Há alguns anos, na Comarca de Diadema, tivemos a oportunidade de julgar um caso, que pela suas características e raridade merece ser divulgado para que estudantes e mesmos profissionais do direto tenham conhecimento do tema, mesmo porque com a futura duplicação da rodovia dos Imigrantes o assunto certamente voltará a ser discutido. Evidentemente o feito foi decidido e transitou em julgado, inclusive chegou ao Superior Tribunal de Justiça, quando então os Ministros disseram que nunca haviam visto caso semelhante (Rec. Especial nº 111.988-0/SP. Rel. Ministro Américo Luz, Brasília 24.06.92).
Trata-se de saber se bens Municipais de uso comum do povo, caracterizados por ruas, praças, vielas etc., são indenizáveis ou não, ao sofrerem apossamento adminstrativo para a construção de estrada de rodagem, por parte do Estado.
A desapropriação de um bem ocorre quando o Poder Público, ou quem autorizado por lei, ou contrato com o governo, sob o fundamento de necessidade ou utilidade pública, ou interesse social, força o titular da propriedade imóvel a lhe transferir definitivamente, mediante prévia e justa indenização em dinheiro (Pedro Nunes, Dicionário de Tecnologia Jurídica, Freitas Bastos, 8ª edição).
O apossamento administrativo, por sua vez, ocorre quando o Poder Público, inexistindo acordo ou processo judicial adequado, se apossa do bem particular, sem consentimento de seu proprietário, obrigando-o a ir a juízo para reclamar a indenização (J.C. de Moraes Salles, A Desapropriação à luz da Doutrina e da Jurisprudência, Ed. Revista do Tribunais, 1980, pg.737).
Nos dois casos o proprietário tem direito a receber indenização pela perda da área atingida.
Normalmente os entes públicos como União, Estado e Municípios ou seus respectivos concessionários promovem a desapropriação ou o apossamento de bens particulares para a execução de obras. Mas se os bens atingidos por apossamento adminstrativo forem praças, ruas, vielas etc, ou seja bens públicos, haverá direito a indenização?
Aí a questão torna-se incomum e interessante do ponto de vista jurídico, pois desconhecem-se precedentes em nosso direito, e quiça na jurisprudência estrangeira.
Veremos.
Levando-se em consideração os respectivos proprietários, os bens se dividem em públicos e particulares. Estes são todos os que não pertencem ao domínio da União, Estado e Município (art.65, Código Civil).
Os bens públicos são os classificados no art.66 do Código Civil, em:
I - Os de uso comum do povo- são as coisas públicas, isto é, são utilizáveis por todos como por exemplo: ruas, praças, pontes, estradas, bancos de jardim etc;
II- Os de uso especial- são os destinados aos fins administrativos como edifícios e terrenos utilizáveis pelos estabelecimentos federal, estadual ou municipal;
III - Os dominiais - constituem o patrimônio do poder Público, como as estradas de ferro.
No caso em estudo interessa-nos os bens de uso comum do povo (art.66,I, Código Civil).
São eles de propriedade dos respectivos entes públicos, ou são do povo que tem seu uso? São indenizáveis?
Remontando-se à idéia democrática que presidia a república romana, o uso público é uma manifestação direta do povo soberano, surgindo a tese da não propriedade dos bens públicos; tese mais tarde desenvolvida por Proudhon em sua obra "Traté du domaine public"e Laferviérre em sua obra clássica "Cours Theorique et Pratique du Droit Public et Adminstratif" de 1854, que prevaleceu até o fim do século passado, e que já não tem acolhida neste século, apesar de Ihering e Clóvis Bevilacqua a esposarem.
Interessante observar que baseados em entendimento da época, os Ministros Eduardo Espindola e Carlos Maximiliano, em votos acolhidos em 1940 pelo E. Supremo Tribunal Federal, assinalaram: o primeiro " Pagar porque ? Onde se viu desapropriar uma rua ? Cumpra-se, desapropriam-se as coisas que estão no comércio; uma rua não, esta é inalienável." ; e o segundo " Realmente, os bens que o Estado vende, compra ou desapropria, são os bens privados dos Municípios, os dominicais, mencionados pelo art.66, III, do Código Civil, não as ruas e praças, bens de uso comum do povo, os quais o Município apenas administra, não é proprietário....." . (citados no voto na manifestação do Ministério Público Federal no referido recurso especial).
Isto mostra como em nosso Direito entendia-se que não poderia haver valor econômico a ser indenizado no caso de bens públicos como os em questão.
Porém, modernamente entende-se que o Estado necessita ter o direito de propriedade para poder administrar, zonear, retraçar as cidades, vender suas ruas, praças e estradas, quando elas não mais interessarem aos seus planos urbanísticos, conforme esclarece Eduardo Viana Motta, (Bens de uso do povo. Natureza jurídica da relação entre eles e a pessoa de direito público- Modos de aquisição, RT 332/49; 333/54; 334/54; 335/67; 366/39; 337/44 e 338/43).
Ademais, o Município, por aquisição derivada decorrente de reciprocidade pela aprovação de loteamento, acaba recebendo como proprietário ruas, praças e vielas, de modo que passa a ter o domínio sobre estes bens.
Além disso, quando o Código Civil usa em seu art.65 o verbo pertencer quer exprimir a idéia de propriedade, o que leva a concluir que o nosso direito, à semelhança dos povos da atualidade, adota a relação de propriedade relativamente aos bens de uso comum.
Portanto, os bens de uso público não são áreas de ninguém, ou res nullius; ao contrário podem ser de propriedade da União, Estado ou Município, e muito menos são de propriedade do povo.
Neste sentido, podemos lembrar a opinião de Alfredo Buzaid: "A circunstância de um bem ser de uso comum , tal como a rua ou a praça, não significa que pertença ao povo; seu proprietário é a pessoa jurídica de direito público interno, que o entrega ao uso do povo, sem lhe transferir o domínio. O povo não é titular do bem público de uso comum; é sim, o beneficiário. (Parecer, in Revista de Direito Administrativo, vol.84/323-4, citado no referido V.Acórdão do STJ).
Dessa forma, em havendo apossamento administrativo com a perda da propriedade, o proprietário, não importando qual seja, deve ser indenizado, sob pena de enriquecimento ilícito, pois o apossamento de um bem sempre importa em aumento de patrimônio de quem o recebe em detrimento de quem o perde.
Ademais, o art.2º do Dec.lei 3.365/41 não exclui nenhum bem da possibilidade de desapropriação e o art.5º, XXIV da Constituição Federal não limita também os bens que podem ser desapropriados.
Ante o exposto, é lícito concluir que os bens de uso comum do povo, previstos no art.66, I, do Código Civil, são bens de propriedade dos entes públicos que os administra e têm seu domínio, sendo o povo apenas beneficiário; podem ser desapropriados pela entidade administrativa superior, mediante pagamento de indenização. No caso de apossamento administrativo também caberá indenização, evitando-se, assim, além da ilegalidade jurídica, o enriquecimento ilícito daquele que deles se apossam.