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O "venire contra factum proprium" na negativa de indenização de seguro de vida ante a morte do segurado em atraso permitido.

O abuso de direito e a exegese tópica do art. 763 do novo Código Civil

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Agenda 16/03/2004 às 00:00

Não são raros os casos em que o beneficiário de seguro de vida entra em juízo para exigir a indenização negada pela seguradora, tendo em vista a argüição de inexecução da avença.

"Semper in conjunctionibus non solum, quid liceat, considerandum est, sed et quid honestum sit" [1] MODESTINUS

SUMÁRIO: 1)

O Direito Civil Constitucional e a Boa-Fé Na Lei 10.046 – prolegômenos - 2) A boa-fé objetiva e suas funções precípuas - 3) A derrogação de posições contraditórias (vedação do abuso de direito) e o venire contra factum proprium na doutrina e jurisprudência - 4) A aplicabilidade da tese do venire contra factum proprium em caso de negativa de indenização ao beneficiário de seguro de vida ante a morte do segurado em meio a atraso consentido - 5) A interpretação do preceito 763 do NCCB conforme à Constituição sem redução do texto excludente - 6) Conclusão – 7) Bibliografia.

1) O Direito Civil Constitucional e a Boa-Fé Na Lei 10.046 – Prolegômenos

A nova ordem de enfoque dos direitos civis pela malha constitucional [2] é reflexo evidente da evolução dos valores sociais e da necessidade de, em prol destes, obtemperar-se a faceta privatística das leis ordinárias sob o prisma da Lei Fundamental. Justamente na esteira principiológica dos preceitos 1º III, 3º I e 5º da Carta Magna de 1988, mormente na dignidade da pessoa humana [3], nos lindes do novo diploma Civil, ainda que ideologicamente a primazia do formalismo jurídico deu lugar à eticidade, o caráter individualista cedeu espaço à socialidade e o cientificismo supérfluo foi sobrestado pela operabilidade. [4]- [5]

Encimada no vetor da eticidade, o instituto da boa-fé ganhou novo fôlego na doutrina hodierna, como base de freio e contrapeso para aferir-se a extensão e latitude da legitimidade e oponibilidade dos direitos subjetivos. Ao contrário do Código de CLOVIS, superando a teoria subjetiva francesa [6], o novel diploma civil brasileiro adotou claramente a teoria objetiva da boa-fé criando um padrão de subsunção alheio a psique das partes envolvidas.

Neste norte, asseveram GAGLIANO e PAMPLONA FILHO, que, "analisando o art. 187 do CC-02, conclui-se não ser imprescindível, pois, para o reconhecimento da teoria do abuso de direito, que o agente tenha a intenção de prejudicar terceiro, bastando, segundo a dicção legal, que exceda manifestamente os limites impostos pela finalidade econômica ou social, pela boa fé ou pelos bons costumes" [7], dispondo MARIA HELENA DINIZ ser "a boa-fé objetiva (...) alusiva a um padrão comportamental a ser seguido, baseado na lealdade, impedindo o exercício abusivo de direito por parte dos contratantes no cumprimento não só da obrigação principal, mas também das acessórias, inclusive do dever de informar, de colaborar e de atuação diligente." [8]

Girando o tema no campo específico dos contratos, RUI STOCO, em percuciente observação, pontua que "o novo Código Civil, recentemente aprovado e promulgado pelo Presidente da República (Lei 10.046 de 10.01.2002), ao contrário daquele de 1916 (...) dispõe no art. 42 que "os contraentes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé". Numa primeira visada e através de exegese ainda perfunctória, Paulo KHOURI (2001, p. 4) lembra que o novo Código não está se referindo à chamada boa-fé subjetiva, mas à boa-fé objetiva, já consagrada como princípio também no Código de Defesa do Consumidor (...)" [9]

Como elucida VILLAÇA AZEVEDO, "nosso Código Civil de 1916, não possuía dispositivo expresso cuidando da boa-fé objetiva. Todavia, o novo Código Civil estabelece que "os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé" (art. 422). Aí está resguardado o princípio da boa-fé objetiva, ou seja, a que implica o dever das partes, desde as tratativas iniciais, na formação, na execução e na extinção do contrato, bem como após esta, de agir com boa-fé, sem o intuito de prejudicar ou de obter vantagens indevidas" [10]

Pois bem, ante o advento da cláusula geral de boa-fé, reascenderam-se as discussões em torno de seus pressupostos, sub-princípios e limites, principalmente pela liberação de cognição discricionária por parte do Poder Judiciário no tocante à norma in apertus.

O grande mestre JUNQUEIRA DE AZEVEDO, em recente estudo apontou a título de orientação os quatro pressupostos para a implementação do princípio da boa-fé oriundos de trabalho jurisprudencial Alemão como modo de equacionar a sua amplitude. De lege ferenda, o primeiro, estaria coligado à correspondência com as expectativas criadas na outra parte. "toda vez que aleguem se comporta e cria na outra parte uma série de expectativas, confiança – daí a palavra fides -, temos o primeiro e importantíssimo pressuposto: a expectativa". O segundo que tenha havido investimento nesta expectativa, eis que "não basta para aquele que vê as suas expectativas frustradas apelar para um pedido de indenização ou outro pedido qualquer de uma providência. É preciso que esse que tinha expectativa tenha investido nela.". "o terceiro pressuposto é que seja uma expectativa fundada. O sujeito não pode ser um otimista inveterado""por fim, como quarto pressuposto, é preciso que a causa da expectativa tenha alguma ligação com a outra parte." [11]

Acredita-se do alinhavado que, pela potencialidade do preceito, deverá ser mensurada em cada caso a incidência proporcional dos requisitos suso esposados, sem obviamente a rigidez que a tarefa prática de apreciação das múltiplas realidades da fase de execução de um contrato não comporta.


2)A Boa-Fé Objetiva e Suas Funções Precípuas

Sem aprofundarmo-nos na problemática da boa-fé estritamente considerada, o que este breve estudo não permite, numa sintética análise, podem ser detectadas as seguintes funções precípuas que se espraiam de sua utilização:

2.1.)Interpretativa de negócios jurídicos: interpretação objetiva de qual comportamento seria correto sem avaliar a vontade das partes.

2.2.)Determinativa de equilíbrio: função de sentença determinativa por parte do Estado-Juiz como meio de prestar equilíbrio (balance) nos sinalagmas.

2.3.)Supletiva: dotar a relação obrigacional de deveres anexos que não se confundem com a própria obrigação. Os deveres da boa-fé, de informação, colaboração, sigilo nascem e sobrevivem antes e depois do vínculo obrigacional, tratando-se de deveres anexos à relação obrigacional que prescindem da vontade das partes. Ex. dever de intimidade entre patrão e empregado. Tais deveres sobrevivem à morte da relação negocial.

2.4.)Derrogatória de posições contraditórias – Tal função, que implica na limitação de direitos subjetivos, será melhor desenvolvida à seguir por relacionar-se com o cerne da proposta de discussão.


3)A derrogação de posições contraditórias (vedação do abuso de direito) e o venire contra factum proprium na doutrina e jurisprudência

Vetor que mais nos interessa no desenvolvimento do articulado, a derrogação de posições contraditórias por via dos recursos interpretativos emanados da boa-fé objetiva afigura-se como uma das mais importantes formas de correção ao eventual abuso de direito.

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O grande mestre ORLANDO GOMES aponta que "a concepção do abuso de direito é uma construção doutrinária destinada a tornar mais flexível a aplicação das normas jurídicas inspiradas numa filosofia que deixou de corresponder às aspirações sociais da atualidade. Neste sentido, é um conceito amortecedor. Em verdade, sua função precípua é amortecer os choques freqüentes entre a lei e a realidade. Trata-se, no fundo, de uma técnica de reanimação de uma ordem jurídica que se está esgotando. Em última análise, o conceito nega a tese que pretende reanimar, mas, ainda assim, assegura a estabilidade do sistema em que se introduz" concluindo: "o abuso de direito é uma fórmula elástica que permite conter toda ação que se reputa inconveniente à nova ideologia das relações humanas, ao novo sentido que se vem emprestando ao comportamento social." [12]

Corroborando o supra e ultrapassando a fase da alegação de logomaquia objetada por PLANIOL (que acreditava ser antinômica a idéia de conceber um abuso no exercício de um direito lídimo) a doutrina e jurisprudência mais modernas paulatinamente assentaram a antijuridicidade objetiva daquele que em exercício de um direito próprio excede-lhe em detrimento alheio [13], o que veio a moldar, como dantes pontuado, a faceta objetiva da conduta de boa-fé calcada em padrão jurídico finalístico.

Sob tal flanco, em termos latos, conforme apregoa SPOTA, citado por CUNHA LUNA, "o direito subjetivo concebe-se como função social e não como faculdade ou poder do indivíduo, razão porque "el acto abusivo es e lacto anti-funcional". Trata-se de um "autêntico stardard jurídico": se o indivíduo desvia o poder jurídico do seu próprio e característico fim social ou econômico, incide na prática de abuso de direito" [14]

No novel codex afastou-se a culpa como pressuposto da admissibilidade do abuso de direito, centrando-se a aferição de tal realidade na subsunção objetiva do evento à um padrão prévio de conduta leal, honesta, estreme de perscrutar-se acerca da vontade interna do agente. Daí o enunciado relativo ao tema, aprovado na Jornada de Direito Civil do CEJ da CJF (11 a 15.09.2002), ter sedimentado que, "a responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico" [15]

Daí, em especificação, racionalize-se que o direito subjetivo não é infenso ao controle jurídico, mas sim limitado ao exercício hábil e útil dentro dos padrões da bona fidei. Sob tal aspecto desdobram-se os principais dísticos romanos que bordejam a sua extensão no que toca à função derrogatória de posições inadequáveis: a) TU QUOQUE – o impedimento de fazer ou exigir de outrem o que não se faz ou se exige de si próprio, e.g. como ocorre na exceção do contrato não cumprido; b) INCIVILITER AGIRE – impedimento do agir de maneira incivilizada, evitando atitudes indevidas em incompatíveis com a razoabilidade. e.g. exigir de contraente de obrigação personalíssima que execute prestação em data de falecimento de ente querido; c) VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM (NULLI CONCEDITUR) – reporta à vedação de vir contra fato próprio que incute expectativa de efeitos à outrem de boa-fé. e.g. aceitar pagamento efetuado em dia diverso do contrato e depois insurgir-se quanto ao atraso; d) SUPRESSIO diz respeito a perda da possibilidade de implementação de um direito pela falta de exercício nos lindes da boa-fé e e) SURRECTIO – registra o tempo de conduta que leva à nascimento de um direito em proteção à boa-fé que dele eclode. tempo + forma de agir [16].

Com maior vagar na análise do venire contra factum proprium, conveniente o excerto das lições de AGUIAR JÚNIOR, ao dissipar que, "A teoria dos atos próprios, ou a proibição de venire contra factum proprium protege uma parte contra aquela que pretenda exercer uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente. Depois de criar uma certa expectativa, em razão de conduta seguramente indicativa de determinado comportamento futuro, há quebra dos princípios de lealdade e de confiança se vier a ser praticado ato contrário ao previsto, com surpresa e prejuízo à contraparte. Aquele que vende um estabelecimento comercial e auxilia, por alguns dias, o novo comerciante, inclusive preenchendo pedidos e novas encomendas, fornecendo o seu próprio número de inscrição fiscal, não pode depois cancelar tais pedidos, sob alegação de uso indevido de sua inscrição. O credor que concordou, durante a execução do contrato de prestações periódicas, com o pagamento em lugar ou tempo diverso do convencionado, não pode surpreender o devedor com a exigência literal do contrato. Para o reconhecimento da proibição é preciso que haja univocidade de comportamento do credor e real consciência do devedor quanto à conduta esperada." [17]

Pela teoria do venire, aquele que adere a uma determinada forma de proceder, não pode opor-se às conseqüências dela espargidas, justamente pelas expectativas legítimas que emergem para a outra parte que, de boa-fé, supõe-lhe presentes os efeitos [18]. Prestigia-se a conduta escorreita, debela-se a incongruente volta sobre os próprios passos.

Nestes termos, como já decidiu o Colendo Superior Tribunal de Justiça, para se ter um comportamento por relevante, há de ser lembrada a importância da doutrina sobre os atos próprios. Assim, "o direito moderno não compactua com o venire contra factum proprium, que se traduz como o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente (MENEZES CORDEIRO, Da Boa-fé no Direito Civil, 11/742). Havendo real contradição entre dois comportamentos, significando o segundo quebra injustificada da confiança gerada pela prática do primeiro, em prejuízo da contraparte, não é admissível dar eficácia à conduta posterior." (Resp n. 95539-SP Relator Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR), onde restou consignado pelo então relator, Min. RUY ROSADO que, o sistema jurídico nacional, "deve ser interpretado e aplicado de tal forma que através dele possa ser preservado o princípio da boa-fé, para permitir o reconhecimento da eficácia e validade de relações obrigacionais assumidas e lisamente cumpridas, não podendo ser a parte surpreendida com alegações formalmente corretas, mas que se chocam com os princípios éticos, inspiradores do sistema.". De outra feita consignou-se que o terceiro de boa-fé não pode ser prejudicado por erro próprio da administração, sob a "aplicação dos princípios de que nemo potest venire contra factum proprium e de que nemo creditur turpitudinem suam allegans" (Resp. n. 47.015(94.011462-1) – SP Relator Ministro ADHEMAR MACIEL). A Corte de Estrito Direito Ordinário já pronunciou-se, portanto no sentido de que ninguém pode se opor a fato a que ele próprio deu causa, ou seja, voltar sobre os próprios passos, para infringir a estabilidade da boa-fé objetiva, restringindo-se com isso o uso abusivo de um direito teoricamente legitimado.

A Honrada Corte do Estado de Mato Grosso do Sul também já vem endossando a tese, acordando que uma legítima expectativa não pode ser irrespondida pela Administração Pública, sob pena de ofensa à proibição do venire contra factum proprium (TJMS – 3ª. T. Cível. Apelação Cível – Ordinário – n. 2002.001703-6/0000-00 – Campo Grande. Relator Exmo. Des. HAMILTON CARLI. Unânime), dirimindo de outra feita que, a mudança de negociações pautadas por expectativa escudada na boa-fé objetiva importa em venire contra factum proprium devendo ser arrostada pela proteção da confiança da outra parte. (TJMS – 1ª. T. Cível. Apelação Cível – Ordinário – n. 2001.006261-8/0000-00 – Campo Grande. Relator Exmo Sr. Des. JORGE EUSTÁCIO DA SILVA FRIAS. Unânime)


4)A aplicabilidade da tese do venire contra factum proprium em caso de negativa de indenização ao beneficiário de seguro de vida ante a morte do segurado em meio a atraso consentido

Desfechadas as bases iniciais, interessa-nos esboçar a incidência do venire contra factum proprium como meio de derrogação nas posições contraditórias exsurgidas nos contratos de seguro de vida, onde o segurado venha a falecer em meio suposta mora contratual que se reporta em verdade à admissão de atrasos sem a devida resolução do avençado por parte da seguradora. Aqueles que conhecem a prática forense bem sabem que não são raros os casos onde dá-se a hipótese, que implica na movimentação do beneficiário em juízo para exigir a indenização negada pela parte contratante, tendo em vista a maciça resistência das seguradoras em fazê-lo sob a argüição de inexecução da avença.

Consignando-se que aqui se visa a interpretação da boa-fé ante ao contrato de seguro dentro do NCCB, não sendo objeto destes breves apontamentos o paralelo com o CDC ou o estudo específico da estática do contrato de seguro [19], mas sim de sua dinâmica frente ao Diploma Civil e a Constituição, passamos ao confronto entre as disposições da vetusta Lei de espécie e as da atual pertinentes à matéria.

O Código de CLOVIS disciplinava o assunto da seguinte forma verbis:

"Art. 1.451. Se o segurado vier a falir, ou for declarado interdito, estando em atraso nos prêmios, ou se atrasar após a interdição, ou a falência, ficará o segurador isento da responsabilidade pelos riscos, se a massa, ou o representante do interdito não pagar antes do sinistro os prêmios atrasados."

A nova lei civil giza verbis:

"Art. 763. Não terá direito a indenização o segurado que estiver em mora no pagamento do prêmio, se ocorrer o sinistro antes de sua purgação"

Em cotejo a pensar-se sob a ótica literal (a primeira e nunca última das vias interpretativas como já o dizia o saudoso GERALDO ATALIBA), o novo CCB teria fulminado o contrato de seguro de causa resolutiva ipso iure ante o atraso. Para alguns, poderia soar que estando o contraente em mora, o advento do sinistro não redundaria no pagamento da indenização, eis que a situação prescindiria de intervenção judicial para o desate.

À evidência, tal linha de raciocínio pouco (ou nada) atenta para o arcabouço jurídico que circunda os direitos em discussão. Foi-se de há muito o tempo em que o contrato era cotejado na simples bipolaridade entre débito e crédito, na esteira do entendimento privatístico estrito que um dia prevaleceu entre nós.

Atualmente desponta a visão macro-dimensional dos negócios jurídicos. Não há falar-se em deveres e obrigações estanques entre os contratantes, mas sim em deveres e obrigações vários, anexos [20] que, nada obstante inconfundíveis, se vêem interpenetrados à conduta exigida anterior, concomitante e posteriormente a relação material base [21]. Tudo isso se espraia da noção meta-cognitiva de preeminência da boa-fé objetiva, incidente ainda que nenhuma norma positiva disciplinando-a houvesse. [22]

É por demais intuitivo: às partes cabe curar pela conduta obrigacional escorreita nos lindes da confiança, do razoável, do permitido e do aceitável. Por ilação, o plano ôntico, o aspecto real da execução do contrato gera obrigações paralelas justamente na esteira dinâmica do comando desta bona fidei.

Neste prisma, se um dos partícipes de avença aquiesce para com determinada situação - que infirma as linhas pré-dispostas originalmente - à bem do contraente mais fraco, libera-se em contrapartida o direito deste último exigir a manutenção do novo estado de coisas. Tal se explica pela ótica da já exposta teoria do venire.

É o que claramente se aplica ao caso, em interpretação tópica [23]do art. 763 em relação ao art. 765 que, em adendo à cláusula geral de boa-fé ratifica-lhe ainda mais, consignando que verbis:

"Art. 765. O segurado e o segurador são obrigados a guardar na conclusão e na execução do contrato, mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto como das circunstâncias e declarações a ele concernentes"

Com efeito, se a seguradora anui durante todo o iter da vida contratual com eventuais atrasos do contratante, sem qualquer manifestação formal pelo desate (requisito prévio evidentemente exigível no caso), não há que propalar-se resolução pro hominem diante da morte do oblato em meio à tal estado de coisas. Configuraria extremo arrepio à boa-fé e flagrante abuso de direito admitir a contraditória e irrazoável tese de conduta da grande maioria das seguradoras consistente em perdoar a "mora" (rectius "prorrogação consentida") quando lhe beneficia e negar tal benesse quando, na ocorrência do sinistro, não lhe é mais proveitoso.

A partir do momento em que a seguradora permite o atraso e deixa de notificar expressamente a parte em univocidade de comportamento, fez nascer uma nova hipótese de complacência contratual o que legitima a expectativa do segurado quanto ao respondimento pela quantia segurada (real consciência da conduta esperada). Por tal tirocínio, o contrato vige e, com a sedimentação do evento causal, é de rigor o pagamento da indenização prometida pela apólice nos termos anexos oriundos da própria vontade dos sujeitos parciais. Caberá ao réu unicamente o direito de cobrar por via própria os atrasados do valor relativo ao seguro.

Frise-se por tudo que, ainda que se tente forçar a mora debitoris, há que se ter em mente, sob o escólio forte de WHASHINGTON, que esta apresenta "um lado objetivo e um lado subjetivo. O lado objetivo decorre da não realização do pagamento no tempo, lugar e forma convencionados; o lado subjetivo descansa na culpa do devedor. Esta é elemento essencial ou conceitual da mora solvendi. Inexistindo fato ou omissão imputável ao devedor, não incide este em mora" [24]. Ocorrendo o venire, insofismavelmente não poderá ser interpretado o atraso permitido como mora.

Sendo assim a interpretação literal e isolada do art. 763 é de ser evitada, porquanto há de ser apreendida est modus in rebus, como, aliás, já vinha acertadamente fazendo a jurisprudência no campo do Código Civil já revogado. [25]

Sobre o autor
Marco Antônio Ribas Pissurno

Especialista em Direito Processual Civil e Direito Civil

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PISSURNO, Marco Antônio Ribas. O "venire contra factum proprium" na negativa de indenização de seguro de vida ante a morte do segurado em atraso permitido.: O abuso de direito e a exegese tópica do art. 763 do novo Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 252, 16 mar. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4859. Acesso em: 23 dez. 2024.

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