Uma decisão insólita do STF tem provocado bastante polêmica no meio jurídico. Tanto da ala mais conservadora, à qual aplaudiu a decisão, quanto pela ala mais progressista que mostrou-se indignada por causa da possível “afronta aos princípios basilares da Constituição Federal”.
Em Habeas Corpus, o STF considerou que a presunção da inocência, de que trata o artigo 5, inc LVII, vale para o processo penal. O que antes estava restrito ao processo criminal, no processo administrativo ou civil, agora será possível adotar-se limitação de direito, antes do término do julgamento para réu que esteja ainda em vias recursais. Isso significa dizer que o suspeito por ter cometido um crime, pode em segunda instância ser encaminhado para prisão, mesmo que seu processo continue tramitando no Judiciário.
Há no Brasil um desvirtuamento da presunção de inocência, nas palavras de Adilson Dallari:
“O cidadão comum, aquele que é coloquialmente designado como ‘pessoa de bem’, passou a ser duramente perseguido e controlado pelas autoridades democraticamente constituídas, a ponto de se chegar a uma paradoxal e clamorosa inversão de valores. Os transgressores da lei, aquelas pessoas às quais, pelas autoridades competentes e pelos meios legais, foi imputada alguma transgressão, algum delito, algum crime, desfrutam de uma desmedida presunção de inocência, gerando um desmoralizante clima de irresponsabilidade e impunidade.”
Por mais que atualmente todos nós sejamos, em um certo ponto, defensores dos direitos humanos e dos direitos fundamentais constitucionalmente estabelecidos, também devemos levar em conta que somos muito mais afeitos ao direito à proteção e à segurança. Queremos que todos sejam tratados com dignidade, em especial nós mesmos.
O princípio da presunção da inocência nos remete a um pilar muito caro aos franceses quando da Revolução Francesa de 1789 e sua tríade: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. A primeira delas, a liberdade, é o corolário de um Estado Democrático de Direito. Ainda que em fase embrionária de construção, a democracia clama por liberdade. Nada obstante, não há liberdade que ande desacompanhada de segurança.
Como qualquer preceito principiológico que serve de elaboração de um conjunto de estatutos, leis e normas, a liberdade por ela mesma não transmite aos cidadãos de um Estado-nação a certeza de que, em caso de extrapolação de seu uso, ela não ofenda alguns outros princípios também caros à democracia, tais como o direito à vida, à propriedade, à segurança, dentre outros.
Neste âmbito, a liberdade deve dialogar a todo instante com a segurança. Essa relação um tanto dicotômica, liberdade-segurança, é a teia que rege e dá equilíbrio à balança da justiça. A tal ponto que quanto mais ampliamos o leque da liberdade, mais afrouxamos o da segurança. Na outra ponta, quanto mais ampliamos a segurança, mais vulnerável se torna a liberdade.
A sensação social de impunidade é notória e sabida. Não há um dia sequer em que não sejamos bombardeados com noticiários que nos mostram como o crime tem compensado no Brasil. Seja pelas velhas desculpas de sempre: “Não houve flagrante delito”, “direito de responder em liberdade”, “o réu é primário” ou outros cacoetes já gastos que ao invés de ressaltar a importância de um sistema Judiciário bem organizado, faz com que o descrédito nas instituições por parte da população aumente vertiginosamente. Tal descrédito aumenta sempre que ouvimos a famigerada frase: “O suspeito de ter praticado o homicídio foi posto em liberdade essa manhã.”
A liberdade se tornou o panteão da democracia liberal, de modo que sempre quando falamos em democracia lá está a liberdade, inserida na mesma frase ou presente de forma implícita. Liberdade e democracia são dois lados de uma mesma moeda. Mas onde fica a segurança nesta equação? A segurança nos remete há um tempo histórico de ditadura militar, em que, para se sentir protegido era preciso o uso do braço forte da policia estatal. Na verdade o próprio Estado era a polícia. Este Estado seria o responsável pela manutenção da ordem e do progresso.
Entretanto, nas palavras de Hegel: “A retórica da história é insofismável.” Como já é conhecido por todos, a ditadura militar, ao ostentar o brasão da segurança, mostrou o que ocorre quando o totalitarismo obstaculiza os direitos fundamentais. Os demais direitos condizentes com a liberdade, tais como a dignidade da pessoa humana, o direito de ir e vir, de livre expressão foram ceifados por militares muito propensos à disciplina e hierarquia e pouco familiarizados com a autonomia e liberdade.
Novamente a dicotomia liberdade-segurança nos assombrando. Por estarmos na fase tenra da democracia, temos cometido disparates inomináveis. Sofremos dos mesmos altos e baixos, exageros e retrocessos que sofrem as crianças em sua infância. Muitas vezes somos surpreendidos com rompantes de violência e intolerância (resquícios da ditadura militar) advindos de políticas públicas de segurança avessas aos direitos humanos. Outras vezes nos deparamos com cenas excruciantes de assassinatos em série, estupros e outros crimes hediondos que fazem engrossar as fileiras da impunidade, aumentando a indignação social perante o Judiciário.
Nossa democracia precisa, antes de mais nada, de parcimônia. Precisamos encontrar a linha tênue que divide de um lado a liberdade e de outro a segurança. O Judiciário em consonância com a Lei de Execução Penal precisa buscar o equilíbrio em suas decisões. São de Rui Barbosa as palavras: “Justiça tardia é injustiça.” Parafraseando o grande intelectual, diríamos que “Justiça acelerada também é injustiça”.
Todos os cidadãos possuem o direito ao contraditório e à ampla defesa, uma vez que a presunção de inocência dignifica o ser humano que está arrolado entre as partes de uma lide penal, é certo que o cidadão não pode ser considerado culpado sem que antes tenha-se dado a ele o direito de resposta que lhe é assegurado. É justamente essa a inteligência versada no artigo 5, LVII – “ será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Porém, o óbice à posição do STF no HC em questão está em se interpretar com um olho a presunção da inocência em absoluto, e ao mesmo tempo fechar o outro olho para a impunidade que daí advém e para a insegurança social que é gerada sempre que um “criminoso” é beneficiado pela inacabável tramitação processual que por vezes perdura anos. O contraponto da liberdade, que é a segurança, deve ser levado em consideração. A segurança do resto dos cidadãos comuns, que do outro lado da moeda, tornam-se reféns daqueles que se valeram do princípio da presunção da inocência a fim de pleitear sua liberdade. A celeridade processual facilitaria muito na resolução desta problemática e ela pode muito bem ser utilizada. Toda vez que se notar que o positivismo processual está em dissonância e até em dissenção com a prática penal, então é hora de se agir com parcimônia e atender aos apelos da virtude e da justiça. Em provérbios existe uma máxima que reza: “A virtude está no meio.”
Diego Quixabeira e Souza
Advogado
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