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Direito ao estado de filiação e direito à origem genética:

uma distinção necessária

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16/01/2004 às 00:00
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Na tradição do direito de família brasileiro, o conflito entre a filiação biológica e a filiação socioafetiva sempre se resolveu em benefício da primeira. Em verdade, apenas recentemente a segunda passou a ser cogitada seriamente pelos juristas, como categoria própria, merecedora de construção adequada.

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Estados de filiação biológica e não biológica; 3. Estado de filiação derivado de inseminação artificial heteróloga; 4. Posse do estado de filiação; 5. "Adoção à brasileira" e a verdade do registro civil; 6. Afetividade como direito e dever jurídicos; 7. Fundamentação constitucional e no Código Civil; 8. O critério do melhor interesse do filho para solução do conflito entre filiação biológica e não-biológica; 9. Pater is est – redirecionando da legitimidade para o estado de filiação em geral; 10. Sobre a imprescritibilidade do exercício da contestação da paternidade e da impugnação do estado de filiação; 11. Afinal qual é a verdade real da filiação?; 12. Direito à origem genética como direito da personalidade, sem vínculo com o estado de filiação; 13. Conclusão


1. Introdução

Na tradição do direito de família brasileiro, o conflito entre a filiação biológica e a filiação socioafetiva sempre se resolveu em benefício da primeira. Em verdade, apenas recentemente a segunda passou a ser cogitada seriamente pelos juristas, como categoria própria, merecedora de construção adequada. Em outras áreas do conhecimento, que têm a família como objeto de investigação, a exemplo da sociologia, da psicanálise, da antropologia, a relação entre pais e filhos fundada na afetividade sempre foi determinante para sua identificação.

No direito, a verdade biológica converteu-se na "verdade real" da filiação em decorrência de fatores históricos, religiosos e ideológicos que estiveram no cerne da concepção hegemônica da família patriarcal e matrimonializada e da delimitação estabelecida pelo requisito da legitimidade. Legítimo era o filho biológico, nascido de pais unidos pelo matrimônio; os demais seriam ilegítimos. Ao longo do século XX, a legislação brasileira, acompanhando uma linha de tendência ocidental, operou a ampliação dos círculos de inclusão dos filhos ilegítimos, com redução de seu intrínseco quantum despótico, comprimindo o discrime até ao seu desaparecimento, com a Constituição de 1988. Com efeito, se todos os filhos são dotados de iguais direitos e deveres, não mais importando sua origem, perdeu qualquer sentido o conceito de legitimidade nas relações de família, que consistiu no requisito fundamental da maioria dos institutos do direito de família. Por conseqüência, relativizou-se o papel fundador da origem biológica.

Ao mesmo tempo em que o direito de família sofreu tão intensas transformações, em seu núcleo estrutural, consolidou-se a refinada elaboração dos direitos da personalidade, nas últimas décadas, voltados à tutela do que cada pessoa humana tem de mais seu, como atributos inatos e inerentes, alcançando-se o que Pontes de Miranda denominou "um dos cimos da dimensão jurídica". [1] São dois universos distintos, pois o direito de família volta-se aos direitos e deveres das pessoas, hauridos do grupo familiar, e os direitos da personalidade aos que dizem com a pessoa em si, sem relação originária com qualquer outra ou com grupo. A origem genética da pessoa, tendo perdido seu papel legitimador da filiação, máxime na Constituição, migrou para os direitos da personalidade, com finalidades distintas.

O estado de filiação desligou-se da origem biológica e de seu consectário, a legitimidade, para assumir dimensão mais ampla que abranja aquela e qualquer outra origem. Em outras palavras, o estado de filiação é gênero do qual são espécies a filiação biológica e a filiação não biológica. Daí, é de se repelir o entendimento que toma corpo nos tribunais brasileiros de se confundir estado de filiação com origem biológica, em grande medida em virtude do fascínio enganador exercido pelos avanços científicos em torno do DNA. Não há qualquer fundamento jurídico para tal desvio hermenêutico restritivo, pois a Constituição estabelece exatamente o contrário, abrigando generosamente o estado de filiação de qualquer natureza, sem primazia de um sobre outro.

Na realidade da vida, o estado de filiação de cada pessoa humana é único e de natureza socioafetiva, desenvolvido na convivência familiar, ainda que derive biologicamente dos pais, na maioria dos casos. Portanto, não pode haver conflito com outro que ainda não se constituiu.

Os argumentos a seguir expendidos prosseguem na mesma linha traçada em trabalhos anteriores, que publicamos. [2] Nos últimos anos, divisamos dois marcos essenciais para a solução do eventual conflito entre filiação biológica e filiação não biológica: a Constituição de 1988 e a Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembléia Geral da ONU em 20.11.1989, e com força de lei no Brasil mediante o Decreto Legislativo nº 28, de 24.9.1990, e o Decreto Executivo nº 99.710, de 21.11.1990. Da Constituição derivam o estado de filiação biológico e não-biológico e o direito da personalidade ä origem genética e da Convenção a solução do conflito pela aplicação do princípio do melhor interesse do filho, que significou verdadeiro giro de Copérnico, na medida em que a primazia do interesse dos pais foi transferida para o do filho.


2. Estados de filiação biológica e não biológica

Filiação é conceito relacional; é a relação de parentesco que se estabelece entre duas pessoas, uma das quais é considerada filha da outra (pai ou mãe). O estado de filiação é a qualificação jurídica dessa relação de parentesco, atribuída a alguém, compreendendo um complexo de direitos e deveres reciprocamente considerados. O filho é titular do estado de filiação, da mesma forma que o pai e a mãe são titulares dos estados de paternidade e de maternidade, em relação a ele.

Na doutrina, o estado de filiação não tem merecido o tratamento devido, sem embargo de sua evidente essencialidade, salvo quando se cuida do estado de fato, na modalidade de posse de estado, ou do reconhecimento voluntário ou forçado. Todavia, são situações que têm por fito comprovar a existência de estado de filiação, quando este seja objeto de dúvida ou litígio.

O estado de filiação constitui-se ope legis ou em razão da posse de estado, por força da convivência familiar (a fortiori, social), consolidada na afetividade. Nesse sentido, a filiação jurídica é sempre de natureza cultural (não necessariamente natural), seja ela biológica ou não biológica.

No direito brasileiro atual, com fundamento no art. 227 da Constituição e nos arts. 1.593, 1.596 e 1.597 do Código Civil, consideram-se estados de filiação ope legis:

a)filiação biológica em face de ambos os pais, havida de relação de casamento ou da união estável, ou em face do único pai ou mãe biológicos, na família monoparental;

b)filiação não-biológica em face de ambos pais, oriunda de adoção regular; ou em face do pai ou da mãe que adotou exclusivamente o filho; e

c)filiação não-biológica em face do pai que autorizou a inseminação artificial heteróloga.

Nessas hipóteses, a convivência familiar e a afetividade são presumidas, ainda que de fato não ocorram. Se qualquer forma, a convivência familiar e a afetividade constroem e consolidam diuturnamente os respectivos estados de filiação, passando a ditar-lhes os contornos. Em qualquer dessas hipóteses, o estado de filiação poderá ser substituído, em razão de adoção superveniente do filho por outros pais.

Os estados de filiação não-biológica referidos nas alíneas b e c são irreversíveis e invioláveis, não podendo ser contraditados por investigação de paternidade ou maternidade, com fundamento na origem biológica, que apenas poderá ser objeto de pretensão e ação com fins de tutela de direito da personalidade.


3. Estado de filiação derivado de inseminação artificial heteróloga

A inseminação artificial heteróloga, prevista no art. 1.597, V, do Código Civil, dá-se quando é utilizado sêmen de outro homem, normalmente dador anônimo, e não o do marido, para a fecundação do óvulo da mulher. A lei não exige que o marido seja estéril ou que, por qualquer razão física ou psíquica, não possa procriar. A única exigência é que tenha o marido previamente autorizado a utilização de sêmen estranho ao seu. A lei não exige que haja autorização escrita, apenas que seja "prévia", razão porque pode ser verbal e comprovada em juízo como tal.

Por linhas invertidas, a tutela legal desse tipo de concepção vem fortalecer a natureza fundamentalmente socioafetiva, e não biológica, da filiação e da paternidade. Se o marido autorizou a inseminação artificial heteróloga, não poderá negar a paternidade, em razão da origem genética, nem poderá ser admitida investigação de paternidade, com idêntico fundamento, máxime em se tratando de dadores anônimos.

Nos Estados Unidos, o Uniform Parantage Act, de 1973 e 1987, estabelece que "se, sob a supervisão de um médico habilitado e com o consentimento do marido, a mulher for inseminada artificialmente com sêmen doado por um outro homem, o marido é considerado legalmente como se fosse o pai natural da criança concebida. O consentimento deve ser escrito pelo marido e pela mulher". Toda a documentação relativa à inseminação será mantida pelo médico responsável, sujeita a inspeção judicial. O Uniform Status of Children of Assisted Conception Act, de 1988/1997, estabelece que o dador do sêmen ou do óvulo "não é parente da criança concebida mediante concepção assistida". [3] O art. 311-20 do Código Civil francês estabelece que o consentimento dado em procriação medicamente assistida interdita toda ação de contestação ao estado de filiação decorrente.

Para Maria Helena Diniz, se fosse admitida a impugnação da paternidade, haveria uma paternidade incerta, devido ao segredo profissional médico e ao anonimato do dador do sêmen inoculado na mulher. [4]

A Corte de Cassação italiana já decidiu, nessa linha de entendimento, que "o marido que tinha validamente concordado ou manifestado prévio consentimento à fecundação heteróloga não tem ação para contestar a paternidade da criança nascida em decorrência de tal fecundação". A decisão ressalta a natureza de "pai de direito", afirmando que o favor veritatis não é um valor absoluto, pois não pode comprometer posições dotadas de tutela primária [5].


4. Posse do estado de filiação

A posse do estado de filiação constitui-se quando alguém assume o papel de filho em face daquele ou daqueles que assumem os papéis ou lugares de pai ou mãe ou de pais [6], tendo ou não entre si vínculos biológicos. A posse de estado é a exteriorização da convivência familiar e da afetividade, segundo as características adiante expostas, devendo ser contínua.

Trata-se de conferir à aparência os efeitos de verossimilhança, que o direito considera satisfatória. No direito anterior, a posse do estado de filiação apenas era admitida, para fins de prova e suprimento do registro civil, se os pais convivessem em família constituída pelo casamento, ou seja, para a filiação considerada legítima. Em virtude do art. 226 da Constituição Federal, outras entidades familiares como a união estável e a família monoparental podem servir de fundamento para a posse do estado de filiação.

Ainda que mantenha a redação do Código Civil de 1916, o art. 1.605 do Código Civil de 2002, por seu enunciado genérico, abrange todas as hipóteses existenciais que se apresentam nos arranjos familiares de posse de estado de filiação, ante a falta ou defeito do termo de nascimento. Essa norma não se refere nem poderia se referir à origem biológica, bastando a aparência dos papéis sociais de pais e filho, "quando houver começo de prova por escrito" ou "quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos".

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As presunções "veementes" são verificadas em cada caso, dispensando-se outras provas da situação de fato. O Código brasileiro não indica, sequer exemplificadamente, as espécies de presunção, ou a duração, o que nos parece a orientação melhor. Por seu turno, o Código Civil francês, art. 311-2, na atual redação, apresenta as seguintes espécies não taxativas de presunção de estado de filiação, não sendo necessária a reunião delas:

a)quando o indivíduo porta o nome de seus pais;

b)quando os pais o tratam como seu filho, e este àqueles como seus pais;

c)quando os pais provêem sua educação e seu sustento;

d)quando ele é assim reconhecido pela sociedade e pela família;

e)quando a autoridade pública o considere como tal.

Na experiência brasileira, configuram posse de estado de filiação a adoção de fato, em que muitas vezes se converte a guarda, os filhos de criação e a chamada "adoção à brasileira".

Essa reconfiguração da posse do estado de filiação, no sentido do "nascimento da verdade sociológica" (dizemos socioafetiva), de um conteúdo afetivo e social profundo, cuja ruptura prejudicaria o interesse do filho, foi bem destacada na doutrina estrangeira:

Ninguém estranharia que o conceito de posse de estado ganhasse um conteúdo particular e dirigido à finalidade de que se trata. Em vez de um índice de filiação biológica ela serviria para consolidar um vínculo meramente afectivo, sociológico, para exprimir a criação de uma família cuja estabilidade a lei resolveria proteger no interesso do filho e no interesse social. [7]


5. "Adoção à brasileira" e a verdade do registro civil

Questão delicada diz respeito ao que se convencionou chamar de "adoção à brasileira". Dá-se com declaração falsa e consciente de paternidade e maternidade de criança nascida de outra mulher, casada ou não, sem observância das exigências legais para adoção. O declarante ou declarantes são movidos por intuito generoso e elevado de integrar a criança à sua família, como se a tivessem gerado. Contrariamente à lei, a sociedade não repele tal conduta; exalça-a. Nessas hipóteses, ainda que de forma ilegal, atende-se ao mandamento contido no art. 227 da Constituição, de ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança o direito "à convivência familiar", com "absoluta prioridade", devendo tal circunstância ser levado em conta pelo aplicador, ante o conflito entre valores normativos (de um lado o atendimento à regra matriz de prioridade da convivência familiar, de outro lado os procedimentos legais para que tal se dê, que não foram atendidos). Outrossim, a invalidade do registro assim obtido não pode ser considerada quando atingir o estado de filiação, por longos anos estabilizado na convivência familiar.

Alerta João Baptista Villela que se o registro diz que B é filho de A e A não é efetivamente o procriador genético de B, o registro não conteria necessariamente uma falsidade, pois ele é o espelho das relações sociais de parentesco. Na Constituição se colheriam o compromisso da República Federativa do Brasil com a solidariedade, a fraternidade, o bem-estar, a segurança, a liberdade, etc, estando essas opções axiológicas muito mais para uma idéia da paternidade fundada no amor e o no serviço do que para a sua submissão aos determinismos biológicos.

Verdade e falsidade no registro civil e na biologia têm parâmetros diferentes. Um registro é sempre verdadeiro se estiver conciliado com o fato jurídico que lhe deu origem. E é sempre falso na condição contrária. A chamada verdade biológica, se for o caso de invocá-la ou fazê-la prevalecer, tem um diverso teatro de operações: o das definições judiciais ou extrajudiciais. Para que chegue ao registro tem de converter-se em fato jurídico, o que, no tocante à natureza da filiação, supõe sempre um ato de vontade – pessoa, se for do declarante; política, se for da autoridade – e, portanto, um exercício de liberdade. Um cidadão que comparece espontaneamente a um cartório e registra, como seu filho, uma vida nova que veio ao mundo, não necessita qualquer comprovação genética para ter sua declaração admitida [8].


6. Afetividade como direito e dever jurídicos

A família, tendo desaparecido suas funções tradicionais, no mundo do ter liberal burguês, reencontrou-se no fundamento da afetividade, na comunhão de afeto, pouco importando o modelo que adote, inclusive o que se constitui entre um pai ou uma mãe e seus filhos. A afetividade, cuidada inicialmente pelos cientistas sociais, pelos educadores, pelos psicólogos, como objeto de suas ciências, entrou nas cogitações dos juristas, que buscam explicar as relações familiares contemporâneas.

O afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência familiar e não do sangue. A história do direito à filiação confunde-se com o destino do patrimônio familiar, visceralmente ligado à consangüinidade legítima. Por isso, é a história da lenta emancipação dos filhos, da redução progressiva das desigualdades e da redução do quantum despótico, na medida da redução da patrimonialização dessas relações.

O desafio que se coloca aos juristas, principalmente aos que lidam com o direito de família, é a capacidade de ver as pessoas em toda sua dimensão ontológica, a ela subordinando as considerações de caráter biológico ou patrimonial. Impõe-se a materialização dos sujeitos de direitos, que são mais que apenas titulares de bens. A restauração da primazia da pessoa humana, nas relações civis, é a condição primeira de adequação do direito à realidade social e aos fundamentos constitucionais.

Como diz Eduardo de Oliveira Leite,

as indagações doutrinárias mais recentes têm insistido, de forma cada vez mais freqüente e firme, que a filiação não é somente fundada sobre os laços de sangue; o vínculo sangüíneo determina, para a grande maioria dos pais, um laço fundado sobre a vontade da aceitação dos filhos. Logo, a vontade individual é a seqüência ou o complemento necessário do vínculo biológico. [9]

Homenageando a filiação socioafetiva, em promissora linha de tendência da jurisprudência brasileira, assim decidiu o Tribunal de Justiça do Paraná:

1. A ação negatória de paternidade é imprescritível, na esteira do entendimento consagrado na Súmula nº 149/STF, já que a demanda versa sobre o estado da pessoa, que é emanação do direito da personalidade. 2. No confronto entre a verdade biológica, atestada em exame de DNA, e a verdade socioafetiva, decorrente da denominada ''adoção à brasileira'' (isto é, da situação de um casal ter registrado, com outro nome, menor, como se deles filho fosse) e que perdura por quase quarenta anos, há de prevalecer a solução que melhor tutele a dignidade da pessoa humana. 3. A paternidade sócio-afetiva, estando baseada na tendência de personificação do direito civil, vê a família como instrumento de realização do ser humano; aniquilar a pessoa do apelante, apagando-lhe todo o histórico de vida e condição social, em razão de aspectos formais inerentes à irregular ''adoção à brasileira'', não tutelaria a dignidade humana, nem faria justiça ao caso concreto, mas, ao contrário, por critérios meramente formais, proteger-se-iam as artimanhas, os ilícitos e as negligências utilizadas em benefício do próprio apelado [10].


7. Fundamentação constitucional e no Código Civil

Encontram-se na Constituição brasileira vários fundamentos do estado de filiação geral, que não se resume à filiação biológica:

a)Todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem (art. 227, § 6º);

b)A adoção, como escolha afetiva, alçou-se integralmente ao plano da igualdade de direitos (art. 227, §§ 5º e 6º);

c)A comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, tem a mesma dignidade de família constitucionalmente protegida (art. 226, § 4º); não é relevante a origem ou existência de outro pai (genitor)

d)O direito à convivência familiar, e não a origem genética, constitui prioridade absoluta da criança e o do adolescente (art. 227, caput).

e)Impõe-se a todos os membros da família o dever de solidariedade, uns com os outros, dos pais para os filhos, dos filhos para os pais, e todos com relação aos idosos (arts. 229 e 230).

Em suma, a Constituição não oferece qualquer fundamento para a primazia da filiação biológica, pois amplo é seu alcance. A primazia não está na Constituição, mas na interpretação equivocada que tem feito fortuna, como se o paradigma da filiação não tivesse sido transformado. Até mesmo no direito anterior, a filiação biológica era nitidamente recortada entre filhos legítimos e ilegítimos, a demonstrar que a origem genética nunca foi, rigorosamente, a essência das relações familiares.

O Código Civil reproduziu, em seu art. 1.596, a regra matriz do § 6º do art. 227 da Constituição, relativamente à igualdade entre filhos de qualquer natureza, superando o paradigma discriminatório da legitimidade, fundado na consangüinidade e na matrimonialidade. Outra norma geral superadora e inclusiva é o art. 1.593, que refere ao parentesco natural ou de "outra origem". [11] Uma das regras especiais mais incisivas, no rumo da superação da consangüinidade, foi o inciso V do art. 1.597, destinado à inseminação heteróloga, antes referida.

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Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela USP. Professor Emérito da UFAL. Foi Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça. Membro fundador do IBDFAM. Membro da International Society of Family Law.︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética:: uma distinção necessária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 194, 16 jan. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4752. Acesso em: 23 abr. 2024.

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