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Biopolítica:o caso do vírus zika no Brasil

Agenda 05/05/2016 às 20:18

O artigo trata da regualamentação da Biotecnologia no Brasil e suas implicações com o Vírus Zika.

O país no inicio de 2016 foi surpreendido pela rápida disseminação do Vírus Zika e sua correlação com a Microcefalia, a Síndrome de Guillain-Barré, a Artrogripose, entre outras complicações neurológicas, segundo os Critérios de Hill. Em fevereiro diante da confirmação de casos de Vírus Zika em 24 países da América Latina a OMS decretou emergência mundial de Saúde Pública.

O rápido crescimento desencadeou uma corrida entre instituições de pesquisa e a indústria farmacêutica em torno da elaboração de protocolos de atendimento, testes diagnóstico rápidos, sorologia de pacientes, medicamentos e vacinas. Essas últimas são identificadas como principal ferramenta para controle efetivo da epidemia, mobilizando a indústria farmacêutica, fundos públicos e privados de fomento e agencias reguladoras; implicadas diante dos apelos para acelerar os procedimentos para o registro dos novos produtos. Um dos maiores limitadores para as instituições de pesquisa e para indústria farmacêutica, detentoras das plataformas para produção de vacina contra o Vírus Zika, é o acesso às cepas virais confiáveis biologicamente. O Brasil torna-se assim um ponto de passagem obrigatório, primeiro pela presença de cepas virais certificadas; segundo pelas complicações até então inéditas, como a correlação entre o Zika e as doenças neurológicas aqui identificadas.

A epidemia do Vírus Zika gerou uma série de discussões, algumas já bastante debatidas pela grande imprensa e pelos fóruns especializados, enquanto outros aspectos foram pouco abordados. Entre as questões pouco debatidas as associadas à Biossegurança. Destacamos aqui três questões - a ocupacional, a ambiental e a patrimonial. Faremos algumas considerações sobre cada uma.

O risco das pesquisas com o Vírus Zika é considerado de classe II de Risco Biológico, logo risco médio, sendo necessário observar os Procedimentos Padrões de Biossegurança. Entretanto, pesquisas que envolvem o isolamento do vírus exigem critérios adicionais de biossegurança. O principal deles é alertar os técnicos sobre os riscos de contraírem de forma ocupacional o Vírus, uma vez que ele é transmitido pelo sangue e esperma, e transmiti-lo sexualmente para seus parceiros. Essas informações são ainda mais prementes no caso das técnicas que desejam engravidar ou já estão grávidas. A recomendação deve ser clara e amplamente difundida - todos deverão seguir as Precauções Universais de Biossegurança, como usar luvas, máscaras, gorros, ter cuidados com perfuro cortantes, com resíduos e não gerar aerossol.

Os critérios adicionais de biossegurança, elencados acima, também deverão ser observados pelos profissionais de saúde que atuam no cuidado aos pacientes com viremia internados em unidades de saúde. Enquanto para aqueles profissionais que fazem atendimento ambulatorial, o principal cuidado é o uso de luvas e máscaras.

Alguns cuidados adicionais deverão ser tomados com técnicas grávidas ou tentando engravidar. Porque caso a instituição não tenha as condições de segurança biológica adequada para trabalhar com Vírus, a recomendação é afasta-las momentaneamente da área de risco biológico.

Outra atividade de pesquisa que requer cuidados especiais com o Vírus Zika são as infecções experimentais em outros mosquitos como o Culex, gênero bastante comum no território nacional. Todos os procedimentos deverão ser realizados em insetários de segurança biológica para impedir a liberação acidental no meio ambiente de vetores, os quais, de forma natural, ainda não transmitem o Vírus Zika.

A engenharia genética é apontada por alguns como alternativa ao uso de inseticidas para o controle da proliferação do Aedes aegypti. A estratégia é montar biofábricas para produção de mosquitos transgênicos, cuja principal característica é tornar o mosquito biologicamente incompetente na transmissão do Vírus quando soltos no meio ambiente. Não pretendemos aqui analisar a eficácia biológica da tecnologia. O intuito é problematizar seu uso a partir da perspectiva do efetivo controle sustentável da epidemia.

Atualmente apenas uma empresa detém capacidade de produzir comercialmente esses mosquitos. Somos o único país do mundo no qual a empresa obteve um parecer favorável para iniciar o processo de comercialização do seu produto. O parecer foi dado pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) e, há dois anos, aguarda um parecer da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para sua efetiva comercialização no território nacional. Em comunicado eletrônico, a Anvisa informa que o mosquito foi enquadrado na categoria “Produto de Registro Especial Temporário”, mas não prestou nenhuma informação sobre a liberação comercial. A agência também não disponibilizou os relatórios técnicos elaborados por seu corpo técnico nos quais se embasou para considerar o produto nessa categoria de registro.

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Consideramos que a liberação comercial do mosquito transgênico deveria ser condicionada à realização de mais estudos sobre a interação do mosquito transgênico com o meio ambiente. O mosquito disponível atualmente é transgênico para uma espécie específica. Assim, ele é capaz de controlar o Aedes aegypti, mas não controla, por exemplo, o Aedes albopictus. E não sabemos se outras espécies de mosquitos, eventualmente, participam ou poderão participar no ciclo de transmissão do Vírus Zika.

É importante discutirmos de modo mais ampliado as possíveis consequências geradas pela extinção de uma espécie de mosquito. O sistema biológico pode estabelecer o processo de pressão seletiva, por intermédio do qual determinados genes podem prevalecer ou desaparecer afetados pela ação de conjunto de condições ambientais. Extinto o Aedes aegypti, espécie como o Aedes albopictus, e outros vetores de transmissão de arboviroses conhecidas, não poderão passar a ser infestados pelo Zika Vírus? Notem que a estratégia de controle via mosquito transgênico é dispendiosa e ambientalmente contestada. E caso o Zika Vírus tenha capacidade de ampliar os vetores de transmissão em médio prazo pode tornar ineficaz essa tecnologia. 

Até onde foi possível apurar os únicos testes executados, pelo laboratório produtor foram de avaliação entomológica, ou seja, população de mosquitos. Logo ainda carecemos de uma avaliação epidemiológica capaz de mensurar a incidência da doença.

Concordamos, outrossim, com a posição da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), a estratégia mais eficaz para o enfrentamento das arboviroses (Dengue, Zika e Chikungunya) é o saneamento básico.

Ainda sobre a questão ambiental, muitos urbanistas defendem que os modelos de urbanização adotados pelas nossas cidades de médio e grande porte propiciam o crescimento e a rápida disseminação dos vetores. A expansão maciça de monoculturas e o desmatamento indiscriminado, privilegiados pelo atual modelo socioeconômico, também concorrem para o aumento da circulação de vetores em todas as regiões do país, seja pela ação da mudança no regime de chuvas e ventos, seja pela elevação das temperaturas médias. A compreensão das atuais epidemias provocadas por arbovíros passa pela discussão ampliada desses fatores e suas interações, bem como a definição de estratégias de curto, médio e longo prazo.

O fornecimento de soro para o exterior está previsto na Lei 10.205/2001 e na Portaria 2.712/2013 do Ministério da Saúde (MS), que regulamenta sangue e seus hemoderivados, é permitido em situações especiais como a solidariedade internacional. Segundo a regulamentação o fornecimento exige autorização do MS. Para tanto, se considera também se os derivados serão desenvolvidos por meio de alta tecnologia não acessível no país. Ainda assim, a regulamentação prevê contrapartidas ao fornecimento do soro. Consideramos ser essa uma discussão necessária. As contrapartidas deverão entrar na agenda de discussões sobre o fornecimento do painel de soro existente nas instituições públicas brasileiras. Ele é fundamental para a produção do reagente para diagnóstico confiável, bem como para a posterior validação dos kits para diagnóstico. E sua construção envolve o trabalho de médicos, enfermeiros, técnicos de laboratório, pesquisadores e a mobilização de serviços de saúde e instalações laboratoriais nacionais. Tudo isso implica em custos para o setor público nacional. Não adianta desenvolver a tecnologia de produção do kit diagnóstico se não tivermos um painel de soro confiável e abrangente. Lembrando que esse painel é objeto de interesse de instituições de pesquisa internacionais e da indústria farmacêutica.

 A remessa ou o envio do Vírus Zika são previstos na legislação de Acesso à Biodiversidade (Lei 13.123/2015). No entanto a transferência para o exterior de material biológico, exceto o humano, exige o cadastramento da instituição brasileira que transfere o material biológico. A Lei define com clareza os termos “Remessa” e “Envio”. Remessa de Amostra é a transferência de patrimônio genético para instituição localizada fora do País com a finalidade de acesso, na qual a responsabilidade sobre a amostra é transferida para a destinatária. Enquanto Envio de Amostra é usado no caso de amostra que contenha patrimônio genético para a prestação de serviços no exterior como parte de pesquisa ou desenvolvimento tecnológico na qual a responsabilidade sobre a amostra é de quem realiza o acesso no Brasil.

Atualmente ambos os procedimentos (remessa/envio) estão suspensos, uma vez que o Poder Executivo não regulamentou a Lei 13.123/2015. A falta de regulamentação é um impeditivo para as cooperações internacionais no desenvolvimento de produtos contra o Zika Vírus. Concretamente há cinco laboratórios internacionais que possuem a plataforma para desenvolver e produzir bioprodutos contra Zika. No entanto a produção dos protótipos (de vacina), até o momento, utilizam amostras de Zika Vírus africanos e asiáticos. Frente às especificidades aparentes do vírus em circulação pelo Brasil, já que as complicações neurológicas identificadas aqui não foram devidamente registradas em países africanos ou asiáticos, o recomendável seria produzir a vacina com o Vírus isolado no Brasil.

Outro insumo estratégico para a produção de vacinas é a disponibilidade de vírus com alta capacidade imunogênica. Insumo valioso para laboratórios internacionais que detém tecnologia para produzir as vacinas, mas não possuem uma viroteca diversificada e certificada. Gastamos recursos públicos para isolar o vírus, cultivá-lo em células, conservá-lo em laboratório, padronizá-lo e sequencia-lo. Hoje possuímos uma quantidade de vírus isolada e bem caracterizada e certificada em biobancos vinculados a instituições públicas de pesquisa e ensino. Precisamos produzir a compreensão de que esse material constitui nosso patrimônio genético nacional.

Sem dúvida instituições nacionais como a Fiocruz e o Instituto Butantan detêm capacidade técnico-científica para produzirem a vacina. Entretanto, as grandes empresas transnacionais de biotecnologia possuem maior capacidade para realizar testes, estabelecer parcerias com empresas de base tecnológica, com universidades e com centros de pesquisa públicos e privados, de produzir em grande escala e colocar vacinas em diferentes mercados. Essas empresas também possuem maior capacidade de investimentos. É preciso compreender que institutos nacionais perdem em capacidade de investimento, não em capacidade cientifica, pois detemos conhecimento científico e amostras do vírus muito bem certificadas.

Quando pensamos em contrapartida ao fornecimento de Vírus, temos em mente situações especificas como a ocorrida recentemente com a vacina contra Dengue. Essa vacina foi desenvolvida por um laboratório privado a partir de Vírus isolados em países nos quais ocorre a doença. A vacina foi liberada pela ANVISA para comercialização no país e é ofertada apenas pela rede privada. Segundo o fabricante a prescrição são três doses num intervalos de seis meses, imunizando crianças acima de 5 anos e idosos abaixo de 60 anos. Logo grupos de riscos (crianças abaixo dos 5 anos e idosos acima dos 60) estão desprotegidos. O custo é uma variável não desprezível. Hoje, considerando apenas o preço da vacina, ele é de aproximadamente R$ 80,00 por dose. As três doses necessárias exigem o desembolso de R$ 240,00 por pessoa. Se vacinarmos 5% da população o custo é R$ 10.000.000,00. É um valor bastante elevado, afastando a vacina da rede pública e, portanto, das populações de baixa renda e dos moradores de regiões sem saneamento básico. Por outro lado, segundo dados da própria empresa, veiculados pela grande imprensa nacional, a vacina tem uma eficácia 60%. Cabe indagar, por conseguinte, se os países que forneceram material biológico empregado no processo de desenvolvimento da vacina obtiveram alguma contrapartida da empresa.

Notem que o ponto aqui não é ser contra ou favor do estabelecimento de parcerias e acordos para o desenvolvimento da vacina por laboratórios internacionais sejam eles públicos e privados. Não pretendemos discutir esse tema no texto. O ponto é que deve existir alguma contrapartida quando um país fornece Vírus de pacientes para desenvolvimento de uma vacina. Afinal é o patrimônio genético nacional que está sendo transferido. Seria oportuno que o Termo de Transferência de Material fosse devidamente analisado pelo Núcleo de Inovação Tecnológica – NIT das instituições detentoras dos biobancos.

Portanto, o estabelecimento de acordos de cooperação com os laboratórios internacionais públicos e privados para o fornecimento do material biológico nacional implica, além da regulamentação da Lei 13.123/2015, a inclusão de cláusulas de contrapartida. A transferência de parte de nosso patrimônio genético só se justifica como parte de acordos que definam preços mais baixos (compra diferenciada para setor público) e transferência da tecnologia para laboratório público nacional.

Os kits sorológico, aprovados pela Anvisa para comercialização no Brasil para serem usados pelos laboratórios particulares, têm um diferencial em relação aos kits já existentes nos laboratórios públicos.  Os kits usados nos laboratórios públicos detectam o vírus circulante no paciente infectado. Isso acontece em até sete dias após o aparecimento dos sinais e sintomas. Já o kit sorológico, aprovado para uso da rede privada, faz o diagnóstico pela detecção dos anticorpos, que continuam presentes depois do sétimo dia. Teoricamente, é possível fazer o diagnóstico de um paciente que não tem mais o vírus circulando e nos assintomáticos.

O problema do kit sorológico é que ele não foi liberado pelas principais agências de vigilância sanitária do mundo. Recentemente o Food and Drug Administration (FDA), órgão do governo americano responsável pela aprovação, autorizou que o Centre for Disease Control and Prevention (CDC) usasse o kit Zika MAC-ELISA apenas para atividade de pesquisa. O kit Zika MAC-ELISA não foi liberado para fins comerciais nos EUA porque não há segurança quanto aos seus resultados, ele apresenta muitos falsos negativo / positivo. Por exemplo, um indivíduo imunizado com a vacina contra a febre amarela, obrigatória para circular por algumas regiões da América Latina, pode apresentar um resultado positivo para Zika. Logo não há garantia da sua eficácia e confiabilidade.

Quais problemas poderão ser desencadeados pelo kit sorológico? Uma mulher grávida que procura um laboratório particular para saber se contraiu o Vírus Zika, corre o risco de obter um resultado “falso positivo”. Lembrando que a maioria dos casos é assintomática, logo não terá diagnóstico clínico. O custo de cada teste varia de R$ 500,00 a R$2.000,00. Então além de bancar um custo bastante elevado, diríamos até exorbitante, os resultados não são confiáveis. Notem que além dos problemas emocionais para a mulher e sua família gerados por um falso positivo, ele compromete a percepção pública sobre a doença.  

É preciso que a população seja informada que o exame confiável é aquele feito quando o paciente ainda possui o vírus circulando. O exame feito nos laboratórios oficiais é confiável porque identifica a partícula viral.

O objetivo inicial do artigo era adensar o debate nacional entorno do Zika e levantar a discussão sobre suas interfaces com a biossegurança. Ao fazê-lo terminamos sistematizando algumas questões (embora sem aprofunda-las) relativas à geopolítica e que suscitam/merecem/requerem atenção dos gestores públicos e pesquisadores.  

Paralelamente ao avanço das arboviroses transmitidas pelo Aedes aegypti, que datam da década de 80 do século passado, a pesquisa em saúde no Brasil aprofundou sua internacionalização. Nesse intervalo muito se discutiu sobre marco legal da C&T. Os argumentos sobre a harmonização de legislações, sobre a necessidade de explicitar procedimentos e adotar outros tantos geraram acalorados debates. Entretanto pensamos que alguns pontos permanecem à sombra. E continuam a sobra mesmo diante dos fatos atuais em torno da epidemia de Zika. Para além dos dispositivos legais, é preciso compreender que os vírus e seus vetores, soros, tecidos e materiais biológicos humanos e não-humanos coletados por nossas instituições e armazenados em nossas biobancos são patrimônio público. Logo dizem respeito à sociedade. Portanto não devem ser discutidos no âmbito de acordos de cooperação ou em fóruns excessivamente restritos. É preciso ampliar a discussão sobre a transferência e a responsabilidade sobre as amostras.  É preciso que esse debate se associe ao processo ainda inconcluso da reforma sanitária. Essa é uma discussão atinente à saúde e suas políticas públicas.

Sobre o autor
Silvio Valle

Pesquisador e coordenador dos Cursos de Biossegurança <br>Fundação Oswaldo Cruz

Informações sobre o texto

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