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Democracia à luz do princípio do discurso

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Agenda 07/02/2004 às 00:00

2. A compreensão da categoria do Direito em Habermas

Para se entender em que contexto é proposto o princípio do discurso como fundamento da organização democrática é necessário entender como Habermas interpreta o processo de modernização das sociedades ocidentais e por conseguinte a categoria do Direito na Modernidade. Isso porque é através da forma jurídica que o princípio do discurso irá se transformar em princípio democrático. Nesse sentido, é através do medium do Direito que a democracia poderá ser efetivada.

Habermas utiliza o método denominado reconstrutivo para formular sua teoria da sociedade, dentro da qual irá conceber o Direito. Ele procura entender o que torna possível a manutenção de uma ordem social, ou seja, como se dá a integração social, que para ele é possibilitada por uma tensão entre faticidade e validade, operando com o binômio factual/contrafactual. Esse método se utilizará de três passos categoriais (mundo da vida, instituições arcaicas e sociedade secularizada) antes de chegar à categoria do Direito.

Nessa caminhada Habermas quer explicitar, por meio do conceito de agir comunicativo (orientado pelo entendimento), como a tensão entre faticidade e validade, inerente à linguagem, é conectada com a integração de indivíduos socializados comunicativamente e, conseqüentemente, como se dá a relação entre a ação comunicativa e o Direito.

2.1. O Agir Comunicativo como fonte de integração social

2.1.1. A integração social e o agir comunicativo

A integração social é caracterizada pelo engate das diversas perspectivas de ação de modo que tais perspectivas possam ser canalizadas, resumidas em ações comuns, o que possibilita o surgimento de uma ordem social, uma vez que essa canalização reduz as alternativas de ação a uma medida comum que passa a estabilizar o risco de dissenso. Conforme explicita Habermas:

"toda integração social não violenta pode ser entendida como a solução do seguinte problema: como é possível coordenar entre si os planos de ação de vários atores, de tal modo que as ações de um partido possam ser ‘engatadas’ nas do outro?".

A estrutura da integração social em que o entendimento, sobre um pano de fundo factualmente consensual, produz o engate das perspectivas de ação nem sempre ocorre. Assim, à medida que o contrafactual se instala, surge a necessidade de se fundamentar racionalmente nossas pretensões, ficando explicitada a tensão entre o que já é factualmente válido e o que se quer validar, ou em outras palavras, entre faticidade e validade. O consenso factual é colocado em questão pelas pretensões de validade e a linguagem passa a ser fonte da integração social na medida em que a interação é lingüisticamente mediada.

O agir comunicativo vem a ser a disponibilidade que existe entre falantes e ouvintes a estabelecer um entendimento que surge de um consenso sobre algo no mundo. Conforme Habermas, isso ocorre quando:

"os participantes suspendem o enfoque objetivador de um observador e de um agente interessado imediatamente no próprio sucesso e passam a adotar o enfoque performativo de um falante que deseja entender-se sobre algo no mundo".

2.1.2. O mundo da vida

O mundo vivido é o lugar das relações sociais espontâneas, das certezas pré-reflexivas, dos vínculos que nunca foram postos em dúvida. No mundo da vida, nossas ações movem-se na base de entendimentos que se formam em um horizonte de sentido não problemático. Esse horizonte de sentido comum age como um maciço pano de fundo consensual que fornece imediatamente um padrão de interpretação espontâneo, constituído por um saber chamado por Habermas de pré-categorial, que é inquestionável, irreflexo, natural, absoluto, não falível e não falsificável.

Esse saber, no entanto, perde essa dimensão de fonte inatacável no momento em que é chamado a confrontar-se com as pretensões de validade, passando a não ser mais suficiente para gerar um consenso integrador da ordem social. No entanto, por ser um saber irreflexo o risco de dissenso é bastante pequeno e esse pano de fundo consensual, fonte imediata para o mundo da vida, apresenta surpreendente estabilidade. Aqui, portanto, faticidade e validade se confundem, são indissolúveis. Conforme explica Habermas, "na própria dimensão da validade é extinto o momento contrafactual de uma idealização [...] ao mesmo tempo permanece intacta a dimensão da qual o saber implícito extrai a força de convicções".

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Aqui, portanto, o agir comunicativo está embutido nos próprios contextos do mundo da vida e a integração por meio da ação orientada pelo entendimento (agir comunicativo) se dá numa dimensão não problematizada, irreflexa. Isso porque o mundo da vida vai constituir o substrato para as situações de fala e ao mesmo tempo fornecer sua base de validade, evidenciando a identidade entre faticidade e validade.

2.1.3. As instituições arcaicas

Nas instituições arcaicas, o saber disponível, também formado pela fusão entre faticidade e validade mediado pelo agir comunicativo, é realizado através de tabus. A sedimentação das relações sociais é realizada pela força das tradições. A ligação realizada pela tradição entre a autoridade e o sagrado tem a função primordial de guardar essa ligação de possíveis problematizações e assim efetuar-se enquanto poder factual.

No mundo da vida e nas instituições arcaicas validade e faticidade não se dissociam, ou seja:

"... a validade mantém a força do fático, seja na figura de certezas do mundo da vida, subtraídas à comunicação, por permanecerem em segundo plano, seja na figura de convicções disponíveis comunicativamente, as quais dirigem o comportamento, porém sob os limites impostos à comunicação por uma autoridade fascinosa, ficando, pois, subtraídas à problematização."

Até aqui a validade confunde-se com o fático: o entendimento não refletido no primeiro e o mito no segundo, que representam a fonte das certezas não problematizáveis. Assim, as prescrições de conduta surgem da factualidade.

2.1.4. As sociedades secularizadas

Nas sociedades secularizadas (profanizadas), pós-metafísicas, não é mais possível a integração social se orientar através do recurso a um pano de fundo consensual da tradição ou uma ordem sacra, que rege a sociedade pelo fascínio ou pelo medo. Isso gera uma tendência ao dissenso, na medida em que não se consegue responder à pergunta pela base de validade dessa integração, visto que a validade não está mais acoplada ao fático, gerando uma dificuldade de se canalizar as tomadas de posição entre alternativas possíveis.

O que chama a atenção nesse momento é que a separação entre faticidade e validade, na perspectiva daqueles que agem, vem a formar, por conseguinte, duas dimensões que se excluem mutuamente, a saber, a dimensão que se guia pela busca instrumental de sucesso em suas ações e a dimensão do entendimento comunicativamente alcançado. Nessa etapa o agir comunicativo é liberado das amarras institucionais, ampliando os espaços de opção, o que implica uma intensificação das esferas do agir orientado pelo interesse do sucesso individual (agir estratégico).

Aqui está o nó da questão: mesmo aquele que age estrategicamente precisa situar sua ação em um contexto de validade, isto é, a ação estratégica recebe limites da factualidade que apontam para uma dimensão intersubjetiva para obter a força do fático, caso contrário, essa ação não teria eficácia. Assim, Habermas sustenta que complexos de interação não se estabilizam apenas através da influência recíproca de atores orientados pelo sucesso, então a sociedade tem que ser integrada, em última instância, através do agir comunicativo.

Nesse contexto se situa a moderna categoria do direito, onde se depositará modernamente a força da integração social (não mais em instituições arcaicas ou em um mundo vivido). A ação estratégica em busca de interesses privados, concedida na fórmula dos direitos subjetivos individuais que garantem espaços de exercício livre da vontade, necessita do apelo a pretensões de validade reconhecidas intersubjetivamente (direito objetivo), problema resolvido pelo "sistema de direitos que prevê as liberdades subjetivas de ação com a coação do Direito objetivo".

2.2. O Direito

Assim, o processo de modernização da civilização ocidental corresponde ao processo de racionalização do mundo vivido, em que se separa a faticidade da validade. Essa racionalização do mundo vivido, à medida que libera a vida humana de tradições culturais não problematizadas que a regem, vai provocar a introdução de novos mecanismos de integração social (o que Habermas denomina de sistema), contexto em que surge o direito moderno.

2.2.1. O direito como desconexão entre sistema e mundo da vida

Na Modernidade, destacam-se campos de ação formalmente organizados, isto é, regidos por leis positivas, como a economia e a administração estatal, onde a sociabilidade não se gestará mais a partir de normas tradicionalmente transmitidas e partilhadas. Isso quer dizer que a coordenação das ações dos sujeitos não ocorrerá mais através de processos de entendimento, mas predominantemente de valores instrumentais, como dinheiro, para a economia, e poder, para a administração estatal.

No entanto, esses mecanismos de ação, que dispensam o entendimento pela atuação de valores instrumentais, vinculam-se ao mundo vivido através do direito. Assim, todo processo de modernização vai significar, de certo modo, uma substituição da ética pelo direito, no processo de regulação das ações sociais. A modernização da sociedade significa então o processo de marginalização da ação comunicativa e a constituição de contextos de ação regrados pelo direito positivo, à medida que as instituições primárias das sociedades tradicionais são substituídas nas sociedades modernas por instituições jurídicas.

É justamente essa contradição, entre esses dois princípios de integração da sociedade, quais sejam, sistemas de ação instrumental e mundo vivido, ações orientadas pelo sucesso e ações orientadas pelo entendimento, sistêmico e ético etc., que Habermas, a partir do paradigma pragmático-universal e por conseguinte da racionalidade intersubjetiva, vai tentar estabilizar e interligar, superando e não aceitando a concepção moderna da filosofia do direito formulada no modelo solipsista dos direitos subjetivos, que não considera o entendimento mútuo comunicativamente alcançado para a integração social.

2.2.3. Direito e Moral

No mesmo sentido em que há uma desconexão entre sistema e mundo da vida, há um desatrelamento entre Direito e Moral, sendo ocupado o mundo sistêmico pela categoria do Direito.

Nas sociedades pré-modernas, a Moral atrelada ao Direito, fundados numa ordem natural, tradicional ou sagrada, forneciam conjuntamente os moldes da sociabilidade. Na Modernidade o mesmo não ocorre, visto que a Moral moderna, com Kant, é a da consciência autônoma, da subjetividade, não se subordina a fontes externas (moral pós-convencional) como a tradição e o sagrado, o que faz com que se interprete a sociabilidade não como algo dado, mas como algo construído pelo homem.

A moralidade, na Modernidade, estará desvinculada de sua institucionalização, de sua exteriorização, ficando portanto centrada as determinações internas do comportamento, enquanto que o sistema social será moldado pelo Direito, que se transforma em poder externo, imposto de fora, necessitando de fundamentação, posto não ser mais dado pelo sagrado ou pela tradição.

É justamente pela necessidade de fundamentação racional (legitimação) que o Direito moderno se liga à Moral e a legitimação do Direito na Modernidade, como visto, é dada pelos institutos dos direitos humanos e da soberania popular. São precisamente tais instâncias que garantem a simbiose entre o sistema jurídico eticamente neutro e a moralidade.

2.2.4. Dimensões da validade do direito

Para Kant, interpreta Habermas, a relação ente faticidade e validade, estabilizada na validade jurídica, apresenta-se como uma relação entre coerção e liberdade, fundada pelo direito e entendida por meio do conceito de legalidade. As leis, para Kant, podem ser seguidas tão-somente por respeito a elas mesmas e, nesse sentido, seu reconhecimento se dá por uma ação heterônoma, isto é, por respeito, strictu sensu, à legalidade; ou, ainda, elas podem ser seguidas por simples respeito, ou seja, por uma ação autônoma que respeita a lei por dever. Aí está o duplo aspecto da validade do Direito: as normas jurídicas podem ser seguidas por serem faticamente válidas (coerção – ação heterônoma) ou por serem legítimas (liberdade – ação autônoma).

Assim, a validade social ou fática é medida pela eficácia das normas, enquanto que a legitimidade é medida pela aceitabilidade racional das normas. Sob o prisma da teoria da ação habermasiana, isso significa que o membro da comunidade jurídica pode adotar um duplo enfoque em relação à norma jurídica: um objetivador e outro performativo, correspondentes respectivos para a coerção e liberdade kantianos.

O membro da comunidade jurídica que adota o enfoque objetivador age estrategicamente, orientado pelo sucesso de suas ações. A norma jurídica é para ele, portanto, um obstáculo, um fato social que limita seu arbítrio. Por outro lado, quem age no enfoque performativo se guia por um entendimento comunicativamente gestado. A norma jurídica é a garante de sua liberdade e tem um sentido deontológico para a ação. Essas duas dimensões da validade jurídica implicam a exigência racional de legitimação para o Direito.

2.3. O agir comunicativo através do Direito como fonte de integração social

Na Modernidade, que se utiliza de uma moral pós-convencional (autônoma), temos a questão da fundamentação do Direito a partir da separação entre faticidade e validade da integração social, o que aponta para duas dimensões da validade jurídica: validade fática, social e validade racional (legitimação). Na Modernidade, portanto, posto o direito estar desatrelado da moral e de fundamentações metafísicas, a faticidade de sua positivação exige sua validade, ou seja, sua fundamentação racional. Houve um deslocamento da questão, uma vez que esta se encontraria agora em uma nova ética desacoplada das visões tradicionais de mundo.

O direito, que na Modernidade assume o fardo da integração social, retirando-o da esfera do agir comunicativo, não pode se justificar apenas pela liberação das ações orientadas pelo sucesso próprio (espaços individuais de livre arbítrio), através de uma eticidade neutra. A faticidade de sua regulação, ou melhor, sua positivação, apela para a cooperação, para o entendimento. Nesse sentido, o direito deve institucionalizar o agir comunicativo reflexivo, racional, fazendo jus às duas formas de ação contraditórias (orientada pelo sucesso próprio e pelo entendimento mútuo) por meio de uma regulamentação intersubjetiva.

Assim, podemos dizer que a pergunta pela legitimidade da legalidade, ou seja, pela fundamentação racional da base de validade do Direito, explicita a tensão entre faticidade e validade, bem como coloca o problema do nexo interno ente a soberania popular (exige o entendimento mútuo) e os direitos subjetivos ou direitos humanos (permitem o agir orientado pelo interesse privado), e, portanto, entre autonomia pública e privada. É tese de Habermas que esse nexo interno e essa problemática só podem ser equacionados através de uma racionalidade intersubjetiva ou comunicativa, com o que se deixa para trás essa tradição metafísica e subjetivista do Direito, ou seja, só através de uma concepção intersubjetiva ou comunicativa do Direito que leve em conta o agir comunicativo, orientado pelo entendimento, com fonte de integração social.

Sobre o autor
Igor Costa de Miranda

Graduação em Direito pela Universidade Federal do Ceará (2003). Pós-graduação em Direito Público pela Universidade de Brasília (2014). Procurador Federal desde 2004, atualmente com exercício na Procuradoria Seccional Federal em Sobral/CE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIRANDA, Igor Costa. Democracia à luz do princípio do discurso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 216, 7 fev. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4794. Acesso em: 7 nov. 2024.

Mais informações

Trabalho apresentado originalmente como monografia conclusiva do curso de Direito na Universidade Federal do Ceará.

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