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Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária

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Agenda 16/01/2004 às 00:00

7. Fundamentação constitucional e no Código Civil

Encontram-se na Constituição brasileira vários fundamentos do estado de filiação geral, que não se resume à filiação biológica:

Em suma, a Constituição não oferece qualquer fundamento para a primazia da filiação biológica, pois amplo é seu alcance. A primazia não está na Constituição, mas na interpretação equivocada que tem feito fortuna, como se o paradigma da filiação não tivesse sido transformado. Até mesmo no direito anterior, a filiação biológica era nitidamente recortada entre filhos legítimos e ilegítimos, a demonstrar que a origem genética nunca foi, rigorosamente, a essência das relações familiares.

O Código Civil reproduziu, em seu art. 1.596, a regra matriz do § 6º do art. 227. da Constituição, relativamente à igualdade entre filhos de qualquer natureza, superando o paradigma discriminatório da legitimidade, fundado na consangüinidade e na matrimonialidade. Outra norma geral superadora e inclusiva é o art. 1.593, que refere ao parentesco natural ou de "outra origem". 11 Uma das regras especiais mais incisivas, no rumo da superação da consangüinidade, foi o inciso V do art. 1.597, destinado à inseminação heteróloga, antes referida.


8. O critério do melhor interesse do filho para solução do conflito entre filiação biológica e não-biológica

No que concerne ao estado de filiação, deve-se ter presente que, além do mandamento constitucional de absoluta prioridade dos direitos da criança e do adolescente (art. 227), a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, da ONU, de 1989, passou a integrar o direito interno brasileiro desde 1990. O art. 3.1. da Convenção estabelece que todas as ações relativas aos menores devem considerar, primordialmente, "o interesse maior da criança", abrangente do que a lei brasileira (ECA) considera adolescente. Por força da convenção deve ser garantida uma ampla proteção ao menor, constituindo a conclusão de esforços, em escala mundial, no sentido de fortalecimento de sua situação jurídica, eliminando as diferenças entre filhos legítimos e ilegítimos (art. 18) e atribuindo aos pais, conjuntamente, a tarefa de cuidar da educação e do desenvolvimento.

O princípio não é uma recomendação ética, mas diretriz determinante nas relações da criança e do adolescente com seus pais, com sua família, com a sociedade e com o Estado. A aplicação da lei deve sempre realizar o princípio, consagrado, segundo Luiz Edson Fachin como "critério significativo na decisão e na aplicação da lei", tutelando-se os filhos como seres prioritários 12. O desafio é converter a população infanto-juvenil em sujeitos de direito, "deixar de ser tratada como objeto passivo, passando a ser, como os adultos, titular de direitos juridicamente protegidos". 13 O princípio está consagrado nos arts. 4° e 6° da Lei n. 8.069, de 1990 (ECA).

O princípio é um reflexo do caráter integral da doutrina dos direitos da criança e da estreita relação com a doutrina dos direitos humanos em geral. Assim, segundo a natureza dos princípios, não há supremacia de um sobre outro ou outros, devendo a eventual colisão resolver-se pelo balanceamento dos interesses, no caso concreto. Nesse sentido, diz Miguel Cillero Brruñol que sendo as crianças partes da humanidade, "e seus direitos não se exerçam separada ou contrariamente ao de outras pessoas, o princípio não está formulado em termos absolutos, mas que o interesse superior da criança é considerado como uma ‘consideração primordial’. O princípio é de prioridade e não de exclusão de outros direitos ou interesses". De outro ângulo, além de servir de regra de interpretação e de resolução de conflitos entre direitos, deve-se ressaltar que "nem o interesse dos pais, nem o do Estado pode se considerado o único interesse relevante para a satisfação dos direitos da criança" 14.

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Valerio Pocar e Paola Ronfani 15 utilizam interessante figura de imagem para ilustrar a transformação do papel do filho na família: em lugar da construção piramidal e hierárquica, na qual o menor ocupava a escala mais baixa, tem-se a imagem de círculo, em cujo centro foi colocado o filho, e cuja circunferência é desenhada pelas recíprocas relações com seus genitores, que giram em torno daquele centro. Nos anos mais recentes, parece que uma outra configuração de família relacional está se delineando, em forma estelar, que tem ao centro o menor, sobre o qual convergem relações tanto de tipo biológico quanto de tipo social, com os seus dois genitores em conjunto ou separadamente, inclusive nas crises e separações conjugais.

O princípio inverte a ordem de prioridade: antes no conflito entre a filiação biológica e a não-biológica ou socioafetiva, resultante de posse de estado de filiação, a prática do direito tendia para a primeira, enxergando o interesse dos pais biológicos como determinantes, e raramente contemplando os do filho. De certa forma, condizia com a idéia de poder dos pais sobre os filhos e da hegemonia da consangüinidade-legitimidade. Menos que sujeito, o filho era objeto da disputa. O princípio impõe a predominância do interesse do filho, que norteará o julgador, o qual, ante o caso concreto, decidirá se a realização pessoal do menor estará assegurada entre os pais biológicos ou entre os pais não-biológicos. De toda forma, deve ser ponderada a convivência familiar, constitutiva da posse do estado de filiação, pois ela é prioridade absoluta da criança e do adolescente (art. 227, da Constituição Federal).


9. Pater is est – redirecionando da legitimidade para o estado de filiação em geral

A mudança do direito de família, da legitimidade para o plano da afetividade, redireciona a função tradicional da presunção pater is est. Destarte, sua função deixa de ser a de presumir a legitimidade do filho, em razão da origem matrimonial, para a de presumir a paternidade em razão do estado de filiação, independentemente de sua origem ou de sua concepção. A presunção da concepção relaciona-se ao nascimento, devendo este prevalecer.

Essa é a orientação adotada em legislações que recentemente alteraram o direito de filiação, privilegiando o nascimento em detrimento da concepção, como a da Alemanha (1997), segundo a qual

se um homem for casado com a mãe no momento do nascimento da criança, então ele é pai da criança sem que deva haver outros requisitos. Deixaram de existir as presunções de coabitação e concepção. É decisiva somente a época de nascimento da criança. O homem casado com a mãe na época do nascimento é o pai mesmo que a criança tenha nascido durante a união conjugal, mas sido gerada antes do casamento. Ao contrário do § 1.591 al. 1. frase 2 BGB aF, ele é pai até mesmo se, conforme as circunstâncias, seja obviamente impossível que a mulher tenha concebido dele 16.

A contestação ou impugnação da paternidade são direitos personalíssimos, que radicam exclusivamente na iniciativa do marido da mãe. Ninguém, nem mesmo o filho ou a mãe, poderá impugnar a paternidade. O art. 1.601. do Código Civil, assim lido em conformidade com a Constituição, desloca a paternidade da origem biológica para o estado de filiação, de qualquer origem. Note-se que o artigo equivalente do Código Civil de 1916 referia-se à contestação da legitimidade dos filhos e não da paternidade, em si. Por sua vez, a legitimidade dos filhos fundava-se em dois fatores conjuntos, a saber, na família constituída pelo casamento (matrimonializada) e em terem-se originado biologicamente do marido da mãe.

A presunção pater is est reconfigura-se no estado de filiação, que decorre da construção progressiva da relação afetiva, na convivência familiar. Antes, presumia-se pai biológico o marido da mãe. Segundo Anne Lefebvre Teillard, citada por João Baptista Villela, o adágio pater is est atuou, por séculos, mantendo fortemente amarrado "o biológico ao institucional", além de estar ancorado no pressuposto da fidelidade da mulher. Hoje, presume-se pai o marido da mãe que age e se apresenta como pai, independentemente de ter sido ou não o procriador. Como ressalta Villela 17,

no processo de refinamento cultural do matrimônio constitui traço fundamental o encapsulamento da vida íntima na esfera interna da família. Assim, atribuir a paternidade ao marido da mulher não significa proclamar uma derivação biológica. (...) A família não tem deveres de exatidão biológica perante a sociedade, pelo que, se a mulher prevarica e pare um filho que não foi gerado pelo seu marido, isso, tendencialmente, é matéria da economia interna da família. Pode ser um grave problema para o casal. Como pode não ser problema.

O pai biológico não tem ação contra o pai não-biológico, marido da mãe, para impugnar sua paternidade. Apenas o marido pode impugnar a paternidade quando a constatação da origem genética diferente da sua provocar a ruptura da relação paternidade-filiação. Se, apesar desse fato, forem mais fortes a paternidade afetiva e o melhor interesse do filho, enquanto menor, nenhuma pessoa ou mesmo o Estado poderão impugná-la para fazer valer a paternidade biológica, sem quebra da ordem constitucional e do sistema do Código Civil.


10. Sobre a imprescritibilidade do exercício da contestação da paternidade e da impugnação do estado de filiação

O Código Civil de 1916 estabelecia prazos prescritíveis curtos para que o marido da mãe pudesse contestar a paternidade, sendo de dois meses a partir do parto, se estivesse presente, e de três meses, se esteve ausente. A finalidade da lei era afirmar a presunção pater is est, no sentido de tutelar a família legítima, pois apenas admitia essa exceção para impugná-la, desde que a pretensão se exercesse em prazo curto. Sustentou-se na doutrina e na jurisprudência que tais prazos eram decadenciais ou preclusivos, atingindo não apenas a pretensão mas o próprio direito, e não apenas prescritíveis. O Código Civil de 2002 adotou orientação totalmente oposta e problemática, optando pela imprescritibilidade.

O marido da mãe, e somente ele, poderá a qualquer tempo impugnar a paternidade derivada da presunção pater is est. Provavelmente, o que motivou o legislador foi a orientação adotada no direito brasileiro de serem imprescritíveis as pretensões relativas ao estado das pessoas. Todavia, ainda que imprescritível, a pretensão de impugnação não poderá ser exercida se fundada apenas na origem genética, em aberto conflito com o estado de filiação já constituído. Em outras palavras, para que possa ser impugnada a paternidade, independentemente do tempo de seu exercício, terá o marido da mãe que provar não ser o genitor, no sentido biológico (por exemplo, com resultado de exame de DNA) e, por esta razão, não ter sido constituído o estado de filiação, de natureza socioafetiva; e se foi o próprio declarante perante o registro de nascimento, comprovar que teria agido induzido em erro ou em razão de dolo ou coação.

A família, seja ela de que origem for, é protegida pelo Estado e por sua ordem jurídica (art. 226. da Constituição). Se a exclusividade da prova de inexistência de origem biológica pudesse ser considerada suficiente para o exercício da impugnação da paternidade, anos ou décadas depois de esta ser realizada e não questionada, na consolidação dos recíprocos laços de afetividade, com a inevitável implosão da família assim constituída, estar-se-ia negando a norma constitucional de proteção da família, para atender impulsos, alterações de sentimentos ou decisões arbitrárias do pai.

Pelos fundamentos jurídicos que informam o atual regime brasileiro da paternidade, o exercício imprescritível da impugnação pelo marido da mãe depende da demonstração, além da inexistência da origem biológica, de que nunca tenha sido constituído o estado de filiação.

O argumento, tantas vezes manejado, da possível derrogação do art 362 do Código Civil de 1916 (estabelecia prazo decadencial de quatro anos para o filho impugnar o reconhecimento da paternidade, quando atingisse a maioridade), pelo art. 27. do Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA 18, perdeu a consistência, pois o Código Civil de 2002 repetiu o mesmo conteúdo normativo anterior. 19 Em verdade, as duas normas são harmônicas, cuidando de matérias distintas. O art. 27. do ECA assegura o caráter de direito personalíssimo "ao reconhecimento do estado de filiação" dos filhos havidos fora do casamento, qualquer que seja a origem (art. 26), ou seja, daqueles que ainda não tenham sido reconhecidos por ambos ou por um dos pais. O art. 1.614. do Código Civil de 2002, ao contrário, disciplina a preservação do estado de filiação dos que já foram reconhecidos, conforme consta do registro. Portanto, o art. 27. do ECA nunca permitiu a impugnação do estado de filiação dos que já se encontravam reconhecidos, contra o qual só pode haver impugnação do próprio pai (art. 1.601) ou do filho, no prazo de quatro anos após a maioridade (art. 1.614).


11. Afinal qual é a verdade real da filiação?

A verdade biológica nem sempre é a verdade real da filiação. O direito deu um salto à frente do dado da natureza, construindo a filiação jurídica com outros elementos. A verdade real da filiação surge na dimensão cultural, social e afetiva, donde emerge o estado de filiação efetivamente constituído. Como já vimos, tanto o estado de filiação ope legis quanto a posse de estado de filiação podem ter origem biológica ou não.

Para o registro do filho, o declarante não precisa fazer prova da origem biológica; nem seria obrigado a fazê-lo pois impediria a filiação de outra natureza. O registro produz uma presunção de filiação quase absoluta, pois apenas pode ser invalidado se se provar que houve erro ou falsidade (art. 1.604. do Código Civil). A declaração do nascimento do filho, feita pelo pai, é irrevogável. Ao pai cabe apenas o direito de contestar a paternidade, se provar, conjuntamente, que esta não se constituiu por não ter sido o genitor biológico e não ter havido estado de filiação estável.

Como diz Gerard Cornu, a verdade biológica não reina absoluta sobre o direito da filiação, porque esta incorpora, necessariamente, um conjunto de outros interesses e valores. Para ele, confundir verdade real da filiação com verdade biológica, é um entendimento "reducionista, cego, demagógico e decepcionante", engendrando "um direito biológico totalitário, além de um pseudo-direito subjetivo ilusório e nefasto". 20

Esclarece João Baptista Villela que o registro não exprime um evento biológico, pois compete ao oficial recolher uma manifestação de vontade. Ele exprime um acontecimento jurídico.

A qualificação da paternidade ou a omissão dela dependerá, de um modo ou de outro, de um fato do direito: estar ou não casada a mãe, sentença que estabeleça ou desconstitua a paternidade, reconhecimento voluntário, etc. Ao registro não interessa a história natural das pessoas, senão apenas sua história jurídica. Mesmo que a história jurídica tenha sido condicionada pela história natural, o que revela o registro é aquela e não esta 21.

Na Jornada de Direito Civil, levada a efeito no Superior Tribunal de Justiça, nos dias 11 a 13 de junho de 2002, aprovou-se proposição no sentido de que "no fato jurídico do nascimento, mencionado no art. 1.603, compreende-se, à luz do disposto no art. 1.593, a filiação consangüínea e também a socioafetiva".

Não pode o autor da declaração falsa vindicar a invalidade do registro do nascimento, conscientemente assumida, porque violaria o princípio assentado em nosso sistema jurídico de venire contra factum proprium nulli conceditur. Sem razão o Tribunal de Justiça de São Paulo (AC 130.334-4 – Marília – 1ª CDPriv – Rel. Des. Guimarães e Souza – 14.12.1999), ao decidir que a existência de vício do ato jurídico pode ser alegada a qualquer tempo até mesmo pelo autor da falsidade. A contestação, nesse caso, terá de estar fundada em hipótese de invalidade dos atos jurídicos, que o direito acolhe, tais como erro, dolo, coação. Na dúvida deve prevalecer o estado de filiação socioafetiva, consolidada na convivência familiar, considerada prioridade absoluta em favor da criança pelo art. 227. da Constituição Federal.

No contexto atual, em conformidade com a Constituição Federal, o art. 1.604. do Código Civil reforça a primazia do estado de filiação sobre a origem genética. Nesse sentido, a norma deve ser interpretada em consonância com os artigos 1.596, 1.597, 1.601 e 1.614, todos do Código Civil. É quase absoluta a presunção da filiação derivada do registro do nascimento, pois apenas é afastada nas hipóteses de erro ou falsidade, não sendo admissível qualquer outro fundamento. O registro do nascimento é a prova capital do nascimento e da filiação materna e paterna. No caso do pai, reforça a presunção pater is est. Não é totalmente absoluta porque pode ser retificada, por decisão judicial, ou invalidada em virtude de prova de erro ou falsidade. A norma é cogente ao proclamar que ninguém poderá vindicar estado contrário ao que resulta do registro do nascimento. Refere ao estado de filiação e aos decorrentes estados de paternidade e maternidade. A vedação alcança qualquer pessoa, incluindo o registrado e as pessoas que constam como seus pais. No Código Civil de 1916 a norma equivalente (art. 348) tinha por fito a proteção da família legítima, que não deveria ser perturbada com dúvidas sobre a paternidade atribuída ao marido da mãe. A norma atual, no contexto legal inaugurado pela Constituição Federal, contempla a proteção do estado de filiação e paternidade, retratada no registro.

Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), Professor Emérito da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Foi Conselheiro do CNJ nas duas primeiras composições (2005/2009).︎ Membro fundador e dirigente nacional do IBDFAM. Membro da International Society of Family Law.︎ Professor de pós-graduação nas Universidades Federais de Alagoas, Pernambuco e Brasília. Líder do grupo de pesquisa Constitucionalização das Relações Privadas (UFPE/CNPq).︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 198, 16 jan. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4752. Acesso em: 21 nov. 2024.

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