CONCLUSÃO
A democracia, como regime de efetivação da liberdade, não pôde ser adequadamente compreendida sob os paradigmas filosófico-políticos apresentados pela Antigüidade e pela Modernidade. Nesses dois momentos ora se deu prevalência à dimensão social, coletiva do ser humano, fazendo do indivíduo um servo da coletividade, ora à dimensão individual, colocando a coletividade a serviço do indivíduo.
Tais compreensões, como visto, foram influenciadas pelas perspectivas da metafísica ontológica clássica na Antigüidade (que proclamou a supremacia do todo eterno e imutável, a partir do qual as particularidades são compreendidas) e da filosofia da consciência em geral na Modernidade (que defendeu o indivíduo como centro da compreensão do mundo). Assim, temos como a priori do saber e agir humanos respectivamente uma ordem externa imutável e eterna e uma subjetividade universal. Conseqüentemente a liberdade democrática foi entendida como participação na coletividade (pólis) na Antigüidade e como garantia de autodeterminação individual na Modernidade.
No entanto, a ênfase na defesa da coletividade e a fundamentação metafísica são falhas por deixarem espaço para fundamentar regimes totalitários e autoritários. Por outro lado, a defesa da autonomia individual na Modernidade gerou uma tensão até então não estabilizada, qual seja, a que ocorre entre autonomia pública e privada, ou seja, entre o papel de criador do direito e de destinatário. Como foram compreendidas até agora de forma absoluta, a prevalência de uma dessas autonomias acaba por fazer perecer a outra. Nesse ponto se destaca que o debate entre os paradigmas liberal e social do Estado não enfrenta tal discussão, pois não sai do âmbito do direito privado, sendo portanto apenas formas distintas de se enxergar a autonomia privada.
Ora, tais formulações foram fundadas a partir das premissas de uma razão prática que estabelecia um modelo imediato para ação, ou seja, que apresentava uma normatividade imediata. Divergindo do caminho de um ceticismo normativista, a solução encontrada por Habermas foi a superação da razão prática pela comunicativa ou intersubjetiva, formulada a partir da guinada lingüístico-pragmática do século XX, que coloca a linguagem como a priori do conhecimento e agir humanos.
Com efeito, na razão comunicativa, em que a linguagem é fonte de integração social, nem o indivíduo nem a coletividade tem prevalência sobre o outro, visto que por intermédio da linguagem o que se enfatiza é justamente a intersubjetividade, que passa a ser o fundamento da concepção democrática.
A razão comunicativa possibilitou o estabelecimento de uma relação de co-originariedade entre Direito e Moral (saindo portanto da dicotomia entre Direito Positivo e Natural), o que se deu mediante a elaboração do princípio do discurso. Este, diferentemente de um princípio moral, não estabelece um modelo direto para ação, mas preceitua o modo (procedimento) de exercício da autonomia política (pública) dos cidadãos através da explicitação das condições formais (por meio do código de direitos subjetivos) para a sua institucionalização.
Assim essa razão procedimental explicitou a estrutura intersubjetiva dos direitos e estrutura comunicativa da autolegislação, permitindo concatenar ações orientadas por interesses particulares, dentro de um campo de livre exercício da vontade garantido por direitos subjetivos, e ações orientadas pelo entendimento, voltadas para o estabelecimento de um acordo mútuo, dentro da esfera da participação na formação da vontade política.
O princípio democrático, nesse contexto, é entendido como a juridificação do princípio do discurso, o que significa que cabe ao direito, através do processo democrático, garantir o uso público das liberdades comunicativas (liberdade de tomar posição em relação a pretensões de validade criticáveis, entre elas a pretensão de validade jurídica), fato que implica a participação mais ampla possível em todos os processos de deliberação e decisão relevantes para a legislação para que a validade do direito seja definida pela força do melhor argumento.
Justamente por não haver mais esfera moral para validar o direito é que soberania do povo (autonomia pública) e direitos humanos (autonomia privada) se pressupõem mutuamente, através do processo democrático e discursivo de autolegislação, que portanto carrega o fardo da legitimação.
Dessa forma, só com a juridificação da liberdade comunicativa, isto é, da formação discursiva da opinião e da vontade, é que podemos efetivar, de forma legítima, o Direito e a democracia.
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