O procedimento para apuração de ato infracional atribuído a adolescente, previsto nos arts. 171 a 190, da Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), possui inúmeras peculiaridades que, por vezes, acabam sendo esquecidas ou negligenciadas pelos operadores do Direito, que tendem a analisar a matéria sob a ótica (e “lógica”) penal/ processual penal, não raro esquecendo que as “normas de referência” a serem consideradas são próprias de Direito da Criança e do Adolescente, sendo assim, portanto, de natureza declarada e destacadamente “extrapenal”.
Um dos reflexos de tal constatação fica patente quando da análise das hipóteses e circunstâncias em que se dá a chamada “perda da pretensão socioeducativa”, que não se confunde - e vai muito além - da “perda da pretensão punitiva” verificada em matéria penal.
Em que pese sua relevância, a verdade é que o tema, sobretudo após o advento da Súmula nº 338, do Superior Tribunal de Justiça (segundo a qual “a prescrição penal é aplicável nas medidas sócio-educativas” - sic.)[1], foi relegado ao segundo plano, pois o reconhecimento da incidência da prescrição penal em “matéria infracional” passou a ocorrer de forma “automática” e quase que incontroversa, sem uma análise crítica dos efeitos potencialmente deletérios daí decorrentes.
O objetivo do presente estudo, logicamente, não é sustentar a “não incidência” da prescrição em matéria infracional, mas sim a necessidade de que o instituto seja analisado à luz das normas e princípios de Direito da Criança e do Adolescente (e não apenas de Direito Penal), assim como apontar para possibilidade do reconhecimento da “perda da pretensão socioeducativa” de uma forma mais abrangente, antes mesmo do advento do lapso prescricional.
Neste sentido, uma questão preliminar a considerar é que a “prescrição” em matéria infracional não pode ser tratada como decorrência da simples “aplicação analógica” de um instituto de Direito Penal (ou, como sustentam alguns, de “Direito Penal Juvenil”)[2], mas sim como consequência natural da aplicação de um princípio de Direito da Criança e do Adolescente, segundo o qual o adolescente não pode receber um tratamento mais rigoroso do que receberia se adulto fosse, o que é previsto tanto no art. 35, inciso I, da Lei nº 12.594/2012 (a Lei do SINASE), quanto no art. 54, das “Diretrizes das Nações Unidas para Prevenção da Delinquência Juvenil - Diretrizes de Riad”.
Ademais, não podemos perder de vista que a “prescrição” não é um instituto exclusivo de Direito Penal, pois também está presente em outros ramos do Direito, não causando estranheza alguma sua aplicação também no âmbito do Direito da Criança e do Adolescente.
Nada mais natural, portanto, que o reconhecimento da incidência da “prescrição” da ação socioeducativa e/ou das “medidas” que nesta foram ou poderiam ser aplicadas[3], sendo o fato de a prescrição penal ter sido usada como parâmetro apenas uma forma de estabelecer um “limite temporal máximo” para possibilidade da intervenção socioeducativa estatal.
Ocorre que, se de um lado, a prescrição estabelece um “prazo máximo” para que o adolescente acusado da prática de ato infracional possa ser processado e/ou vinculado a medidas socioeducativas, por outro é preciso ter a cautela de não considerar “obrigatória” a instauração do procedimento para apuração de ato infracional e/ou para aplicação/execução dessa modalidade de sanção estatal enquanto aquela não se aperfeiçoar (como ocorre em matéria penal).
Na verdade, se o objetivo da prescrição é evitar que o indivíduo permaneça indefinidamente sujeito à aplicação de uma sanção estatal, funcionando assim como uma espécie de “salvaguarda” contra a inércia do Estado (lato sensu) em dar a devida “resposta” diante da transgressão de alguma norma jurídica, em matéria de infância e juventude isto assume uma relevância muito maior.
Com efeito, a aplicação e execução de medidas socioeducativas, assim como a própria incidência do Estatuto da Criança e do Adolescente, estão sujeitas a uma limitação temporal, decorrente, inclusive, da necessidade de o Estado (lato sensu) agir com rapidez em tais casos, sob pena da perda do “caráter pedagógico” que lhes é inerente.
Vale lembrar que, além de estar necessariamente subordinado ao “princípio da prioridade absoluta à criança e ao adolescente”[4], não podemos perder de vista que o procedimento para apuração de ato infracional deve também respeitar de forma incondicional os princípios relacionados no art. 100, caput e par. único, da Lei nº 8.069/90[5], o que inclui o “princípio da intervenção precoce”, segundo o qual “a intervenção das autoridades competentes deve ser efetuada logo que a situação de perigo seja conhecida”, assim como o “princípio da atualidade”, que preconiza a necessidade de que a intervenção seja “...a necessária e adequada à situação de perigo em que a criança ou o adolescente se encontram no momento em que a decisão é tomada”.
A observância de tais princípios, aos quais se soma o “princípio da proteção integral e prioritária”, que é expresso ao determinar que “a interpretação e aplicação de toda e qualquer norma contida nesta Lei deve ser voltada à proteção integral e prioritária dos direitos de que crianças e adolescentes são titulares”, evidencia a necessidade de que a intervenção estatal diante da prática de um ato infracional por adolescente seja rápida e precisa, sob pena de perder por completo sua própria razão de ser.
Desnecessário dizer que o “tempo” do adolescente é diferente do “tempo” dos adultos, e se a intervenção socioeducativa estatal possui (ou ao menos deveria possuir) uma conotação preponderantemente “pedagógica”, é deveras evidente que a demora na “resposta” estatal diante da prática de um ato infracional faz com que esta assuma um caráter meramente “punitivo”, que lhe desvirtua por completo sua essência, natureza jurídica e finalidade[6].
Isto tem especial relevância em se tratando da medida de internação, que por vezes acaba sendo aplicada muito tempo após a prática infracional, como se tratasse de uma verdadeira “pena” que, como tal empregada, tem o potencial de trazer enormes prejuízos à própria vida do adolescente, que em muitos casos, em razão de um ato infracional praticado anos antes, quando se encontrava numa condição de vida completamente diversa da atual, acaba sendo “arrebatado” do convívio familiar e social de forma absoluta despropositada, surtindo a intervenção estatal um efeito diametralmente contrário ao almejado (ao menos à luz das normas e princípios de Direito da Criança e do Adolescente).
É por estas e outras razões, aliás, que a Lei nº 12.594/2012 instituiu um prazo máximo para validade de eventual mandado de busca e apreensão expedido em desfavor de adolescente acusado da prática de ato infracional de apenas 06 (seis) meses (art. 47, do citado Diploma Legal). Após decorrido este prazo, o cabimento ou não da renovação do mandado deverá ser objeto de análise criteriosa por parte da autoridade judiciária que, se entender que deve insistir no ato, deverá fazê-lo “fundamentadamente”.
Esse “prazo de validade” para o mandado de busca e apreensão expedido em desfavor de acusado da prática de ato infracional constitui-se num claro indicativo do grau de “urgência” que deve nortear a intervenção socioeducativa, diante da constatação de que, por estar em “processo de desenvolvimento” tanto físico, quanto mental, emocional e intelectual, o adolescente invariavelmente apresenta uma rápida transformação em sua situação psicossocial, assim como de suas necessidades pedagógicas específicas que, como visto acima, na forma da lei constituem-se no principal parâmetro a ser utilizado quando da aplicação/ execução/modificação das medidas socioeducativas (assim como também daquelas de cunho meramente “protetivo”).
Vale aqui repetir que, por não estarmos lidando com “penas”, não é a “intensidade” (diga-se rigor) da resposta socioeducativa que importa, mas sim sua aplicação de forma célere e qualificada/eficaz, de modo que, se for o caso, o adolescente seja o quanto antes encaminhado ao atendimento/tratamento socioeducativo e/ou protetivo idôneo e individualizado, que se mostre necessário face sua peculiar condição e necessidades pedagógicas específicas (arts. 1º e 6º e art. 113 c/c art. 100, caput primeira parte e par. único, incisos VI e VIII, todos da Lei nº 8.069/90).
Felizmente, alguns Tribunais já atentaram para isto, assim como para necessidade de destinar aos adolescentes acusados da prática de ato infracional um tratamento diferenciado em relação ao que ocorre com adultos, notadamente no que diz respeito à aplicação de medidas privativas de liberdade.
Neste sentido, oportuno colacionar alguns arestos do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná:
Apelação. Estatuto da Criança e do Adolescente. Ato infracional correspondente ao crime de atentado violento ao pudor imputado a adolescentes de 15 anos de idade à época dos fatos. Prolação da sentença e aplicação da medida socioeducativa de internação, cinco anos mais tarde. Prescrição. Inocorrência. Decurso de prazo inferior àquele necessário, contado da causa interruptiva do recebimento da representação. Adolescente apelante que neste período de tempo se ressocializou, constituindo família e exercendo trabalho, além de não contar com nenhum outro registro de infração. Finalidade da medida socioeducativa alcançada independentemente da atuação do Estado. Necessidade e adequação inexistentes à época da prolação da sentença. Recurso provido para o fim de afastar a medida socioeducativa extrema, sem a aplicação de outra, tendo em vista que em breve o apelante atingirá a idade de 21 anos. Habeas corpus. Concessão de ofício em favor do correpresentado com afastamento da medida de internação.
(TJPR. 2ª C. Crim. Apelação nº 555.772-6. Relª. Juíza Convocada Lílian Romero. J. em 30/04/2009);
RECURSO DE APELAÇÃO DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ATO INFRACIONAL EQUIPARADO A PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DE USO RESTRITO. (ART. 16, DA LEI 10.826/2003). NEGATIVA DA AUTORIA POR PARTE DO ADOLESCENTE INFRATOR. INSUBSISTÊNCIA. PALAVRA DOS POLICIAIS ALIADA AO HISTÓRICO SOCIAL DO MENOR QUE INDICAM A PROCEDÊNCIA DA REPRESENTAÇÃO. REFORMA DA MEDIDA SOCIOEDUCATIVA APLICADA. INEXISTÊNCIA DE FUNDAMENTO LEGAL PARA A INTERNAÇÃO. LAPSO TEMPORAL ENTRE O FATO E A APLICAÇÃO DA MEDIDA QUE TORNA INÓCUA A INTERNAÇÃO. APLICAÇÃO DE LIBERDADE ASSISTIDA, PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE, MATRÍCULA E FREQUÊNCIA OBRIGATÓRIAS EM ESTABELECIMENTO OFICIAL DE ENSINO E INCLUSÃO EM PROGRAMA COMUNITÁRIO OU OFICIAL DE AUXÍLIO À FAMÍLIA E AO ADOLESCENTE. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.
1. A negativa de autoria por parte do adolescente resta isolada em meio ao conjunto probatório sólido a imputar-lhe a autoria do ato infracional.
2. É imprópria a medida de internação quando não amparada em algum dos incisos do art. 122 do ECA.
3. A internação, decretada há um ano e três meses depois do cometimento da infração, se reveste mais de caráter repressivo do que pedagógico-preventivo, que é a ênfase da medida a ser aplicada na área da infância e juventude. Demais, como não há informações sobre a situação do apelante nesse lapso de tempo, é de se presumir que não houve piora de sua condição pessoal.
4. Como o adolescente infrator demonstra vontade em "dar um novo rumo para a sua vida", a liberdade assistida constitui a medida mais eficaz para auxiliá-lo em sua reinserção social, porque a medida conta com uma equipe estruturada para trabalhar com o jovem, orientando-o acerca de valores éticos e qualificando-o profissionalmente para uma vida digna.
5. Como o jovem possuía um bom relacionamento com os educadores, a equipe técnica e os demais adolescentes, e demonstrou adesão às atividades escolares e esportivas propostas no CENSE enquanto lá esteve internado, a medida de prestação de serviços à comunidade também se anuncia bastante eficaz.
6. A realidade social da família do apelante - em situação de extrema vulnerabilidade e exclusão social, visto que a genitora é recicladora ambiental, não possui renda estável, e não está inserida em programas sociais, nem possui condições de sustentabilidade - atesta a necessidade de o jovem e sua mãe serem incluídos em um programa comunitário de auxílio à família, à criança e ao adolescente (art. 101, IV do ECA).
7. Há que se incluir a medida socioprotetiva de matrícula e determinação de frequência obrigatória em estabelecimento oficial de ensino (art. 101, III do ECA) sempre que o adolescente não tiver cumprido todas as etapas do ensino fundamental e estiver fora dos bancos escolares.
(TJPR. 2ª C. Crim. Ap.ECA nº 0605290-6. Rel. Noeval de Quadros. J. em 08/10/2009);
RECURSO DE APELAÇÃO ECA. ATO INFRACIONAL EQUIPARADO A ROUBO MAJORADO PELO EMPREGO DE ARMA DE FOGO E CONCURSO DE PESSOAS (ART. 157, § 2º, INCISOS I E II DO CÓDIGO PENAL). PLEITO ÚNICO DE SUBSTITUIÇÃO DA MEDIDA DE INTERNAÇÃO PELA DE LIBERDADE ASSISTIDA. SUBSTITUIÇÃO JÁ OPERADA PELO JUÍZO SINGULAR. PERDA DO CARÁTER PEDAGÓGICO DA MEDIDA DIANTE O DECURSO DE TEMPO. - PERDA DO OBJETO. RECURSO PREJUDICADO.
I. Resta prejudicado o pleito do Apelante C. W. R., no tocante à substituição da medida socioeducativa, em razão da progressão para a liberdade assistida já operada pelo Juízo Singular.
II. O grande distanciamento de tempo entre a prática infracional e a aplicação da medida socioeducativa implica na perda do seu caráter pedagógico, desvirtuando sua natureza jurídica e assumindo conotação de pena. (...)
V. Por fim, insta consignar que a Dra. Juíza a quo recebeu o recurso de apelação também no efeito suspensivo, a fim de que o adolescente aguardasse o seu julgamento em liberdade e, consequentemente, revogando o imediato cumprimento da determinação da aplicação da medida socioeducativa de internação, porém, este entendimento, conforme a jurisprudência atual, contraria os princípios da prioridade absoluta e da celeridade.
VI. O retardamento na aplicação da medida socioeducativa desvirtua a própria intervenção estatal, posto que o distanciamento temporal entre o ato infracional e a aplicação da medida, contraria a natureza jurídica e a finalidade do sistema diferenciado instituído pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, revestindo a medida socioeducativa em simples "pena", mas sem guardar correspondência com o objetivo de reabilitação social do adolescente.
(TJPR - 2ª C. Crim. RA-ECA nº 887323-6. Rel. Lidio José Rotoli de Macedo. J. em 10/05/2012).
Embora os julgados acima transcritos já se constituam num avanço em relação à concepção “menorista” que ainda permeia a matéria (notadamente quanto ao uso da internação como “pena”), a própria “necessidade” da aplicação/execução de qualquer medida socioeducativa deve ser avaliada com cautela, haja vista que, mesmo se comprovada a prática do ato infracional pelo adolescente, não há, a rigor, “obrigatoriedade” alguma na imposição de medidas socioeducativas, podendo haver, até por ocasião da sentença, a concessão da chamada remissão socioeducativa[7], em sua forma de “perdão puro e simples” (arts. 126 c/c 188, da Lei nº 8.069/90).
Neste sentido, aliás, também já há precedentes jurisprudenciais:
RECURSO DE APELAÇÃO. ECA. REPRESENTAÇÃO JULGADA PROCEDENTE. ATO INFRACIONAL EQUIPARADO AO CRIME PREVISTO NO ART. 155 DO CÓDIGO PENAL. AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS E INCONTESTES. MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAÇÃO. EXTINÇÃO PELA PERDA DO CARÁTER PEDAGÓGICO. RECURSO PREJUDICADO.
Se o adolescente comete um ato infracional, é evidente que necessita da intervenção do Estado para desenvolver um projeto de vida responsável e abandonar a ilicitude; contudo, havendo considerável espaço de tempo, desde a prática do ato infracional, a aplicação de medida socioeducativa resta prejudicada, justamente porque não atendeu aos princípios da brevidade e excepcionalidade, que norteiam o Estatuto da Criança e do Adolescente.
(TJPR. 2ª C. Crim. RA-ECA nº 1236441-9. Rel. Des. José Mauricio Pinto de Almeida. J. em 30/10/2014).
No julgado acima transcrito, mesmo sem se falar em “prescrição”, houve o reconhecimento explícito de que o prolongado decurso do tempo fez desaparecer o “caráter pedagógico” de qualquer medida socioeducativa que pudesse ser aplicada e/ou executada na espécie, que assim foi declarada extinta, em razão de sua falta de utilidade/necessidade aos fins a que se propunha.
Paralelamente, houve o reconhecimento implícito de que, mesmo se comprovada autoria e materialidade da infração, não há, a rigor, “obrigatoriedade” alguma na imposição de medidas socioeducativas ao adolescente infrator (muito menos privativas de liberdade), o que somente se justifica quando estas se mostram necessárias, no caso em concreto.
E este é também um aspecto a ser considerado: como em matéria de infância e juventude não vigora o “princípio da obrigatoriedade”, e a “dinâmica” do procedimento para apuração de ato infracional (revigorada pelo advento da Lei nº 12.594/2012[8]) claramente aponta no sentido da preferência à concessão de remissão, inclusive como forma de abreviar ao máximo o tempo decorrido entre a prática do ato infracional e o momento da “resposta” socioeducativa, não há problema algum em reconhecer a falta de utilidade ou propósito na instauração de procedimentos e/ou na aplicação/execução de “medidas” após decorrido um prolongado período de tempo desde a ocorrência do evento infracional, mesmo sem ter sido atingido o lapso prescricional “penal”.
Assim sendo, em se tratando de procedimento para apuração de ato infracional, a chamada “perda da pretensão socioeducativa” não se confunde com o puro e simples advento da “prescrição penal” (embora também a compreenda), pois é perfeitamente possível (e isto será a regra) que, antes mesmo do atingimento do prazo prescricional, se constate a absoluta desnecessidade da aplicação e/ou execução de medidas socioeducativas de qualquer espécie.
Nesse contexto, o lapso prescricional (assim considerado, por força, inclusive, da citada Súmula nº 338, do STJ), deve ser considerado apenas como o período máximo no qual o Estado (lato sensu) tem a possibilidade jurídica de aplicar/executar medidas socioeducativas diante da prática de ato infracional por adolescente, mas é perfeitamente possível que a “perda da pretensão socioeducativa” seja reconhecida muito antes desse marco temporal.
Deve-se evitar, portanto, aquela “praxis” já utilizada em matéria penal/processual penal de manter o procedimento “aberto” enquanto não atingido o “prazo prescricional”, sendo preferível utilizar a sistemática decorrente do disposto no art. 47, da Lei nº 12.594/2012, de modo que, no máximo a cada 06 (seis) meses, seja avaliada a real necessidade/utilidade no prosseguimento do feito que, a depender da gravidade da infração, circunstâncias em que foi praticada, registro de antecedentes, idade do adolescente e outros fatores que devem ser considerados em tais casos[9], poderá ser extinto através da concessão de remissão (judicial ou mesmo ministerial) em sua forma de “perdão puro e simples” ou mesmo pela via do arquivamento, sob o fundamento da “perda do objeto (ou pretensão) socioeducativo”.
Em qualquer hipótese, após decorrido um lapso temporal prolongado desde a prática do ato infracional atribuído ao adolescente, a análise da necessidade ou não da instauração do procedimento para sua apuração, assim como da aplicação/execução de medidas socioeducativas, deve ser efetuada caso a caso, consideradas as peculiaridades de cada adolescente, e não como resultado de uma simples “operação matemática” decorrente do advento da prescrição penal.
Da mesma forma, mesmo não mais sendo razoável, em razão do decurso do tempo, a aplicação/execução de qualquer medida socioeducativa, nada impede que o adolescente (assim como seus pais/responsável[10]) continue(m) recebendo as intervenções de cunho “protetivo” que porventura necessitarem, mas isto deverá ocorrer por iniciativa da própria “rede de proteção” à criança e ao adolescente local (eventualmente, a partir de determinações emanadas do Conselho Tutelar[11]), após a realização de avaliações técnicas capazes de identificar a situação atual e as “necessidades pedagógicas” específicas de cada um[12].
Desnecessário mencionar, por fim, que em qualquer caso, por força do disposto no art. 2º, par. único, da Lei nº 8.069/90, a aplicação ou execução de qualquer medida socioeducativa (inclusive as privativas de liberdade, ex vi do disposto no art. 121, §5º, do mesmo Diploma Legal), logicamente não poderá se estender para além dos 21 (vinte e um) anos de idade, após o que, eventualmente, poderá o indivíduo que necessitar continuar a receber auxílio por parte do Poder Público, não mais com fundamento na Lei nº 8.069/90, mas sim nos termos da Lei nº 12.852/2013 (o chamado “Estatuto da Juventude”, aplicável a pessoas de até 29 anos de idade[13]).
Com base em tais parâmetros, restará consolidada a compreensão que o atendimento do adolescente ao qual se atribui a autoria de ato infracional por parte da Justiça da Infância e da Juventude não pode seguir os mesmos parâmetros traçados pela Lei Penal/ Processual Penar para persecução e/ou singela “punição” dos imputáveis autores de crimes, pois deve estar comprometida, acima de tudo, com sua “proteção integral”, prometida já pelo citado art. 1º estatutário e que, por força do disposto nos arts. 6º e 100, par. único, inciso II, do mesmo Diploma Legal, serve de “norte interpretativo” de toda e qualquer disposição estatutária, inclusive aquelas relativas ao ato infracional e à aplicação das medidas socioeducativas.
Referências:
BRASIL, Constituição da República de 1988;
BRASIL, Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente);
BRASIL, Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012 (Lei do SINASE);
BRASIL, Lei nº 12.852, de 05 de agosto de 2013 (Estatuto da Juventude);
ONU - Organização das Nações Unidas, Declaração dos Direitos da Criança. Nova Iorque, EUA, de 20 de novembro de 1959;
ONU - Organização das Nações Unidas, Convenção dos Direitos da Criança. Nova Iorque, EUA, de 20 de novembro de 1989;
ONU - Organização das Nações Unidas, Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude - Regras de Beijing. Nova Iorque, EUA, de 29 de novembro de 1985;
ONU - Organização das Nações Unidas, Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade. Nova Iorque, EUA, de 14 de dezembro de 1990.
CURY, Munir et al. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado - Comentários Jurídicos e Sociais. 6ª Edição, Malheiros. São Paulo, 2003.
[1] O termo atualmente empregado, inclusive pela Lei nº 12.594/2012, a chamada “Lei do SINASE”, é “socioeducativas” (sem o hífen que consta da redação original da Súmula).
[2] Corrente doutrinária com a qual o autor não comunga, inclusive (mas não apenas) em razão do contido no art. 228, da Constituição Federal, que claramente aponta para necessidade de que as normas, princípios e institutos destinados a regular a relação “Estado - adolescente acusado da prática de ato infracional” sejam considerados de natureza “extrapenal”.
[3] Vale dizer, as chamadas “medidas socioeducativas”, relacionadas no art. 112, da Lei nº 8.069/90, que são as sanções estatais passíveis de aplicação em decorrência da prática de ato infracional por um adolescente.
[4] Obrigação imposta ao Sistema de Justiça da Infância e da Juventude pelos arts. 4º, caput e par. único, alínea “b” e 152, par. único, da Lei nº 8.069/90.
[5] Sendo a obrigatoriedade da incidência de tais princípios decorrente do contido de maneira expressa no art. 113, da Lei nº 8.069/90.
[6] O procedimento para apuração de ato infracional foi concebido para tramitar de forma célere (esteja o adolescente apreendido ou já liberado), de modo que, entre a prática infracional e o momento do início do cumprimento da intervenção estatal recomendada (que pode não se dar, necessariamente, por intermédio da imposição de medidas socioeducativas), transcorra o menor período de tempo possível, em respeito, inclusive, ao “princípio da intervenção precoce”, insculpido no art. 100, par. único, inciso VI, da Lei nº 8.069/90.
[7] O instituto da remissão é contemplado pelos itens 10.2, 11.1 e 11.2, das “Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude - Regras de Beijing”, tendo por objetivo, justamente, evitar ou abreviar o processo.
[8] Notadamente em seu art. 35 incisos II, III e VII, que estabelecem os princípios da “excepcionalidade da intervenção judicial e da imposição de medidas...”, da “prioridade a práticas ou medidas que sejam restaurativas...” e da “mínima intervenção, restrita ao necessário para a realização dos objetivos da medida”.
[9] Notadamente aqueles relacionados nos arts. 112, §1º e 113 c/c 100, caput e par. único, da Lei nº 8.069/90.
[10] E o atendimento do adolescente, seja na esfera socioeducativa, seja meramente “protetiva”, nunca deve ser efetuado de forma “isolada”, mas sim precisa ser acompanhado de intervenções junto a seus pais/responsável, inclusive em razão do disposto no art. 100, par. único, inciso IX, da Lei nº 8.069/90 (segundo o qual toda e qualquer intervenção estatal em matéria de infância e juventude - inclusive em “matéria infracional”, deve ser efetuada de modo que “os pais assumam suas responsabilidades em relação a seus filhos”), assim como do disposto no art. 52, par. único, da Lei nº 12.594/2012 (segundo o qual os pais “...têm o dever de contribuir com o processo ressocializador do adolescente...”).
[11] Que por força do disposto no art. 136, incisos I, II e III, alínea “a”, da Lei nº 8.069/90 tem, inclusive, o poder de “requisitar” a intervenção dos órgãos públicos com atuação em diversas áreas corresponsáveis pelo atendimento de crianças/adolescentes/famílias.
[12] Cf. arts. 100, caput e par. único, inciso VIII, da Lei nº 8.069/90.
[13] Cf. art. 1º, §1º do citado Diploma Legal.