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Democracia à luz do princípio do discurso

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Agenda 07/02/2004 às 00:00

3. Fundamentação do Direito e da Democracia e o princípio do discurso.

Para Habermas, o princípio da democracia é concebido como a institucionalização jurídica do princípio do discurso. Por conseguinte, é através do princípio do discurso que o nosso autor propõe uma solução para os limites das respostas, aqui expostas, apresentadas pela tradição para a legitimidade do Direito e portanto para a fundamentação da democracia. Pela teoria discursiva Habermas irá fundamentar a normatividade jurídica, em que se efetiva o princípio democrático.

Com o princípio do discurso, e a forma democrática por ele assumida, Habermas busca radicalmente a implementação da liberdade, da autonomia. Não a liberdade e a autonomia modernas, mas a liberdade como fusão da liberdade antiga, coletiva e da liberdade moderna, individual, assim como a autonomia como fusão da autonomia política, pública e da autonomia individual, privada. No mesmo sentido a teoria habermasiana, apontando para a fundamentação discursiva da norma jurídica, alicerçada numa filosofia de cunho pragmático-universal, busca o nexo entre as dimensões da validade jurídica: coerção e liberdade (direito objetivo e subjetivo), conforme Kant, ou enfoque objetivador (ação orientada pelo sucesso) e performativo (agir orientado pelo entendimento), segundo o próprio Habermas, ou ainda em outras palavras, validade fática e legitimidade. Mostrar o nexo, o ponto de ligação, entre essas duas dimensões, expostas em diversas perspectivas, é o propósito maior da teoria discursiva do direito ao fundamentar uma forma democrática que se efetiva através de um sistema de direitos.

Somente com a adoção de um novo paradigma, o da intersubjetividade (no qual é gerado o princípio do discurso), será possível para Habermas explicar o surgimento da legitimidade a partir da legalidade e colocar o Direito como fonte primária (e não só sistêmica) de integração social. Fundamentado na racionalidade intersubjetiva ou comunicativa será possível formular um modelo democrático que implique iguais direitos de participação e comunicação para uma formação da vontade política na qual a única coerção é a do argumento mais racional.

Nesse contexto, convém destacar que o projeto de uma teoria discursiva do direito assume perspectivas diferentes das até então apresentadas. Primeiro ele é fundamentado pela razão comunicativa, que substitui a razão prática. Aquela apresenta uma normatividade mediata ou indireta, ao contrário desta, que é informativa para a ação. Segundo, posto a razão comunicativa não ser imediatamente prática, o Direito vai apresentar uma validade falível, que consegue estabilizar a tensão entre soberania popular e direitos humanos, o que se dará através do processo legislativo. Terceiro, a racionalidade intersubjetiva aponta para uma co-originariedade enter Direito e moral, excluindo qualquer aspecto de subordinação entre eles. Isso significa que o princípio do discurso é deontologicamente neutro e portanto recusa a subordinação do Direito Positivo ao Natural. Por fim, resta explicitar o modelo normativo de democracia que advém da teoria discursiva do Direito e relacioná-lo com os paradigmas liberal e social de Estado.

3.1. Da razão prática à razão comunicativa

A razão clássica mostra que o homem, como os demais seres, é um ser em parte submetido às relações necessárias de causa e efeito da Natureza, ou seja, às leis naturais de causalidade, nas quais não há lugar para escolhas livres. No entanto, o ser humano pode transcender o reino da causalidade, visto que pode determinar racionalmente sua vontade e agir conforme fins. Esse reino ético da liberdade, essa outra realidade, é objeto da razão prática.

A razão, através das idéias, legisla tanto para a natureza (razão teórica) quanto para a liberdade (razão prática). Enquanto que a idéia na razão teórica é o resultado do processo de conhecimento, na razão prática ela é um fim e adquire uma especificidade: é princípio de ação, ou seja, é normativa para o agir.

A filosofia transcendental da subjetividade defende que a idéia da razão prática não advém de uma realidade exterior, em si (metafísica), captável pela razão, mas que ela é produzido a partir do próprio sujeito, da consciência (subjetividade) humana em geral. Por isso, Kant procura mostrar que todo ser dotado de razão tem capacidade moral e não necessita de nenhum código ditado pelos filósofos para conhecer a lei moral e decidir-se pelo bem ou pelo mal, cumprindo-a ou não. Nesse sentido é que se pode dizer que a Modernidade inventou a razão prática como faculdade subjetiva.

Dessa forma, Habermas interpreta que a filosofia prática, partindo da premissa solipsista de um sujeito individual que pensa o mundo e a história a partir de si mesmo, produz uma razão (prática) que serve de guia para a ação do indivíduo, oferecendo-lhe uma orientação normativa para sua ação, cabendo ao Direito Natural, por sua vez, a institucionalização dessa ação em termos sócio-políticos.

No entanto, após a implosão da razão prática pela filosofia do sujeito, não temos mais condições de fundamentar os seus conteúdos na teleologia da história, na constituição do homem ou no fundo casual de tradições bem-sucedidas. Para não cair num ceticismo normativo Habermas propõe a substituição da razão prática pela comunicativa.

Essa proposta encontra suporte na reviravolta lingüístico-pragmática, a qual coloca a linguagem como condição possibilitadora e limitadora do conhecimento. Por conseguinte, é justamente através de medium lingüístico que a razão comunicativa se distingue da razão prática.

Nesse sentido a razão comunicativa vai tematizar os pressupostos universais pragmáticos da ação comunicativa, ou seja, da ação orientada pelo entendimento, visto que no ato de linguagem buscamos o entendimento com alguém sobre algo no mundo. Como na busca desse entendimento adotamos um enfoque performativo (pragmático), ou seja, uma performance, certos pressupostos devem ser aceitos. Qualquer um que e utilize de uma linguagem natural, portanto, a fim de entender-se com um destinatário sobre algo no mundo, vê-se obrigado a adotar esse enfoque performativo e a aceitar determinados pressupostos.

Tais pressupostos dizem respeito às seguintes pretensões de validade: o falante tem de expressar-se de modo a se fazer compreender; sua comunicação se faz através de conteúdo proposicional verdadeiro, isto é, ele dá a entender algo; suas intenções são expressas verazmente de modo que se firme um entendimento a partir do que é comunicado; e sua manifestação tem que ser correta para que seja possível o entendimento.

Portanto, ao contrário da razão prática, a razão comunicativa não oferece modelos para a ação, não é informativa nem imediatamente prática. Ela constitui-se apenas como condição possibilitadora e, ao mesmo tempo, limitadora do entendimento. A razão prática parte de uma orientação vinculante para o agir, ao passo que na razão comunicativa o agir é orientado para o entendimento, pois, tendo a linguagem como medium, o entendimento lhe é acoplado.

A especificidade da razão comunicativa, como Habermas a entende, é que ela é, ao mesmo tempo, imanente, isto é, só encontrável em contextos concretos dos jogos de linguagem e instituições da vida humana, mas, por outro lado, é universal, ou seja, é igualmente uma "idéia regulativa", na qual nos orientamos, quando criticamos nossa vida histórica. Isso quer dizer que ela interliga incondicionalidade/faticidade, universalidade/particularidade, necessidade/contigência.

Dessa forma, é justamente a recusa ao caráter normativo da razão prática que permitirá a formulação de um teoria do direito que abandone a relação de subordinação do Direito à Moral, conseqüentemente do Direito Positivo ao Direito Natural. Também somente com uma razão procedimental, que funda um procedimento que permite um equilíbrio entre Direito e Moral, é possível conciliar de forma adequada as duas dimensões da autonomia apresentadas pela Modernidade: pública e privada.

3.2. Autonomia privada e pública: direitos humanos e democracia

Ao tempo em que supera a tradição metafísico-religiosa, predominante desde a Antigüidade até o fim da Idade Média, a filosofia do sujeito na Modernidade inventa o conceito de razão prática como faculdade subjetiva.

Isso quer dizer, como já explicitado, que o a priori do conhecimento e do agir humanos não é mais uma ordem natural ou sagrada, mas a consciência humana em geral. Conseqüentemente, "a filosofia prática da Modernidade parte da idéia de que os indivíduos pertencem à sociedade como os membros a uma coletividade ou como as partes a um todo que se constitui através da ligação de suas partes". Para a Modernidade não é a coletividade que antecede o indivíduo, mas o indivíduo que antecede a coletividade, que portanto é construção sua. Dessa forma, a questão central da filosofia política não é mais em que termos o cidadão serve à comunidade política, mas como a sociedade serve ao indivíduo, ou melhor, como se dá a constituição política da coletividade (a fim de que ela assegure a liberdade que o indivíduo gozava antes do estado societário).

Nesse sentido, é somente dentro da filosofia moderna da consciência que se pode falar em liberdade individual, oponível à organização política. Nesse contexto, portanto, é que surge a noção de autonomia do indivíduo.

A postulação moderna da impossibilidade do conhecimento metafísico-ontológico desarticula o normativismo do direito racional, que, como afirma Habermas se perde num trilema, pois "após a implosão da figura da razão prática pela filosofia do sujeito, não temos mais condições de fundamentar os seus conteúdos na teleologia da história, na constituição do homem ou no fundo casual de tradições bem-sucedidas".

Sendo assim, qual é a fonte pós-metafísica ou pós-tradicional de fundamentação do direito? Ora, o direito terá que preservar a principal idéia político-filosófica pós-clássica: a autonomia individual, corolário da moral pós-convencional da consciência, característica da filosofia do sujeito e da razão prática como faculdade subjetiva. Isso será feito no modelo estrutural dos direitos subjetivos. Fundamentado, portanto, na autonomia moral do indivíduo, o conceito de direito subjetivo desempenha papel central na moderna compreensão do Direito.

Conforme explicita Habermas:

"ele [conceito de direito subjetivo] corresponde ao conceito de liberdade de ação subjetiva (rights) e estabelece os limites no interior dos quais um sujeito está justificado a empregar livremente sua vontade e eles definem liberdade de ação iguais para todos os indivíduos ou pessoas jurídicas, tidas como portadoras de direitos."

Foi nesse horizonte que Kant formulou seu princípio geral do direito, segundo o qual toda opção é eqüitativa quando sua máxima permite uma convivência entre a liberdade de arbítrio de cada um e a liberdade de todos, conforme uma lei geral. Em tal princípio baseia-se o artigo 4º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789:

"A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudica a um outro. O exercício dos direitos naturais de um homem só tem como limites os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo de iguais direitos. Esses limites só podem ser estabelecidos através de leis".

O direito subjetivo, como exposto, garante aos indivíduos um espaço de livre ação, no qual se pode exercer livremente a vontade (exercício da autonomia privada). Esses domínios de exercício livre da vontade são portanto neutralizados do ponto de vista ético, já que são estabelecidos por leis gerais e abstratas que explicitam a idéia de igual tratamento, de que todos têm os mesmos direitos. Por isso afirma Habermas que "o direito moderno tira dos indivíduos o fardo das normas morais e os transfere para as leis que garantem a compatibilidade das liberdades de ação".

Liberados do ponto de vista ético, os sujeitos singulares agem orientados pelo sucesso próprio. Como já exposto, nessa perspectiva (de observador) a norma jurídica não é encarada como norma racionalmente fundamentada mas como um obstáculo fático limitador do campo de ação, do agir estratégico.

No entanto, o estabelecimento dos espaços livres de ação (direitos subjetivos) e conseqüentemente a liberalização da eticidade tradicional (moral metafisíco-religiosa) somente é possível através do direito positivo, portanto, do direito objetivo. Este, por sua vez, é produzido através do entendimento de sujeitos que agem comunicativamente, de uma perspectiva de participante, informativa, isto é, através da aceitabilidade de pretensões de validade. Para a perspectiva do direito objetivo, a legitimidade (portanto a preservação da autonomia individual pública) se dá através de um processo legislativo que se apoia no princípio da soberania do povo, o qual garante a participação do indivíduo na formação da vontade política.

Nesses termos há um enfrentamento entre soberania popular, que resguarda a autonomia do ponto de vista objetivo, político, e direitos humanos que resguarda a autonomia do ponto de vista subjetivo, privado. Há então um nexo problemático entre as liberdades subjetivas e a autonomia do cidadão.

Conforme explica Habermas, a doutrina do direito subjetivo começa quando os direitos morais subjetivos se tornam indiferentes, pretendo uma legitimidade maior que a do processo de legislação política. Para Savigny, o direito subjetivo garante "uma região de dominação independente", sendo legítimo por si mesmo. Assim, "a autonomia privada é garantida, nessa esfera colocada sob a proteção do direito, principalmente através do direito de fechar contratos, de adquirir, herdar ou alienar propriedade".

O século XIX, no entanto, acentua a outra face do direito; sua perspectiva objetiva. Depois que a teoria moral Kantiana perde força e se desfaz o vínculo entre a vontade autônoma de pessoa e a liberdade de arbítrio, os direitos subjetivos não conseguem mais se sustentarem por si próprios. Eles passam a ser concebidos como reflexo do direito objetivo, da ordem jurídica, que traduz uma vontade, ou um poder de vontade nela incorporado.

O positivismo jurídico toma corpo e atinge seu ápice em Hans Kelsen, que finalmente " determina o direito subjetivo em geral como interesse protegido, objetiva e juridicamente, e como liberdade de arbítrio, assegurado objetivo, e juridicamente". No entanto, pensando o médium jurídico sem se referir à moral, o positivismo não pôde dar contribuição em relação à questão filosófica da legitimidade do direito.

Depois da II Guerra Mundial, com o destronamento do Direito Positivo, o jusnaturalismo tenta recobrar forças e restaurar o antigo nexo entre moral e direito (fundamentação moral da autonomia privada através de direitos subjetivos), mas não convence durante muito tempo. A estrutura intersubjetiva do direito já aparece de forma mais consistente e com maior importância para o problema da legitimidade.

Como visto, temos por um lado que a subordinação do direito objetivo ao subjetivo (quando os direitos morais subjetivos se tornam independentes) implica uma legitimação do direito subjetivo maior do que a do processo legiferativo; por outro temos que a subordinação do direito subjetivo ao objetivo, nos termos de um positivismo jurídico, faz com que a legitimidade do direito objetivo se engate na legalidade vazia de uma dominação política contigencial. Em outras palavras, o direito subjetivo, enquanto moral autônoma do sujeito individual, limita o exercício da soberania popular. Esta, como moral autônoma de um macro sujeito, quando predominante não conserva o conteúdo moral independente dos direitos subjetivos.

Essa interligação, na forma de uma concorrência não confessada, pode ser vista na filosofia Kantiana. Kant percebe que os direitos humanos (a iguais liberdades subjetivas de ação) precisam assumir uma figura positiva, ou seja, precisam se constituir em um sistema de direitos, o que somente pode ocorrer na forma de leis públicas, que obtêm legitimidade por meio de um processo democrático fundado na soberania do povo. Através da necessidade de positivação, os direitos humanos, fundamentados no princípio da moral, interligam-se ao princípio da soberania do povo. A autonomia privada dos indivíduos necessita da autonomia política dos cidadãos, as duas se tocam por intermédio do direito positivo desacoplado da fundamentação metafísica ou religiosa.

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É nesse sentido que Habermas afirma que "o princípio do direito parece realizar uma mediação entre o princípio da moral (direitoshumanos) e o da democracia (soberania popular)". Mas salienta que não está claro como esses dois princípios se comportam reciprocamente, pois em Kant e em Rousseau há uma relação de concorrência não confessada entre ambos.

Para melhor explicitar essa relação de oposição convém mostrar como as tradições políticas surgidas nos Estados Unidos e caracterizadas como liberais e republicanas interpretam os direitos humanos e a soberania do povo. Os liberais concebem aqueles como expressão de uma autodeterminação moral, enquanto que os republicanos entendem esta como expressão de uma auto-realização ética.

Assim, os liberais postulam primazia dos direitos humanos sobre a soberania popular. Evocando o perigo de um tirania da maioria, eles defendem que a vontade soberana do legislador político deve ser limitada pelas liberdades individuais, as quais são pré-políticas e decorrem de um estado de natureza fictício. Os republicanos, por outro lado, entendem que os direitos humanos não podem valer independente da vontade soberana do povo, mas deve ser um produto da mesma, dando destaque ao valor da auto-organização dos cidadãos.

Kant e Rousseau não estabelecem tal oposição entre esses dois princípios. Ao contrário, intentam com que eles sejam interpretados mutuamente, fazendo ambos derivarem do conceito de autonomia. Como não obtiveram êxito, no olhar de Habermas, em estabelecer o meio derivado entre os dois, acabaram por terminar tendendo mais para um ou outro lado. Kant se aproximou do modelo liberal e Rousseau do republicano.

Para Kant, o sistema de direitos que estabelece iguais liberdades subjetivas de ação é irrenunciável e se legitima por si, ou seja, antes mesmo de se expressar por meio de leis públicas. Sua legitimação deriva do princípio moral e independe da autonomia política dos cidadãos. Entretanto, Kant não enxergou nos direitos subjetivos um limiete ao exercício da soberania popular:

"Kant não interpretou a ligação da soberania popular aos direitos humanos como restrição, porque ele partiu do princípio de que ninguém, no exercício de sua autonomia como cidadão, poderia dar adesão a leis que pecam contra sua autonomia privada garantida pelo direito natural".

Por outro lado, para Rousseau os direitos humanos, em relação à soberania popular, estão a fortiori e não a priori como queria Kant. No entendimento de Rousseau, " como a vontade soberano do povo se exprime na linguagem de leis abstratas e gerais, está inscrito naturalmente nela o direito a iguais liberdade subjetivas", que é a síntese dos direitos humanos. No entanto, a crítica Habermasiana é contundente: "a forma gramatical de mandamentos universais nada diz sobre sua validade", portanto sobre sua fundamentação moral.

Em suma, a filosofia política moderna, exposta aqui através alguns de seus expoentes (Kant e Rosseau), não consegue formular uma proposta consistente que estabeleça o nexo adequado, o entrelaçamento simétrico (sem concorrência) entre direitos humanos, garantidores da autonomia privada dos indivíduos, e soberania popular, garantidora da autonomia política dos cidadãos.

Habermas propõe então o adequado elo de ligação entre soberania popular e direitos humanos. Ele está exatamente no conteúdo normativo do modo de exercício da autonomia política, e não na forma em que esta se expressa, como queria Rosseau, ou na substância dos direitos humanos naturalmente intocável pela formação da vontade soberana popular no exercício da autonomia política, como queria Kant.

Assim, é no modelo de auto-legislação que autonomia do indivíduo e autonomia do cidadão podem se encontrar de forma co-originária, ou seja, sem subordinação de uma à outra. A substância dos direitos humanos, na verdade, deve estar nas condições formais para a institucionalização do modo de exercício da autonomia política. Somente assim o direito às mesmas liberdades de ação subjetivas, enquanto direito moral, não é simplesmente imposto ao legislador soberano como barreira externa (Kant) nem instrumentalizado com requisito funcional para seus objetivos (Rousseau).

Mas qual é esse modo? Qual modo de exercício da autonomia, qual modo de formação da vontade política permite um nexo adequado entre direitos humanos e soberania popular? Como a democracia (soberania popular) pode conviver com os direitos humanos sem se subordinar a eles, sem subordiná-los?

Para Habermas, essa pergunta não pode ser respondida pela filosofia da consciência. É necessário a utilização de um novo paradigma, que ele extrai da reviravolta linguística-pragmática do século XX. É o paradigma da intersubjetividade, da racionalidade intersubjetiva. Só a partir dele é possível explicar "adequadamente a estrutura intersubjetiva dos direitos e a estrutura comunicativa da autolegislação", portanto o modelo adequado de exercício da autonomia política.

O solipsismo da filosofia da consciência não consegue enxergar a estrutura intersubjetiva dos direitos subjetivos. Tal estrutura decorre do fato de que os direitos subjetivos, como elementos do ordenamento jurídico, do direito objetivo portanto, necessitam de um reconhecimento recíproco dos sujeitos de direitos, visto que são membros livres e iguais da comunidade.

Os direitos subjetivos expressam uma reciprocidade de direitos e deveres que se refere a todos os sujeitos. Por isso os direitos subjetivos podem ser reclamados judicialmente. O reconhecimento dessa reciprocidade, utilizada para a construção da ordem jurídica e para a reclamação judicial desses direitos, pressupõe a cooperação ou colaboração dos sujeitos de direitos. Essa cooperação também advém da co-autoria na construção do ordenamento jurídico, do direito objetivo, no qual estão inculpidos os direitos subjetivos

Assim a estrutura de iguais liberdades subjetivas, apontada pelo direito subjetivo, disfarça a relação de colaboração entre os sujeitos desses direitos, fundada na co-autoria do ordenamento jurídico e na reciprocidade de tais direitos. "Neste sentido, os direitos subjetivos são co-originários com o direito objetivo, pois este resulta dos direitos que os sujeitos se atribuem reciprocamente".

A partir da colocação desse viés intersubjetivo é possível explicitar a estrutura comunicativa da autolegislação, decorrente da necessidade de um conhecimento recíproco. Nesse sentido, para chegar a convicções nas quais todos os sujeitos singulares podem concordar entre si sem coerção, quer seja a da vontade da maioria ou de um princípio moral fundamentador de um direito natural, é necessário " uma formação discursiva da opnião e da vontade, na qual são utilizados as forças ilocucionárias do uso da linguagem orientada pelo entendimento". É dela de onde o processo democrático extrai sua força legimitadora. É este o modelo de autolegislação.

Assim, o modo adequado de exercício da autonomia pública consiste numa formação discursiva da opinião e da vontade na qual se pressupõe que os cidadãos sejam suficientemente independentes em virtude uma autonomia privada uniformemente assegurada. Nota-se, portanto, que "o nexo interno que se buscava entre direitos humanos e soberania do povo consiste, pois, em que os direitos humanos institucionalizam as condições de comunicação para formar a vontade de maneira política e racional", através de um sistema de direitos. Essa formulação só é possível sob os auspícios de uma racionalidade comunicativa ou intersubjetiva, por meio do qual Direito e Moral são também co-originários.

Enquanto que a autonomia pública tem na autonomia privada sua condição de possibilidade, por outro lado, o usufruto dessa autonomia privada somente ocorre se os cidadãos se utilizarem daquele modo específico de exercício da autonomia pública. Nesse sentido ambas formas de autonomia pressupõem-se mutuamente, são co-originárias.

Em suma, temos que o sistema de direitos deve ser legítimo na medida em que resguarda simultaneamente a autonomia pública dos cidadãos e a autonomia privada dos indivíduos, portanto não sendo reduzido a uma interpretação moral dos direitos, nem a uma interpretação ética da soberania popular. Isso vai ocorrer, para Habermas, num modo específico de exercício da autonomia política, qual seja, a formação discursiva da opinião e da vontade, cujas condições formais devem ser institucionalizadas juridicamente por meio dos direitos subjetivos.

3.3. A Relação de complementariedade entre moral racional e direito positivo e o princípio do discurso

Segundo Habermas, para explicitar o adequado nexo interno (co-originariedade) entre direito objetivo e subjetivo, autonomia pública e privada, soberania popular e direitos humanos, é necessário explicar a estrutura intersubjetiva do direito e a estrutura comunicativa da autolegislação.

Mas para formular tal compreensão intersubjetiva teve-se que superar as dificuldades apresentadas pelas colocações da filosofia da consciência e de sua razão prática, propondo a troca por uma razão comunicativa. Nesse sentido, foi necessário superar, como corolário da razão prática, o fato do direito moderno ter mantido a distinção entre direito natural e direito positivo, o que implicou a reduplicação da Moral no Direito, ou seja, o Direito subordinado à Moral. Dessa forma, urge esclarecer como se dá a adequada relação (co-originariedade) entre Direito e Moral, nos termos da proposta da teoria discursiva do direito.

Expondo as diferenças entre Direito e Moral, Habermas mostra que a relação de co-originariedade entre ambos significa que o direito positivo não pode extrair toda sua força legitimadora de um princípio moral consubstanciado num direito superior, natural, nem pode se reduzir a um empirismo que nega qualquer tipo de legitimidade que ultrapasse a contingência das decisões legisladoras. Em outras palavras, o Direito não é mera cópia da Moral, mas também não é completamente estranho a ela.

Na compreensão de Habermas:

"no nível de fundamentação pós-metafísico tanto as regras morais como as jurídicas diferenciam-se da eticidade tradicional, colocando-se como dois tipos diferentes de normas de ação que surgem lado a lado, completando-se".

Assim, podemos dizer, como Habermas, que as questões morais e jurídicas se referem aos mesmos problemas: como é possível ordenar legitimamente relações interpessoais e coordenar entre si ações servindo-se de normas justificadas e como é possível solucionar consensualmente conflitos de ação na base de regras e princípios normativos reconhecidos intersubjetivamente? O que há de comum entre dois é que "a moral e o direito servem para regular conflitos interpessoais; ambos devem proteger, de forma simétrica, todos os participantes e afetados".

Essa proteção, com a superação da metafísica pela filosofia da consciência, vai recair sobre o agir humano fundado na liberdade, que é aquele em que se pode reconhecer a presença da autodeterminação, conceito que apresenta aspectos diferentes em relação ao Direito e à Moral. "A autodeterminação moral constitui um conceito unitário, segundo o qual cada um segue exatamente as normas que ele, de acordo com um juízo próprio e imparcial, tem como obrigatórias". A autodeterminação jurídica, por outro lado, se apresenta como autonomia pública e privada , divisão que ocorre por força da positividade do direito.

Através dessa positividade, pela qual o direito é criado e imposto à coletividade, há uma separação nítida dos papéis: "de um lado, há autores que criam (e falam) o direito, de outro, destinatários que estão submetidos ao direito vigente". No momento da criação deve ser garantida a autodeterminação por meio da autonomia pública, consistente no uso público das liberdades comunicativas. Por outro lado, no momento da destinação das normas, deve ser preservada a autodeterminação por meio da autonomia privada, consistente no uso privado de liberdades subjetivas. Diferentemente, na autodeterminação moral a pessoa é ao mesmo tempo criadora autora (através de um juízo próprio e imparcial) da norma e destinatária dela num processo de validação subjetiva.

Assim, como a autonomia moral se diferencia da autonomia jurídica (posta esta bifurcar-se em público e privada), Habermas pretende ir além da tradicional redução teórica moral do conceito de autonomia: "Ora, se a autonomia das pessoas do direito abrange mais do que a autonomia em sentido moral, o direito positivo não pode ser entendido como um caso especial da moral ".

Nesse sentido, Habermas aponta outras diferenças entre Direito e Moral, as quais também impedem a introdução de uma hierarquia entre direito natural e positivo. Tais diferenças são abordadas por critérios como estrutura, limite e extensão, todos interligados.

As ordens jurídicas modernas são construídas na estrutura de direitos subjetivos, os quais liberam ou desobrigam sujeitos de direitos de mandamentos morais, na medida em que criam espaços de livre exercício da vontade, de arbítrio legítimo, para agir de acordo com suas preferências. Assim, no direito moderno vale o princípio da licitude, segundo o qual é permitido tudo o que não seja expressamente proibido. Dessa forma, enquanto que na Moral existe uma simetria entre direitos e deveres, no Direito as obrigações, como conseqüências das atribuições de direitos, resultam somente da restrição legal de liberdades subjetivas iguais. Nota-se, portanto, no direito moderno, que há uma "atribuição conceitual básica de privilégio aos direitos em relação aos deveres".

A concepção acima é explicada a partir do delineamento das diferenças quanto ao limite, momento em que se evidenciam os conceitos modernos de pessoa de direito e comunidade jurídica. Para o universo moral não há limites sociais ou históricos. Ele "abrange todas as pessoas naturais, em toda sua complexidade histórica e vital; deste modo, a proteção moral refere-se à integridade de sujeitos plenamente individuados". De outro lado, a comunidade jurídica, localizada no espaço e no tempo, protege a integridade de seus membros somente à medida em que eles assumem o status de portadores de direitos subjetivos.

Quanto à extensão, nota-se que o direito regula matérias, em relação à moral, de forma mais limitada, porque somente o comportamento externo é acessível e somente ele pode ser imposto; e de forma mais ampla, porque o direito não se restringe à regulamentação de conflitos interpessoais, pois pode conferir forma impositiva a objetivos e programas coletivos. Assim, o direito não se refere a questões morais apenas, mas também a problemas pragmáticos, éticos e mesmo de conflito de interesses.

Kant, apesar das distinções apresentadas, faz derivar o princípio geral do direito de um princípio moral, o seu imperativo categórico. A partir do conceito fundamental da lei moral da liberdade Kant extrai as leis jurídicas, submetendo o Direito à Moral. Isso significa que para ele o princípio do direito é uma limitação do princípio moral, e o Direito, portanto, uma mera reduplicação da Moral, ocorrendo o mesmo entre direito natural e positivo.

Para Habermas essa reduplicação não deve ocorrer, porque leva a extravios. Como visto, ela não se compatibiliza com a bifurcação da autonomia jurídica em pública e privada e com as demais diferenças entre o mundo moral e o jurídico.

A partir dessas diferenças Habermas faz uma também análise sociológica da relação entre Direito e Moral. A partir do desfacelamento da eticidade tradicional, esclarece os déficits apresentados pela moral quanto à função de integração social e o papel assumido pelo direito. Nosso autor coloca a relação mencionada não no sentido de uma subordinação, mas no de uma complementação recíproca.

Com a decomposição da eticidade tradicional (moral e direito separados), a moral passa a se caracterizar com um sistema de saber. Em relação à ela, a transferência do saber para o agir é incerta, frágil e não apresenta segurança. Sua eficácia para a ação é limitada na medida em que não pode atingir os agentes por outro motivo que não o da internalização. Isso ocorre tendo em vista que "a moral, apoiada apenas em argumentos racionais, só se responsabiliza por juízos corretos e eqüitativos e não pela obrigatoriedade legitimamente imposta, com poder de coação". Assim a moral da razão sobrecarrega o indivíduo com expectativas em relação à sua força de vontade. "Com relação às expectativas, ele deve conseguir a força para agir segundo intuições morais inclusive contra seus próprios interesses, a fim de harmonizar o dever e a obrigação", o que reflete um panorama de incerteza motivacional. Essa incerteza motivacional, para Habermas, é absorvida, na perspectiva da complemetaridade, pela faticidade da imposição do direito, visto que o direito posto coercitiva impõe o agir conforme normas objetivadas, deixando livre os motivos e os enfoques, e cobre de tal modo as expectativas normativas com ameaças de sanção, que os destinatários podem limitar-se a considerações orientadas pelas conseqüências. Devido à sua positividade o Direito adquire obrigatoriedade também no nível institucional, ao passo que a moral pós-tradicional representa apenas uma forma de saber cultural. "O direito não é apenas um sistema de símbolos, mas também um sistema de ação".

Na conta da moral moderna, resultante da decomposição da eticidade tradicional, não é depositado só esse déficit, mas outros três, os quais devem ser explicitados a fim de que se possa compreender porque o direito deve complementar a moral, em vez de se subordinar a ela.

A incerteza motivacional, já explicitada, deve ser acrescentada à inderteminação cognitiva das normas morais, pois "o caráter abstrato dessas normas universalizadas levanta problemas de aplicação que sobrecarregam a capacidade do indivíduo". Isso leva Habermas a afirmar que:

"sob o ponto de vista da complementariedade entre direito e moral, o processo de legislação parlamentar, a prática da decisão judicial institucionalizada, bem como o trabalho profissional de uma dogmática jurídica, que sistematiza decisões e concretiza regras, significam um alívio para o indivíduo, que não precisa carregar o peso cognitivo da formação do juízo moral próprio"

Enquanto que o problema da incerteza motivacional diz respeito à ineficácia para a ação em relação ao próprio indivíduo, o problema da imputabilidade diz respeito à ineficácia para a ação em relação à coletividade, aos outros. É que de acordo com a moral da razão os indivíduos aderem à realidade das normas sob o pressuposto de que estas são seguidas faticamente por cada um. Assim, as normas não podem ser exigidas enquanto esse pressuposto, que é uma condição, esteja realizado. O problema é que as normas válidas só se tornam imputáveis quando puderem ser impostos faticamente contra um comportamento desviante, o que também será resolvido somente com a positividade do direito.

Há ainda outro problema retinente. Este advém da imputabilidade de obrigações que expressam deveres positivos (comissivos) e exigem para seu cumprimento ações cooperativas, organizacionais ou institucionais, ou seja, impossíveis de se atribuir a indivíduos isolados, por maior o número que eles sejam. Assim, só o direito, por poder ser auto-reflexivo, pode determinar um sistema de imputabilidade que se refere não só a pessoas jurídicas naturais, mas também a sujeitos de diretos fictícios, tais como corporações e instituições.

Em suma, quanto aos déficits expostos que geram as razões para as relações de complementaridade do Direito com a Moral, podemos dizer que:

"[só] o direito positivamente válido, legitimamente firmado e tolerável através de ação judicial pode tirar das pessoas que agem e julgam moralmente o peso das grandes exigências cognitivas, motivacionais e organizacionais que uma moral ajustada segundo a consciência subjetiva acaba impondo a elas" .

Cumpre dizer que essa complementariedade do Direito no sentido de compensação das fraquezas de uma moral moderna pós-metafísica não implica um completo desligamento entre ambos no sentido de uma indiferença do Direito em relação à Moral, ou seja, não significa a neutralidade do direito diante da moral. O direito, na verdade, não fica alheio à Moral, pois o processo legislativo permite que fluam para o direito, ao lado de argumentos éticos e pragmáticos, argumentos morais.

Nesse sentido, o que Habermas entende é que não deve haver qualquer elemento de subordinação na relação entre Moral e Direito, por conseguinte entre direito natural e positivo, sob pena de se fazer a validade do direito sucumbir a um decisionismo cego e à contigencialidade de uma legislatura (no caso de um positivismo jurídico) e por outro lado de se fazer "que ela [a validade jurídica] tenha que ser preservada da corrente da temporalidade através de uma moral limitadora" (no caso de um jusnaturalismo).

Mas, nesta perspectiva de superação da relação Kantiana de dependência do Direito em relação à Moral, como se dá a legitimidade do direito se ela não advém simplesmente da força de um direito natural moralmente determinado e se, ao mesmo tempo, o direito é aberto a argumentos morais através do processo legislativo, ou seja, se o direito não é subordinado à moral, mas também não é indiferente a ela?

Ora, a tese habermasiana para tal questionamento é apontar Direito e Moral como co-originários, o que é alcançado mediante a formulação do princípio do discurso.

3.3.1. O princípio do discurso, forma do direito e democracia

A mencionada relação de co-originariedade entre o mundo jurídico e o moral só ocorre, conforme Habermas, através de um princípio neutro em relação a ambos, qual seja, o princípio do discurso. Assim, a questão inicial do direito racional é reformulada sob as premissas da teoria do discurso: "que direitos as pessoas têm que atribuir-se mutuamente, quando se decidem a constituir uma livre associação de parceiros do direito e a regular legitimamente sua convivência com os meios do direito positivo?" .

Como resposta, temos formulado o princípio do discurso (D), do seguinte modo: São válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais.

Assim, o princípio do discurso (D) contém um conteúdo normativo, uma vez que explicita o sentido da imparcialidade de juízos práticos. No entanto, sua normatividade não é a mesma atribuída à razão prática, qual seja, uma normatividade imediata para a ação. Baseado numa razão comunicativa, procedimental, o princípio do discurso apresenta uma normatividade apenas mediata ou indireta para a ação, na medida em que não exprime o modelo correto do agir, mas tão somente o procedimento válido para a atribuição de tal predicado ao agir humano.

Pode alegar-se que o princípio moral, como o imperatico categórico Kantiano, também explicita um conteúdo procedimentalista, na medida em que é abstrato e depende de um processo de concretização. Entretanto o grau de abstração do princípio do discurso permite-lhe permanecer neutro em relação ao direito e à moral.

Aqui se encontra, na verdade, a questão central da teoria discursiva do direito e portanto de sua fundamentação para a democracia e para os direitos humanos: "como entender o princípio do discurso, determinante para a legitimação do direito, se ele, devido à complementaridade entre direito e moral, não pode mais coincidir como princípio moral?"

Em outras palavras, como manter uma relação do direito com a moral (o que significa não cair num positivismo jurídico, no qual a moral se separa completamente do direito e este portanto prevalece e subordina aquela) e ao mesmo tempo fazer com que o direito não seja mera cópia de um princípio moral, de um direito natural (jusnaturalismo)?

A Modernidade tentou uma resposta que não se mostrou consistente. Kant e Rousseau pretenderam fazer tal conciliação através do que Habermas chamou de interpretação mútua (entre direitos humanos e soberania do povo). Como já abordado, Kant entendeu que na prática legislativa o autor não poderia atribuir direito que ferisse sua autonomia privada, pois seria uma espécie de contra-senso (ninguém poderia ser injusto consigo mesmo). Rousseau, por sua vez, entendeu que a soberania popular, por ser expressa pela fórmula de leis gerais, contemplaria a necessidade de atribuição de iguais liberdades subjetivas.

No entanto, nenhuma dessas concepções conseguiu retirar do direito o encargo de ter que se amoldar à moral. Quer seja a de um sujeito singular (o eu da Crítica da razão Pura) ou a de um sujeito coletivo (o povo do Contrato Social). Não entenderam que autonomia absoluta de um implica a redução dogmática da autonomia do outro. Ora, direitos humanos e soberania popular não podem ser interpretados de forma absoluta (sob pena de reduzir o direito à moral) mas, ao contrário, devem ser relativizados um em função do outro, o que se dá através de um procedimento em que ambos são pressupostos mutuamente (e não apenas interpretados).

Essa concepção só é possível através de uma razão procedimental, na qual figura o principio do discurso como neutro em relação ao Direito e à Moral. Este princípio quando assume a forma jurídica torna-se no princípio da democracia, que destina-se a amarrar um procedimento de normatização legítima do Direito: a autolegislação comunicativo-discursiva, na qual são garantidas as condições sob as quais os cidadãos podem avaliar, à luz do princípio do discurso, se o Direito que estão criando é legítimo.

O princípio democrático contempla a autonomia pública e privada porque consegue sair da relação de subordinação entre Direito e Moral e estabelecer um procedimento discursivo de formação da opinião e da vontade política através do código do Direito.

Dessa forma, a partir da formalização jurídica do princípio do discurso Habermas pretende fundamentar um sistema de direitos que faça jus à autonomia privada e pública dos cidadãos. Esse sistema, portanto, deve garantir através do próprio medium jurídico as condições ou o processo para a normatização legítima do direito positivo, ou, em outras palavras o processo democrático discursivo. Assim, no princípio da democracia, resultante da interligação entre o princípio do discurso e a forma jurídica, Habermas vê a gênese lógica dos direitos da qual se depreende as seguintes categorias de direito que geram o próprio código jurídico, uma vez que determinam intersubjetivamente o status de pessoas de direito:

1.Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do direito á maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação;

2.Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do status de um membro numa associação voluntária de parceiros e direito;

3.Direitos fundamentais que resultam imediatamente da possibilidade de postulação judicial de direitos e da configuração politicamente autônoma de proteção jurídica individual;

4.Direitos fundamentais à participação, em igualdade de chances, em processos de formação da opinião e da vontade, nos quais os civis exercitam a sua autonomia política e através dos quais eles criam o direito legítimo;

5.Direitos fundamentais a condições de vida garantidos social, técnica e ecologicamente, na media em que isso for necessário ao aproveitamento, em igualdade de chances dos direitos enumerados de 1 a 4.

O código ou o medium do direito se constitui, portanto, de forma co-originária com o princípio democrático, já que é somente por meio do código do direito que os cidadãos podem realizar a normatização política autônoma, ou seja, somente na condição de sujeitos de direitos (estabelecida pelo medium jurídico) os cidadãos tomam parte no processo legislativo, tornando efetiva sua autonomia.

Assim, somente o princípio do discurso e medium jurídico vêm antes da prática de autodeterminação dos civis, pois quando interligados consubstanciam o princípio democrático que faz a autonomia pública e a privada se pressuporem mutuamente.

3.4. Três modelos normativos de democracia

A Modernidade apresentou, como visto, duas respostas à questão da legitimidade do direito, as quais podem ser tipificadas de forma ideal em dois modelos normativos de democracia, representados hoje pelas compreensões liberal e republicana de política – expressões que hoje marcam frentes opostas no debate desencadeado nos Estados Unidos pelos assim chamados comunitaristas.

Tais concepções explicitam a dupla reação da Modernidade, fundamentando o direito e a democracia, para salvaguardar a liberdade contra o absolutismo e contra ordens sociais de base metafísico-religiosa. Nesse sentido, as compreensões liberal e republicana tipificam a primazia do princípio liberal dos direitos humanos, por um lado, e a primazia do princípio da soberania popular, por outro.

A proposta habermasiana de democracia e do direito estabelece um nexo interno de eqüiprimordialidade entre autonomia pública e privada, por conseguinte, entre soberania do povo e direitos humanos. Dessa forma, Habermas apresenta um terceiro modelo normativo de democracia que intenta superar os dois já mencionados.

Antes desse passo, porém, convém explicitar as diferenças entre as concepções liberal e republicana segundo três critérios: o do conceito de cidadão do Estado; o do conceito de direito; e da natureza do processo político de formação da vontade.

3.4.1.Modelos liberal e republicano de democracia

3.4.1.1. Concepções de cidadão do Estado

Para a concepção liberal o cidadão é o portador de direitos subjetivos, concebidos estes como direitos negativos que garantem um espaço de ação alternativo em cujos limites as pessoas do direito se vêem livres de coações externas. Assim, "determina-se o status dos cidadãos conforme a medida dos direitos individuais de que eles dispõem em face do Estado e dos demais cidadãos" .

Os direitos políticos têm a mesma estrutura dos direitos subjetivos: oferecem ao cidadão a possibilidade de conferir validação a seus interesses particulares, de maneira que esses possam ser agregados a outros interesses privados (por meio de votações, formação de corporações parlamentares e composições de governo). Depreende-se assim que o processo de formação da vontade política, adiantando o terceiro critério, é compreendido como uma justaposição de interesses particulares.

O Estado aqui é justificado pela proteção que dá aos interesses pré-políticos. O propósito do aparato estatal é a proteção que fornece aos indivíduos quanto à garantia de suas liberdades individuais.

Por outro lado, segundo a concepção republicana o status dos cidadãos não é determinado pelo modelo das liberdades negativas, oponíveis contra o Estado e contra terceiros. Os direitos políticos, de participação na formação da vontade política, são entendidos como direitos positivos e não como garantias de preservação da liberdade (do agir conforme regras) face a coações externas.

Nesse sentido, cidadão é aquele que resgata sua autonomia através da participação em uma práxis comum de formação da opinião e da vontade política. O aparato estatal, portanto, legitima-se por defender e garantir essa práxis através da institucionalização da liberdade pública.

O processo político, nesse caso, não desempenha um função mediadora entre sociedade e Estado nem representa a agregação de interesses particulares. Ao contrário, ele representa, na visão republicana, o espaço próprio onde é exercida a autonomia no sentido de autogoverno pelo uso público da razão e no qual se busca o acordo mútuo em torno de objetivos e normas que correspondam ao interesse comum.

3.4.1.2.Conceito de direito

A controvérsia também se instaura em torno do conceito de direito em si mesmo, ou seja, acerca da predominância de sua dimensão objetiva ou subjetiva. Na compreensão liberal, a esfera subjetiva precede a objetiva e a fundamenta. A ordem jurídica, portanto, consiste em que ela possa constatar em cada caso individual quais são os direitos cabíveis aos indivíduos.

Pela visão republicana, os direitos subjetivos é que se depreendem da ordem jurídica objetiva, a qual deve possibilitar e garantir a integridade de um convívio eqüitativo, autônomo e fundamentado sobre o respeito mútuo.

"Em um dos casos a ordem jurídica constrói-se a partir de direitos subjetivos, no outro caso concede-se um primado ao teor objetivo desses mesmos direitos".

3.4.1.3.Natureza do processo político

As diferentes conceituações do papel do cidadão e do direito são expressões na verdade de um dissenso de raízes mais profundas sobre a natureza do processo político.

Na concepção liberal, baseada nos direitos subjetivos individuais, a política corresponderá a um espaço de justaposição de interesses privados. Os participantes do processo político adotam, assim como no mercado, uma performance orientada pelo sucesso próprio, um agir estratégico portanto. Assim, o processo de formação da opinião e da vontade política, tanto em meio à opinião pública como no parlamento, é determinado pela concorrência entre agentes coletivos agindo estrategicamente e pela manutenção ou conquista de posições de poder. O que ocorre é uma negociação de interesses opostos que nada diz sobre a racionalidade dos resultados.

Assim como no mercado, as decisões dos cidadãos são voltadas para a conquista de êxito. O voto é a concordância das preferências do votante com determinado programa político ou pessoa, não dizendo respeito a objetivos comuns, de interesse de todos. Em decorrência, o processo político é definido não de acordo com um consenso, mas segundo um critério quantitativo: o número de votos.

Diferentemente, para a concepção republicana o processo político é o espaço do agir orientado pelo entendimento mútuo, não obedecendo às estruturas de processos de mercado. O paradigma aqui não é o mercado, mas a interlocução. A justificação do Estado, portanto, não reside na defesa dos direitos subjetivos, mas na garantia de um processo inclusivo de formação da opinião e da vontade, que constitui uma práxis comum de autodeterminação. Nela, os cidadãos livres e iguais chegam a um acordo mútuo (ao contrário de interesses negociados) sobre os objetivos e interesses comuns da comunidade política.

3.4.2.Terceiro modelo normativo de democracia: a política deliberativa

Após a apresentação das principais diferenças entre as concepções liberal e republicana de política e seus modelos de democracia baseados respectivamente na proteção primordial da autonomia privada e pública, cumpre evidenciar quais sejam as vantagens e defeitos de cada um para tão somente explicitar um terceiro modelo que toma elementos de ambos os anteriores, conciliando-os, ao mesmo tempo em que os supera.

A vantagem do modelo republicano, conforme Habermas, é a firmação do sentido democrático enquanto auto-organização da sociedade pelos cidadãos em acordo mútuo por via comunicativa. Nesse sentido, o republicanismo não reduz a esfera política a um processo de negociação entre interesses particulares opostos.

No entanto, tal concepção põe um peso demasiado sobre o caráter ético do acordo mútuo. Assim, faz com que o processo democrático dependa das virtudes de cidadãos voltados tão somente ao bem comum. Em outras palavras, essa visão é bastante idealista, visto que pressupõe que no processo de formação política da vontade os participantes agem apenas orientados pelo entendimento mútuo voltado para o interesse comum.

Tal idealismo não se sustenta em sociedades complexas como as ocidentais hodiernas, nas quais se observa um forte pluralismo cultural, bem como uma variedade de visões de mundo. Aqui se encaixa a contribuição do modelo liberal: sempre por detrás de objetivos politicamente relevantes, voltados ao bem comum, existem interesses e orientações de valor, os quais permanecem em conflito no interior de uma mesma coletividade sem perspectiva de consenso.

Para resolver tal problema, não bastam os discursos éticos. É necessário utilizar-se também de recursos não-recursivos, ou seja, de processos de negociação de interesses opostos. Nesse ponto cumpre explicitar a dimensão intersubjetiva de negociações desse tipo (o que faltou ao modeldo liberal) a fim de que se estabeleça uma ligação adequada entre os dois vetores apresentados: o agir estratégico (negociação) e o orientado pelo entendimento (acordo mútuo). Nesse sentido, Habermas expõe:

"Negociações desse tipo certamente pressupõem uma disposição à cooperação, ou seja, a vontade de obter resultados mediante a observância de regras do jogo que sejam aceitáveis para todos os participantes, mesmo que por razões diversas".

Dessa forma, a justiça de tais acordos, que não são capazes de excluir totalmente o agir estratégico, deve ser medida pelos seus pressupostos e procedimentos através dos quais são realizados e que precisam de uma justificação racional e até mesmo normativa do ponto de vista da justiça.

Isso significa no campo jurídico que como no processo legislativo de produção normativa não há exclusão de um ou outro enfoque de ação ou forma de comunicação (orientada pelo entendimento ou estratégica), nele não se deve levar em conta apenas a eticidade particular de determinada coletividade, mas deve-se atentar também para a universalidade de argumentos morais. Nesse sentido, o direito firmado politicamente, caso se pretenda legítimo, precisa ao menos estar em consonância com princípios morais que reivindiquem validação geral, para além de uma comunidade jurídica concreta.

Para Habermas, portanto, o modelo de democracia, ou seja, o conceito de uma política deliberativa, deve abranger ambas as formas comunicativas – explicitadas pelo modelo liberal e pelo republicano – na qual se constitui uma vontade comum. Deve, então, entrelaçar um auto-entendimento mútuo de caráter ético e um equilíbrio entre interesses divergentes por meio de uma fundamentação moral.

A tese habermasiana é justamente que a política dialógica e a instrumental (entendimento mútuo e negociação) podem entrecruzar-se no medium das deliberações, o que ocorre quando as respectivas formas de comunicação estão suficientemente institucionalizadas. A legitimidade dessa formação da opinião e da vontade institucionalizada, que agrega a política dialógica e a instrumental, deve-se às condições de comunicação, ao procedimento que a regula.

Com isso a razão prática desloca-se dos direitos universais do homem ou da eticidade concreta de uma determinada comunidade e restringe-se a regras discursivas e formas argumentativas que extraem seu teor normativo da base validativa da ação que se orienta ao estabelecimento de um acordo mútuo, isto é, da estrutura da comunicação lingüística.

É o procedimento, portanto, que confere força legitmidaroa à formação institucionalizada da opinião e da vontade, conciliadora das diferentes formas de comunicação. O terceiro modelo de democracia explicita justamente esse procedimento, ou seja, as condições de comunicação sob as quais o processo político supõe-se capaz de alcançar resultados racionais, justamente por cumprir-se, em todo seu alcance, de modo deliberativo.

Mas como institucionalizar as exigentes condições de comunicação do procedimento democrático? Como conciliar o agir estratégico referente ao princípio liberal dos direitos subjetivos e o agir orientado pelo entendimento referente ao princípio republicano dos direitos positivos de participação política?

A teoria do discurso institucionaliza o processo de exercício da autonomia pública (processo democrático de participação na formação da vontade política) através de direitos fundamentais e princípios do Estado de Direito. Assim, estes direitos subjetivos não são oponíveis à vontade soberana (como defende a visão liberal), mas condições para o seu exercício. De outro lado, a vontade soberana de determinada coletividade não está completamente alheia a direitos individuais subjetivos, visto que através deles ela é formada.

Nesse sentido afirma Habermas:

"A teoria do discurso não torna a efetivação de uma política deliberativa dependente de um conjunto de cidadãos coletivamente capazes de agir, mas sim da institucionalização dos procedimentos que lhe digam respeito [...] ela se despede de todas as figuras de pensamento que sugiram atribuir a práxis de autodeterminação dos cidadãos a um sujeito social totalizante, ou que sugiram referir o domínio anônimo das leis a sujeitos individuais concorrentes entre si"

Dessa forma, mediante a institucionalização das formas de comunicação, a teoria do discurso não faz o processo político de formação da vontade depender exclusivamente da conduta ética dos cidadãos, visto que a participação em tal processo se dá mediante o exercício de direitos subjetivos que regulam o processo; nem faz com que o processo democrático se restrinja a uma negociação de interesses ou luta por poder estatal, visto que propõe os direitos subjetivos serem exercidos para a formação da vontade política e não contra ela.

3.5. Estado Liberal, Estado Social e Democracia

A coesão interna entre direitos subjetivos e soberania popular, ou seja, entre os princípios do Estado de Direito e da Democracia das Constituições ocidentais modernas, foi suficientemente encoberta pela concorrência dos paradigmas jurídicos dominantes até hoje: o liberal e o social. A materialização (Estado Social) do direito formal burguês (Estado Liberal) não tematizou a autonomia política dos cidadãos e o debate travado entre Estado Liberal e Estado Social permaneceu dentro do campo restrito do direito privado e das liberdades subjetivas.

O paradigma jurídico liberal (Estado de Direito formal burguês) conta com uma sociedade de direito privado em que os indivíduos, como participantes do mercado, tentam encontrar sua felicidade através da busca possivelmente racional de interesses próprios. Assim, é garantido ao indivíduo um status jurídico negativo, que garante um esfera de proteção individual na qual se exerce livremente a vontade conforme interesse próprio. Tal projeto é realizado através do sistema dos direitos subjetivos ou das liberdades individuais.

A garantia de instauração de justiça social, de acordo com o paradigma liberal, se dá com o entrelaçamento da liberdade jurídica referida com o direito geral à igualdade. Assim, o direito irá conferir aos indivíduos iguais liberdades de ação subjetiva. A igualdade é garantida através da fórmula de leis gerais públicas.

No entanto a suposição do liberalismo se mostrou falsa, visto que considerou apenas o homem abstrato, estabelecendo uma igualdade pela razão, e esqueceu o homem concreto, na base material da sociedade. Dessa maneira, com a crescente desigualdade das posições de poder econômico, patrimônio e condições sociais, desestabilizaram-se sempre mais os pressupostos factuais capazes de proporcionar que o uso das competências jurídicas distribuídas por igual ocorresse sob uma efetiva igualdade de chances. Nesse sentido, podemos afirmar:

"como a igualdade a que se arrima o liberalismo é apenas formal, e encobre, na realidade, sob o seu manto de abstração, um mundo de desigualdades de fato – econômicas, sociais, políticas e pessoais – termina a apregoada liberdade do liberalismo, como Bismark já o notara, numa liberdade de oprimir os fracos, restando a estes, afinal de contas, tão somente a liberdade de morrer de fome" .

Dentro desse contexto social, portanto, o status negativo de sujeitos de direito não podia ser garantido apenas através do direito geral a liberdades subjetivas iguais. Era necessário a introdução de uma nova categoria de direitos fundamentais, consistentes em prestações positivas do Estado, capazes de corrigir ou compensar as injustiças sociais produzidas pelo mercado, ou seja, capaz de efetuar uma distribuição mais justa da riqueza produzida socialmente.

Mas o Estado Social também apresentou suas limitações. Habermas expõe que um dos aspectos da crise do estado Social residia na insensibilidade das burocracias estatais emergentes com relação a limitações impostas à autodeterminação de seus clientes – uma fraqueza do paradigma do Estado Social simétrica à cegueira social do direito formal burguês. A materialização do direito também caracterizou-se negativamente por ter ocasionado um paternalismo estatal.

Na verdade, no entanto, não houve nenhuma mudança no pensamento acerca da autonomia privada, o qual se expressa através do direito natural a um máximo de liberdades de ação subjetivas iguais para todos. A função dos direitos sociais de promover a igualdade de fato deve ser encarada como a eliminação dos privilégios incompatíveis com a distribuição igual de liberdade subjetivas, exigida pelo princípio da liberdade jurídica e não como restrições normativas a esse princípio. Nesse sentido Habermas explica que:

"o que parece ser uma limitação constitui apenas a outra face da implantação de liberdade de ação subjetivas iguais para todos; pois a autonomia privada, no sentido desse direito universal à liberdade, implica um direito universal à igualdade, ou seja, mais precisamente, o direito ao tratamento igual conforme as normas que garantem a igualdade do conteúdo do direito" .

Tanto é assim que esses dois paradigmas do direito estão igualmente comprometidos com a imagem produtivista de uma sociedade econômica capitalista e industrial, cujo funcionamento, segundo uma das intepretações, preenche a expectativa de justiça social através da defesa autônoma e privada de interesses próprios; segundo a outra, isso acarreta a destruição da expectativa de justiça social.

Dessa forma, ambas concordam na defesa da autonomia privada (status negativo protegido pelo direito). Divergem apenas quanto a se poder garantir a autonomia privada diretamente mediante direitos de liberdade, ou a se dever assegurar o surgimento da autonomia privada mediante a garantia de prestações sociais.

Essa disputa, como se vê, restringe-se a um normativismo da própria autonomia privada, ou seja, limita-se à determinação dos pressupostos fáticos para o status de pessoas de direitos em seu papel de destinatários, nada se referindo ao papel de autor da ordem jurídica. Assim, não resta tematizada a coesão interna entre a autonomia pública e privada.

A disputa entre os paradigmas liberal e social, portanto, não contribuem satisfatoriamente para a formulação de uma proposta democrática, pois a relação correta entre igualdade de fato e de direito não pode ser determinada tendo em vista direitos subjetivos privados, o que implica o esquecimento da esfera da autonomia pública. Dentro da concepção democrática habermasiana de co-originariedade entre autonomia pública e privada, essa relação entre igualdade de fato e de direito só pode ser determinada, em última instância, pelos cidadãos.

Sobre o autor
Igor Costa de Miranda

Graduação em Direito pela Universidade Federal do Ceará (2003). Pós-graduação em Direito Público pela Universidade de Brasília (2014). Procurador Federal desde 2004, atualmente com exercício na Procuradoria Seccional Federal em Sobral/CE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIRANDA, Igor Costa. Democracia à luz do princípio do discurso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 216, 7 fev. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4794. Acesso em: 22 nov. 2024.

Mais informações

Trabalho apresentado originalmente como monografia conclusiva do curso de Direito na Universidade Federal do Ceará.

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