Direito espanhol, ao admitir excepcionalmente a revelação da identidade do doador do material fecundante, expressamente exclui qualquer tipo de direito alimentar ou sucessório entre o indivíduo concebido e o genitor biológico.
Toda pessoa tem direito fundamental, na espécie direito da personalidade, de vindicar sua origem biológica para que, identificando seus ascendentes genéticos, possa adotar medidas preventivas para preservação da saúde e, a fortiori, da vida. Esse direito é individual, personalíssimo, não dependendo de ser inserido em relação de família para ser tutelado ou protegido. Uma coisa é vindicar a origem genética, outra a investigação da paternidade. A paternidade deriva do estado de filiação, independentemente da origem (biológica ou não). O avanço da biotecnologia permite, por exemplo, a inseminação artificial heteróloga, autorizada pelo marido (art. 1.597, V, do Código Civil), o que reforça a tese de não depender a filiação da relação genética do filho e do pai. Nesse caso, o filho pode vindicar os dados genéticos de dador anônimo de sêmen que constem dos arquivos da instituição que o armazenou, para fins de direito da personalidade, mas não poderá fazê-lo com escopo de atribuição de paternidade. Conseqüentemente, é inadequado o uso da ação de investigação de paternidade, para tal fim.
Os desenvolvimentos científicos, que tendem a um grau elevadíssimo de certeza da origem genética, pouco contribuem para clarear a relação entre pais e filho, pois a imputação da paternidade biológica não determina a paternidade jurídica. O biodireito depara-se com as conseqüências da dação anônima de sêmen humano ou de material genético feminino. Nenhuma legislação até agora editada, nenhuma conclusão da bioética, apontam para atribuir a paternidade aos que fazem dação anônima de sêmen aos chamados bancos de sêmen de instituições especializadas ou hospitalares. Em suma, a identidade genética não se confunde com a identidade da filiação, tecida na complexidade das relações afetivas, que o ser humano constrói entre a liberdade e o desejo.
O Supremo Tribunal Federal firmou orientação polêmica, fundada sobretudo no princípio da dignidade da pessoa humana, garantindo ao réu o direito de recusa ao exame de DNA, mas negando ao outro o direito de conhecer sua origem genética. A ementa do acórdão, no HC-71.373-RS (DJ de 22.11.96), sendo relator o Ministro Marco Aurélio, expressa bem esse entendimento:
INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE – EXAME DE DNA – CONDUÇÃO DO RÉU "DEBAIXO DE VARA". Discrepa, a mais não poder, de garantias constitucionais implícitas e explícitas – preservação da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano, do império da lei e da inexecução específica e direta de obrigação de fazer – provimento judicial que, em ação civil de investigação de paternidade, implique determinação no sentido de o réu ser conduzido ao laboratório, "debaixo de vara", para coleta do material indispensável à feitura do exame DNA. A recusa resolve-se no plano jurídico-instrumental, consideradas a dogmática, a doutrina e a jurisprudência, no que voltadas ao deslinde das questões ligadas à prova dos fatos.
Já o Superior Tribunal de Justiça orientou-se em sentido contrário. A Quarta Turma do Tribunal, por unanimidade, sendo relator o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, no Recurso Especial n.º 140.665-MG (DJ de 03.11.98), decidiu que "na fase atual da evolução do Direto de Família, não se justifica inacolher a produção de prova genética pelo DNA, que a Ciência tem proclamado idônea e eficaz", em caso envolvendo reconhecimento judicial de paternidade.
A divergência jurisprudencial reflete a confusão que se faz entre direito da personalidade, inerente e inato à pessoa, em seu âmbito individual e personalíssimo, e o reconhecimento ou contestação do estado de filiação, que pode ou não ter origem biológica. O STF fundamentou-se em garantias constitucionais do indivíduo (princípios e direitos da personalidade), para imunizá-lo do exame de DNA, determinado por ordem judicial. Porém, seria lesivo à dignidade da pessoa humana e invasivo da intimidade, submeter alguém ao exame, extraindo-lhe uma gota de sangue, um cabelo ou um fragmento de unha? A orientação do STF é correta quanto ao impedimento que provoca da utilização equivocada da origem genética para negar o estado de filiação já constituído. Todavia, seu amplo alcance pode comprometer o conhecimento da origem genética com intuito exclusivo de tutela do direito da personalidade do interessado, fundado no mesmo princípio da dignidade da pessoa humana, ainda que não produza efeitos de negar o estado de filiação de origem não biológica comprovadamente constituído na convivência familiar duradoura. Se houver colisão de direitos, com base no mesmo princípio constitucional, os critérios hermenêuticos do balanceamento ou ponderação dos interesses não recomendam que um seja previamente sacrificado em benefício do outro. Em tese, negar o direito ao conhecimento da origem genética é tão lesivo ao princípio da dignidade da pessoa humana quanto a submissão compulsória a exame. Apenas o caso concreto indicará quando um deverá prevalecer sobre o outro.
Conclusão
O direito à filiação não é somente um direito da verdade. É, também, em parte, um direito da vida, do interesse da criança, da paz das famílias, das afeições, dos sentimentos morais, da ordem estabelecida, do tempo que passa (...) 24
No estágio em que se encontram as relações familiares no Brasil, ante a evolução do direito, do conhecimento científico e cultural e dos valores sociais, não se pode confundir estado de filiação e origem biológica. Esta não mais determina aquele, pois desapareceram os pressupostos que a fundamentavam, a saber, a exclusividade da família matrimonializada, a legitimidade da filiação, o interesse prevalecente dos pais, a paz doméstica e as repercussões patrimoniais.
O estado de filiação é gênero, do qual são espécies a filiação biológica e a filiação não biológica. Ainda que ele derive, na grande maioria dos casos, do fato biológico, por força da natureza humana, outros fatos o determinam, a saber, a adoção, a posse do estado de filiação e a inseminação artificial heteróloga. Assim, para abranger todo o universo de situações existenciais reconhecidas pelo direito, o estado de filiação tem necessariamente natureza cultural (ou socioafetiva).
A origem biológica presume o estado de filiação, ainda não constituído, independentemente de comprovação de convivência familiar. Neste sentido, a investigação da origem biológica exerce papel fundamental para atribuição da paternidade ou maternidade e, a fortiori, do estado de filiação, quando ainda não constituído. Todavia, na hipótese de estado de filiação não biológica já constituído na convivência familiar duradoura, comprovado no caso concreto, a origem biológica não prevalecerá. Em outras palavras, a origem biológica não se poderá contrapor ao estado de filiação já constituído por outras causas e consolidado na convivência familiar (Constituição, art. 227).
O conflito entre pais biológicos e pais não biológicos do filho menor, não mais se resolve pela primazia dos primeiros ou dos segundos. A solução do conflito mudou o foco dos interesses, dos pais para os filhos. A Convenção Internacional dos Direitos da Criança, de 1989, com força de lei ordinária no Brasil, desde 1990, estabelece que todas as ações relativas às crianças devem considerar, primordialmente, o melhor interesse da criança, em face dos interesses dos pais. Essa norma, inteiramente conforme com a Constituição, foi absorvida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pelo Código Civil de 2002.
Questão relevante diz respeito ao estado de filiação constituído a partir de fatos ilícitos (por exemplo, seqüestro de criança, falsidade documental, troca consciente de recém-nascidos). Também nessas situações, não haverá automático predomínio da origem biológica, quando o estado de filiação perdurar no tempo. A solução adequada considerará o caso concreto, com fundamento no princípio do melhor interesse da criança que, apesar da repulsa ao fato originário, poderá não coincidir com os dos pais biológicos.
Por fim, o direito ao conhecimento da origem genética não significa necessariamente direito à filiação. Sua natureza é de direito da personalidade, de que é titular cada ser humano. A origem genética apenas poderá interferir nas relações de família como meio de prova para reconhecer judicialmente a paternidade ou maternidade, ou para contestá-la, se não houver estado de filiação constituído, nunca para negá-lo.
Notas
1 Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, tomo 7, p. 6.
2 A repersonalização das relações de família. In: BITTAR: Carlos Alberto (Org.). O direito de família na Constituição de 1988. São Paulo, Ed. Saraiva, 1989, p. 53-82; O Exame de DNA e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre, ano I, nº 1, p. 67-78, abr./jun. 1999; Princípio jurídico da afetividade na filiação. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Anais do II Congresso Brasileiro de Direito de Família: A família na travessia do milênio. Belo Horizonte: OAB-MG/IBDFAM, 2000, p. 245-54; Código Civil Comentado:Direito de Família. Relações de Parentesco. Direito Patrimonial. In: AZEVEDO, Álvaro Villaça (Org.). Código Civil Comentado., São Paulo: Atlas, 2003, vol. XVI.
3 Cf. transcrição de WADLINGTON, Walter; O’BRIEN. Family law statutes, international conventions and uniform laws. New York: Foundation Press, 2000, p.135 e 148.
4 Cf. Curso de Direito Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002, vol. 5, p. 380.
5 Cf. POCAR, Valerio; RONFANI, Paola. La famiglia e il diritto. Roma: Laterza, 2001, p. 206-7.
6 Sobre o conceito de lugar, como importante contribuição da psicanálise, cf. PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Família, Direitos Humanos, Psicanálise e inclusão social. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre, n. 16, p. 5-11, jan./mar. 2003, p. 8): "A partir de LACAN e LÉVI-STRAUSS, podemos dizer que família é uma estruturação psíquica em que cada membro ocupa um lugar, uma função. Lugar de pai, lugar da mãe, lugar dos filhos, sem, entretanto, estarem necessariamente ligados biologicamente. Tanto é assim, uma questão de lugar, que um indivíduo pode ocupar o lugar de pai e mãe, sem que seja o pai ou a mãe biológicos."
7 Cf. OLIVEIRA, Guilherme de. Critério Jurídico da Paternidade. Coimbra: Almedina, 2003, p.445.
8 O modelo constitucional da filiação: verdade e superstições. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, nº 2, jul./set. 1999, p. 138-9.
9 Cf. LEITE, Eduardo de Oliveira. Procriações artificiais e o direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 203.
10 AC 108.417-9 - 2ª C.Civ. - Ac. 20.110. - Rel. Des. Accácio Cambi - unân. - J. 12.12.2001.
11 Para FACHIN, Luiz Edson, "o teor desse novo dispositivo consagra situações jurídicas conhecidas e também abre espaço para novas formulações já em construção, especialmente a socioafetiva cabível em ‘outra origem’" (Comentários ao Novo Código Civil: Do direito de família. Do direito pessoal. Das relações de parentesco. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Comentários ao Novo Código Civil. Rio: Forense, 2003, Vol. XVIII. p.17).
12 FACHIN, Luiz Edson, Da paternidade: relação biológica e afetiva, Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p.125.
13 PEREIRA, Tânia da Silva. O princípio do "melhor interesse da criança": da teoria à prática. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre, n. 6, p. 31-49, jul/set. 2000, p.36.
[14] BRUÑOL, Miguel Cillero, Infância, autonomía y derechos: una cuestión de principios. Infancia: Boletin del Instituto Interamericano del Niño – OEA, n. 234, p. 1-13, oct. 1997, p.8.
[15] POCAR; RONFANI, 2001, op.cit., p. 207.
16 Cf. SCHLÜTER, Wilfried. Código Civil Alemão: Direito de Família.Trad. Elisete Antoniuk. Porto Alegre: Fabris, 2002, p. 343.
17 VILLELA, João Baptista. O modelo constitucional da filiação: verdade e superstições. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre, nº 2, p. 121-142, jul./set. 1999, p. 128.
18 Art. 27. O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de justiça.
19 No STJ, as 3ª e 4ª Turmas, após divergências havidas entre elas, convergiram para o entendimento de somente incidir o prazo decadencial previsto no CC-1916, se, quando da vigência do art. 27. do ECA, o filho já não havia decaído de seu direito (4 anos posteriores à maioridade) à impugnação. Todavia, a Seção de Direito Privado do STJ mudou essa orientação decidindo que o "direito do filho de obter a declaração de sua real filiação é insuscetível de decadência", inclusive para as situações anteriores ao advento do art.27/ECA, e por força deste e da Constituição (neste caso, sem dizer qual a norma). Como se vê, confunde "real filiação" com origem biológica. Cf. Resp 208.788/SP, DJU 22.04.2003, p. 232.
20 CORNU, Gerard. Droit Civil: La Famille. 8e. édition. Paris, Montchrestien, 2003, p. 324-6.
21 VILLELA, 1999, op. cit., p. 140.
22 LÔBO, O exame de DNA e o princípio da dignidade da pessoa humana, 1999, p. 72.
23 Cf. SCHLÜTER, 2002, op. cit., p. 342.
24 CORNU, 2003, op. cit., p. 325.