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O Supremo Tribunal Federal e a teoria do domínio do fato:

retomada técnica da Ação Penal 470

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Agenda 06/06/2016 às 14:48

3 A PROVA DA AUTORIA E A TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO: uma análise crítica do julgamento da ação penal nº. 470

Nos autos que compõem a ação penal nº. 470/MG, a teoria do domínio do fato se insurge já na exordial acusatória, sendo também trazida à baila nos votos da maioria dos ministros-membros do Supremo Tribunal Federal.

Reconhecida, todavia, a profundidade da discussão sobre todos os aspectos jurídico-penais do que se denominou por mensalão, bem como a inviabilidade de uma exposição minuciosa das 8.405 laudas que estruturam o respectivo julgamento, delimitou-se o tema mediante o qual se desenvolve o presente artigo, atribuindo foco ao então chefe da Casa Civil, José Dirceu, cujos delitos imputados[71] foram debatidos nos itens II (formação de quadrilha[72]) e VI (corrupção ativa) da vasta exposição constante no acórdão da Suprema Corte.

Alusões ao domínio funcional do fato, bem como ao domínio da organização, ora de forma singular, ora numa confusão de conceitos, merecem uma análise mais criteriosa – e discutida, também, sob a ótica de demais doutrinadores e formadores de opinião.

3.1 “O DOMÍNIO FUNCIONAL [...DO] CHEFE DO ORGANOGRAMA DELITUOSO.”

O Procurador Geral da República em 2006 se expressou, nas linhas que articulam a peça inicial, de forma a recair sobre o ex-ministro chefe da Casa Civil[73] “[...] o domínio funcional de todos os crimes perpetrados, caracterizando-se, em arremate, como o chefe do organograma delituoso.”[74] Também nesse sentido seguiu a ministra Rosa Weber ao afirmar, em seu voto, que “Tendo o acusado José Dirceu sido o auto proclamado artífice da formação da base aliada e sendo o acerto quanto aos repasses financeiros parte delas, não há como negar ciência, assentimento e responsabilidade quanto ao ocorrido.”[75]

Destas disposições, tem-se que o Ministério Público, assim como conferiu ao acusado o domínio funcional dos delitos, ressaltou para tanto a sua posição hierárquica, o que foi acompanhado, no STF, por ministros como Weber[76]. A esta bastou-se a argumentação de impossibilidade, diante da função que ocupava, de que aquele não se fizesse ciente do conluio.

Conforme já esclarecido anteriormente, o domínio funcional do fato pressupõe a existência de um plano comum, compreendendo os atos executivos ocasionados por mais de um autor. Deste modo, possuir o domínio funcional dos crimes significaria, de logo, reconhecer a existência de uma coautoria, onde o domínio de cada autor se apresenta numa mesma medida, com o fito de integrar um acordo comum.

Observa-se que a teoria do domínio do fato, nos moldes considerados por Claus Roxin, não permite que a ocupação de um cargo de chefia dentro de uma organização de poder, tal qual fez a Acusação, faça presumido o domínio funcional. Para que essa correlação se demonstre possível, seria necessário não somente a consideração de mais de um autor para os delitos ora imputados, mas também a suficiência probatória das respectivas participações nos atos executórios.

Isto pois, segundo a concepção roxiniana[77], “[...] el cabecilla es coautor cuando dirige o cubre la ejecución de los delitos [... não se olvidando que] no se puede estimar autoría em virtud de la mera posición como jefe de la banda.”[78]

Na peça acusatória, Dirceu é apontado como o articulador maior do esquema criminoso, a quem pertenceria o poder decisório. Somente em relação a ele é apontada a teoria do domínio do fato, numa construção que parece entender por domínio funcional o que se tem, em verdade, por domínio da vontade e, mais especificamente, por domínio da organização.

Imperioso, contudo, é discernir as diferenças entre o mencionado domínio funcional do fato e o domínio da organização, sem incorrer na incongruência de confundi-los. Em que pese ambos consistam em formas de configuração da autoria, seus pressupostos são eminentemente diversos, haja vista que, para o primeiro é imprescindível a existência de mais de um coautor a atuar, ainda que de longe, na execução delituosa. No domínio da organização, por sua vez, o autor se vale da execução que a estrutura de poder organizada lhe assegura, ou seja, é o sujeito de trás, que não realiza por si mesmo a figura típica.

Ocorre que, afora a grande tendência de se enquadrar as situações de imputação criminosa a chefes de organogramas delituosos como ensejadoras necessárias de um domínio da organização, para este ser configurado, exigem-se requisitos específicos. Faz-se essencial a fungibilidade dos executores diretos, de forma que o resultado almejado pelo sujeito de trás seja concretizado por pessoas indeterminadas, cujas características pessoais são irrelevantes.

Com efeito, a descrição estrutural da mencionada quadrilha é substancial para uma melhor compreensão. Essa seria composta por um núcleo principal, cujo escopo era a obtenção de apoio político e o pagamento de dívidas e demais despesas – sobretudo de campanha – do PT e de aliados. Nesse centro figuraria José Dirceu, Delúbio Soares, Sílvio Pereira e José Genoíno, sendo estes dois últimos, ressalte-se, o ex-secretário geral e o ex-presidente do PT. Já os outros dois grupos existentes seriam o relativo ao Banco Rural (José Roberto Salgado, Ayanna Tenório, Vinícius Samarane, Kátia Rabello e o falecido José Augusto Dumont) e o núcleo publicitário (Ramon Hollerbach, Cristiano Paz, Rogério Tolentino, Simone Vasconcelos, Geiza Dias e, sobretudo, Marcos Valério), que simulava empréstimos junto àquele Banco para justificar a origem dos recursos empregados nas campanhas eleitorais, quando, conforme a denúncia, decorriam, em verdade, do desvio de dinheiro público na contratação da publicidade.

Saliente-se, portanto, que os integrantes dos núcleos político, publicitário e financeiro eram pessoas específicas, que dotavam de atributos próprios. Somente em consequência de suas peculiaridades – influências políticas, posições de gestão e articulação partidária – é que se permitia a movimentação do esquema delituoso compreendido por mensalão. Dessa forma, não há que se falar em domínio da organização, bem como não se pode emaranhar seu conceito com o de domínio funcional do fato.

3.2 “[...] JOSÉ DIRCEU TINHA MESMO O DOMÍNIO INTELECTUAL DAS AÇÕES [...]” VERSUS “[...] DOMÍNIO FUNCIONAL DO PARTIDO DOS TRABALHADORES E [...] DOS SEUS MAIS DESTACADOS DIRIGENTES E PRÓCERES.”

Mesmo o ministro aposentado Carlos Ayres Britto, presidente do STF quando do julgamento da ação penal nº. 470, proferiu seu voto aplicando a teoria do domínio do fato como vetor para fundamentar a condenação do ex-ministro chefe da Casa Civil. Numa de suas observações, aduziu que o mensalão se deu “[...] sob o impulso originário, controle metodológico e domínio funcional do Partido dos Trabalhadores e de quatro (número inicial da peça acusatória) dos seus mais destacados dirigentes e próceres.”[79] Assim, posicionou-se pela adoção do que se entende por domínio funcional do fato, a configurar uma coautoria.

Todavia, surpreendente é a continuidade do mencionado voto, que, com mesma veemência, infere que “[...] o denunciado José Dirceu tinha mesmo o domínio intelectual das ações dos demais acusados, naquilo em que dirigidas para o levantamento de numerário para o pagamento de dívidas e de ‘mesadas’ a parlamentares da base aliada.”[80]

O que, a primeira vista, não demonstra qualquer atecnia quanto à matéria, tornou expostas publicamente as fragilidades do Judiciário brasileiro, que, representado pela sua mais alta cúpula, atestou limitado aprofundamento no saber relativo à teoria do domínio do fato.[81] Isso porque, como já abordado em seção anterior, o domínio funcional e o domínio intelectual – ou domínio da vontade[82] – consistem em matizes diversas da citada teoria.

Registra-se, portanto, que a impropriedade sugerida na peça acusatória é repetida pelo ministro Ayres Britto. Este, em abordagem expressa, não deixa equívocos quanto à má aplicação conceitual das expressões do domínio do fato, nos termos sistematizados por Roxin.

Cumpre rememorar que o domínio da vontade explica a autoria do chamado autor de gabinete, aquele postado atrás do sujeito que executa o crime, possuindo – seja pelo erro, pela coação ou pela estrutura de um aparato organizado de poder – o domínio intelectual dos atos delituosos. Neste bojo, o que sugere Ayres Britto quando apõe sobre Dirceu o domínio intelectual das ações dos demais acusados é adentrar o campo do domínio da organização, tal qual pareceu fazer o Parquet, uma vez que inexistentes as figuras da coação e do erro.

Entretanto, o grupo designado no curso do processo como núcleo central era formado, além de José Dirceu, por José Genoíno, Sílvio Pereira e Delúbio Soares. Genoíno, na qualidade de ex-presidente do Partido dos Trabalhadores, teria gerido as relações políticas diretamente com os partidos, enquanto Sílvio Pereira, como ex-secretário geral do PT, se incumbia das disposições de cargos no Governo Federal. Já a Delúbio cabia a intermediação desse específico grupo com os núcleos publicitário e financeiro, a saber, relativo ao Banco Rural.

Assim, é de inequívoca inadequação pautar a condenação de Dirceu no domínio da organização, haja vista a total determinação de cada um dos sujeitos, cujas qualidades específicas eram essenciais ao resultado final, ausente a fungibilidade entre os mesmos.

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Diante do discorrido, reafirma-se a necessidade de diferenciar os conceitos de autoria intelectual e coautoria, o que se verifica pela própria estrutura da engrenagem de ambas. Ao passo que a primeira possui uma construção verticalizada, pautada em relações de hierarquia e poder regidas por um aparato organizado, na segunda vige a ideia de isonomia entre os coautores, que integram um só plano e não seriam dispostos senão horizontalmente. Nesse sentido, esclarece Roxin[83], em artigo de sua autoria publicado na obra Temas de Direito Penal, que “uma série de autores considera o homem de trás, que, no âmbito de aparatos organizados de poder, ordena ações criminosas, não autor mediato, mas co-autor. Neste caso, a rejeição baseia-se, quase sempre, na suposição de que não seria possível um autor mediato atrás de um agente plenamente responsável. Entretanto, tal premissa é equivocada. Posto que, como apresentado no tópico inicial, o domínio da ação do executor e o da vontade do homem de trás se fundam em pressupostos distintos, podem ambos coexistir sem qualquer problema: o autor direto domina o fato concreto através de seu próprio atuar (‘domínio da ação’) e o homem de trás por meio do domínio sobre a organização (‘domínio da organização’), que o liberta da individualidade do executor. Por outro lado, contra uma co-autoria, pronunciam-se três argumentos decisivos. Primeiramente, [...] a consciência de ser o destinatário de uma ordem não significa uma resolução comum. [...] Inclusive, como uma segunda ponderação, falta também uma execução conjunta do fato. [...] Em terceiro lugar, [...] a autoria mediata tem uma estrutura vertical [...], a co-autoria, pelo contrário, é horizontalmente estruturada [...]”.

Isto posto, em que pese determinados doutrinadores[84] entendam pela existência de um domínio funcional entre o autor de escrivaninha e o executor direto, bem como ainda que se possa afirmar ter o ministro aposentado se utilizado de tal corrente, jamais se faria possível a utilização, concomitante e sobre um mesmo agente, de ambas as terminologias dessas distintas facetas do domínio do fato, se discutida sob a reiteradamente aplicada ótica roxiniana.

3.3 A TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO COMO UMA “PANACEIA GERAL”

Segundo o ministro Ricardo Lewandowski, o Ministério Público, “Incapaz, portanto, de comprovar as acusações lançadas contra JOSÉ DIRCEU [...], recorre, num derradeiro esforço de convencimento desta Suprema Corte, à denominada ‘teoria do domínio do fato’. Trata-se de uma tese, embora já antiga, ainda controvertida na doutrina. No caso de processos criminais em que a produção da prova acusatória se mostre difícil ou até mesmo impossível, essa teoria permite buscar suporte em um raciocínio não raro especulativo com o qual se pretende superar a exigência da produção de evidências concretas para a condenação de alguém. Não quero dizer com isso que tal teoria não tenha espaço em situações especialíssimas, como na hipótese de sofisticadas organizações criminosas, privadas ou estatais. Não obstante a discussão que se trava em torno dela, muitas vezes é empregada pelo Parquet como uma espécie de panaceia[85] geral, ou seja, de um remédio para todos os males, à míngua do medicamento processual apropriado.”[86]

Apesar da atribuição dada à teoria do domínio do fato como uma panaceia, insta ressaltar que a crítica apenas se faz perfeitamente cabível quando incide sobre a equivocada aplicação da mesma, não devendo recair, em hipótese alguma, sobre sua estrutura e essência.

Neste esmero, é observado que aqueles que se socorrem das lições de Claus Roxin[87], em muitos casos, têm interesses escusos de ganho de causa e as utilizam erroneamente, diante da alta complexidade teórica que apresentam, em desconhecimento típico sobre sua composição. Portanto, é certo que somente por consequência desta malferida aplicação pode a teoria do domínio do fato ser considerada como o famigerado remédio para todos os males.

Conforme já repisado neste trabalho, a configuração da autoria mediante o domínio sobre os fatos criminosos exige que se precedam, ao contrário de uma panaceia, provas concretas[88] para seu adequado enquadramento. Assim, faz-se imprescindível que se comprove, no domínio da organização, a emissão da ordem por parte do sujeito de trás, tal como a execução do plano comum pelos coautores, no domínio funcional do fato, além, por óbvio, do preenchimento dos demais requisitos inerentes a cada forma de domínio, como, por exemplo, a fungibilidade dos executores diretos naquela.

É certo que as situações exaustivamente tratadas por Roxin são desdobramentos da responsabilidade, o que por si não dispensam jamais a prova da ordem emanada[89], bem como de que as comissões no caso mensalão teriam realmente sido engendradas pelo ex-ministro chefe da Casa Civil, José Dirceu.

Somada à incipiência de tais aplicadores quanto à teoria, em relação à imprescindibilidade do ônus probandi, a má acepção se estende também à sua finalidade teórica, haja vista que a construção roxiniana tem cunho de subsidiar a qualificação de um sujeito como autor, não sendo capaz – e mormente devendo fazê-lo – de intervir no que diz respeito à presunção de culpabilidade.

Nesta seara, é de reprovável caráter manter-se inerte diante de afirmações como as do jurista Ives Gandra[90], para quem o princípio do in dubio pro reo e o domínio do fato seriam incompatíveis. Como discutido, é de patente desconhecimento acerca da finalidade e das classificações desenvolvidas no bojo da teoria do domínio do fato entendê-las de modo a invectivar conclusões desfavoráveis ao imputado, quando diante da existência duvidosa do acontecer delitivo.

Conquanto o desacerto acima, Gandra[91] tece também que “[...] a teoria veio pela metade [...]”, o que, se bem compreendida menção, somente reforça a ideia de que o compilado teórico roxiniano não teria incidido com propriedade sobre todos os casos da ação penal n°. 470, não pelo conteúdo em si, mas verdadeiramente – e, aqui, em constatação diametralmente oposta a que encerra o entendimento do doutrinador – pela sua incorreta aplicação.

Outro aspecto basilar a ser considerado consiste no fato de o direito penal moderno, em todas as suas consistentes vertentes doutrinárias, afastar a teoria da responsabilidade penal objetiva[92] e impor a culpabilidade como condição material indispensável para a sanção. Neste sentido, Welzel[93] preconiza que a ação humana é dotada de finalidade, avaliável, não podendo ser dada como fato meramente objetivo.

Por sua vez, Luigi Ferrajoli[94], encabeça o sistema do garantismo penal, que anseia pelo elemento subjetivo do crime e prima pela máxima do nulla actio sine culpa.[95] Através desta, caberia ao Estado tão somente uma intervenção mínima e em caráter estrito, no ímpeto de conceber uma limitação razoável ao abuso do poder estatal e resguardar o princípio da legalidade.

Desse modo, é inequívoca a necessidade de afastamento da responsabilidade penal objetiva, restando-se infundada qualquer construção que venha a disciplinar a teoria do domínio do fato como de não coadunação com os preceitos da culpabilidade.

3.4 A “[...] TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO NÃO BASTA [...] PARA EXONERAR O MINISTÉRIO PÚBLICO DO GRAVÍSSIMO ÔNUS DE COMPROVAR [...] A CULPABILIDADE DO RÉU [...]”

Em contrapartida à condenação do ex-ministro chefe da Casa Civil efetivada no voto do ministro Celso de Mello, este membro da Suprema Corte remonta ao garantismo penal quando ratifica que “a mera invocação da teoria do domínio do fato não basta, só por si, para exonerar o Ministério Público[96] do gravissímo ônus de comprovar, para além de qualquer dúvida razoável [...] a culpabilidade do réu [...]”.[97]

Nos estritos termos então citados, o ministro subscritor demonstra que a adoção da teoria do domínio do fato em nada exime a necessidade probatória para a configuração da autoria[98]. Entretanto, a percuciência de suas palavras acerca desse quesito não se mantém quando, mesmo ausentes elementos que comprovem suficientemente a atuação de Dirceu no esquema criminoso, faz uso da citada teoria e, por seu intermédio, o condena[99].

Diante das expostas distorções às quais foi submetida a concepção teórica roxiniana, pode-se evidenciar a existência de motivações sociológicas que transcendem não apenas o puro silogismo jurídico, mas o comprometimento racional do julgador. Manifestações advindas do STF durante toda a ação penal n°. 470 certificaram a imersão do respectivo julgamento num cenário transbordante de populismo penal[100], culminando na sobreposição do posicionamento moral e movido à paixão, em detrimento da análise técnica.

Bem assim, expõe Sérgio Habib[101] que o processo do mensalão marcou a história jurídico-penal do país e foi, verdadeiramente, relevante não devido à qualidade dos réus, mas ao conteúdo valorativo objeto de julgamento. Aprofunda o professor: “Quer parecer-nos que o Supremo Tribunal Federal, ao rechaçar os argumentos defensivos, o fez muito mais pelos aspectos morais do que pela importância jurídica que eles poderiam apresentar.”

Não assiste, no entanto, razão a Habib quando entende como vitoriosa a conquista representada pela condenação dos acusados, em face da menor relevância atribuída à técnica e às demandas jurídicas. A íntima aplicação do Direito a partir de noções estritamente morais e de anseios passionais culmina em indiscutível insegurança, tornando-se necessária a retomada de ensinamentos básicos do mundo jurídico, como a discussão Direito x Moral, sobre a qual elucidativamente coloca-se Miguel Reale[102]: “Não é exato, portanto, dizer que tudo o que se passa no mundo jurídico seja ditado por motivos de ordem moral. [...] Há, portanto, um campo da Moral que não se confunde com o campo jurídico. O Direito, infelizmente, tutela muita coisa que não é moral. Embora possa provocar nossa revolta, tal fato não pode ficar no esquecimento. [...] Há, pois, que distinguir um campo de Direito que, se não é imoral, é pelo menos amoral, o que induz a representar o Direito e a Moral como dois círculos secantes.”

Analisa-se, então, que a forte emoção regente da mencionada ação penal gera não apenas prejuízos dogmáticos, mas também consequências fáticas irretratáveis, uma vez que lida com um dos maiores bens tutelados, a liberdade humana. Logo, é devido recordar que nem sempre o Direito pressupõe a Moral, existindo inclusive um resíduo de imoralidade por ele abarcado. Dessa forma, em que pese seja consubstanciada a Dirceu determinada imoralidade, não é permitido ao Direito se valer de noções cegas para condená-lo, diante da insuficiência de provas.

Neste ínterim, Paulo Moreira Leite[103] traz declarações atribuídas ao ministro Ricardo Lewandowski que confirmam ter o STF sido efetivamente acuado pela imprensa, julgando o mensalão sob forte pressão, ainda que diante da ausência de comprovação das acusações.[104] De fato, tais constatações preocupam e revelam uma projeção ofuscante da realidade processual penal no Brasil.

Decisões desprovidas de plena independência pelo Judiciário afrontam o princípio do juiz natural e colidem com as garantias constitucionais[105] e [106]. Também assim, trazem irônica insegurança à sociedade, sobre a qual, de fato, recairão as mazelas ensejadas por seu próprio clamor condenatório incondicional.

É sabido que o princípio do livre convencimento do juiz é sempre motivado e não perime a previsão constitucional[107] de fundamentação, também, na apreciação das provas. As razões que resultam na solução da lide não podem ser meramente indicativas e abertas, mas pressupõem um raciocínio jurídico que trave liame coeso com os elementos probatórios constatados, de maneira que aquilo que não é palpável em provas não pode ser dado como crível.

Em antítese às críticas aqui abalizadas sobre o modus julgandi do Supremo Tribunal Federal, há quem defenda a condenação de José Dirceu sob a haste do aclamado ativismo judicial, o qual pode ser entendido como a atuação proativa no exercício jurisdicional do Estado a fim de dirimir as controvérsias existentes e dar maior concretude aos preceitos constitucionais.

À primeira vista, tal comportamento contundente compreende um leque de condutas e ações, dentre as quais, a adoção de teorias inovadoras para fundamentações decisórias, perpassando por imposições do poder judiciário que demandem políticas públicas por parte dos poderes executivo e legislativo, na busca incessante de garantia das normas insculpidas na Carta Maior.

Por outro lado, o ativismo judicial resvala nas próprias garantias constitucionais e o ímpeto do Judiciário pode vir a fragilizar a ciência jurídica. É apto a atuar, assim, deturpando teorias sedimentadas, pulverizando a norma expressa, ferindo o princípio da autonomia dos poderes e, finalmente, formando uma jurisprudência cada vez menos uniforme.

Neste viés, o atual ministro do STF Luís Roberto Barroso[108] traz críticas ao crescente ativismo judicial, quais sejam, o risco para a legitimidade democrática[109], o risco de politização da Justiça[110] e a limitação da capacidade institucional do Judiciário.[111]

Uma vez desnudado, afirma-se que o ativismo, quando bem empregado, não se constitui em bandeira para condenar com base em meras ilações e sob o manto do populismo midiático. Deste modo, em se atendo à concretização de princípios estritamente constitucionais, passa ao largo das constatações contrárias às fundamentadas no presente trabalho, prezando pela liberdade e afastando quaisquer de suas restrições arbitrárias.

3.5 TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO: deliberadamente cega?

O ministro Celso de Mello, segundo o disposto no informativo nº. 677 do Supremo Tribunal Federal, “No tocante ao crime de lavagem de dinheiro, observou possível sua configuração mediante dolo eventual, notadamente no que pertine ao caput do art. 1º da referida norma[112], e cujo reconhecimento apoiar-se-ia no denominado critério da teoria da cegueira deliberada ou da ignorância deliberada, em que o agente fingiria não perceber determinada situação de ilicitude para, a partir daí, alcançar a vantagem prometida.”[113]

No mesmo sentido deu prosseguimento no informativo n°. 684, STF, quando “[...] admitiu a possibilidade de configuração do crime de lavagem de valores mediante dolo eventual, com apoio na teoria da cegueira deliberada, em que o agente fingiria não perceber determinada situação de ilicitude para, a partir daí, alcançar a vantagem pretendida.”

Não obstante o emprego da teoria da cegueira deliberada, também conhecida como teoria do avestruz, ter se dado no concernente ao delito de lavagem de capitais[114] – e, portanto, não específica e expressamente sobre os crimes imputados a Dirceu – a sua aplicação por parte da Excelsa Corte no bojo da ação penal nº. 470 requer atenção e convoca uma análise correlata.

Restando-se evidenciada não apenas pelo aludido ministro, mas também nos votos de Carlos Ayres Britto[115], Rosa Weber[116] e Luiz Fux[117], a cegueira deliberada apresenta raízes em consolidada jurisprudência estadunidense, sendo lá designada como willful blindness ou ostrich instructions e tornando-se mundialmente reconhecida quando a Suprema Corte norte-americana julgou o caso In re Aimster Copyright Litigation.[118]

O objeto do aludido litígio versava sobre a violação de direitos autorais, em cuja decisão, o órgão julgador condenou o acusado e afastou a alegação de que seu sistema criptografado para a disponibilização de músicas o impedia de ter conhecimento específico de quais arquivos eram baixados. Entendendo que optou conscientemente pela indiferença diante dos fatos, foi rechaçado o argumento de sua ignorância quanto à violação autoral em tutela.

A teoria em comento encontra-se insculpida no Model Penal Code – MPC, em sua seção 2.02, elaborada pelo Instituto de Direito Americano – American Law Institute. Nesse sentido, sua livre tradução dispõe: “2.02 Requisitos gerais da culpabilidade. [...] (7) Requisito do conhecimento satisfeito pelo conhecimento da alta probabilidade. Quando conhecedor da existência de um fato particular que seja elemento de uma ofensa, de modo que tal conhecimento se traduza na consciência da pessoa da alta probabilidade dessa existência, ao menos que ela realmente acredite que aquilo não exista.”[119]

O intuito maior presente na teoria do avestruz é evitar que aqueles submersos propositadamente numa situação de desconhecimento diante de um delito sejam cobertos pelo manto da impunidade. Crimes envolvendo lavagem de dinheiro, violação de direitos autorais, tráfico de drogas e receptação são exemplos sobre os quais se debruça mais comumente a cegueira deliberada, como vetor para uma possível condenação.

Entrementes, até mesmo os Estados Unidos[120] já têm requerido, para a adoção de tal teoria, três requisitos básicos, conforme pontuou a ministra Rosa Weber à folha 1.273 do acórdão. O primeiro consiste na alta probabilidade de que o objeto envolvido tenha origem criminosa, ao passo que a segunda exigência reside na opção consciente de se manter inerte e alheio ao conhecimento desse aspecto criminoso. O terceiro requisito, por sua vez, é a existência da real possibilidade de conhecimento da verdade, a direcionar-se, portanto, a aqueles que dotam de meios para dimensionar suas ações.

Nesse contexto, objetiva-se a punição dos que se escondem sob o véu do desconhecimento do ato ilícito e, miticamente como avestruzes, enterram suas faces sob o solo, de modo a não se depararem com a prática delituosa que se apresenta.  Assim, a teoria da cegueira deliberada ganhou força no Direito comparado e foi, inclusive no Brasil, vetor destinado a condenar José Elizomarte Fernandes Vieira e Francisco Dermival Fernandes Vieira no caso popularmente conhecido como Assalto ao Banco Central de Fortaleza/CE.

Em processo de nº. 2005.81.00.014586-0[121], os irmãos Fernandes Vieira, proprietários da revenda Brilhe Car, foram julgados por comercializarem onze veículos mediante contraprestação em cédulas de R$ 50,00, sendo seus destinatários finais os autores do mencionado furto de 164,7 milhões de reais ao Banco Central. O juiz da 11ª vara federal do Ceará, Danilo Fontenele Sampaio, os condenou a três anos de prisão, além de multa no montante de 380 mil reais.

Cumpre salientar, todavia, que a willful blindness doctrine alarga demasiadamente o espectro de subjetivismo penal, considerando suficiente a assunção do risco, em que pese não se almeje o resultado (dolo eventual), o que, frise-se, na maioria das situações é de dificílima constatação.

Em consequência, resta violado de modo atroz o princípio do in dubio pro reo[122], fazendo prevalecer a pretensão punitiva estatal em face da garantia constitucional à liberdade. Nesse diapasão, Jesús-María Silva Sánchez[123] já pondera que “[...] la lógica de la prevención, incluso corregida por la lógica utilitarista de la intervención mínima, sigue caminos distintos de los de la lógica de las garantías individuales.”

Destarte, a teoria do avestruz tende à responsabilização penal objetiva, condenando irrestritamente e independentemente de demonstração dolosa ou culposa – esta, por óbvio, se prevista a modalidade do delito mediante culpa. Em consonância com este fundamento, ocasionou-se a reforma da sentença proferida pelo juízo de primeiro grau[124] e a absolvição dos citados réus do assalto ao BACEN, pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região, na apelação criminal nº. 5.520-CE.

Questões como a imposição de uma medida exata de consciência, a ser cobrada para a configuração do delito, tornam a teoria da cegueira deliberada perigosamente considerada, sendo-lhe direcionadas críticas bastante contundentes, compartilhadas até mesmo por juristas norte-americanos. Em livre tradução, Douglas Husak[125] assevera que: “Se pretendida como definição de ignorância deliberada, a respectiva previsão do Model Penal Code é defeituosa numa quantidade de aspectos. [...] não são todos os casos em que o réu pareceria estar deliberadamente ignorante ao pedido de ‘conscientização da alta probabilidade’ de ‘existência de um fato particular’ […]”

Dentre os demais autores estadunidenses que apreciam desfavoravelmente a disseminada aplicação da teoria, Kaenel[126] afirma que equalizá-la ao conhecimento real dá ensejo a grande problemática, uma vez que nem sempre estes planos são intercambiáveis, o que acaba por dilatar os limites da discricionariedade judicial e ferir o direito constitucional do devido processo legal.

Pondera-se, ainda, que na busca pelo conhecimento subjetivo do réu, o julgador é compelido inevitavelmente a imposições objetivas, aumentando sua esfera de poder, haja vista que o estado mental da cegueira deliberada possui características híbridas, produto não somente do conhecimento, mas também da inconsciência.

O dilema interpretativo que se monta para tornar-se possível a teoria em tela é bastante confuso e complexo, resultando numa cadeia de inferências duvidosas que, ainda segundo Kaenel[127], podem diluir o direito penal. Em vernáculo: “Juízes e jurados ficam sem escolha senão impor ao menos certo grau de objetividade no alcance da vontade do réu. Essa indeterminação permite uma interação solta entre os planos objetivo e subjetivo em que o buscador do fato possa encontrar ou não algum desejo de resultado ao caso dado.”

Feitas as devidas considerações acerca da teoria do avestruz, é imperioso estabelecer uma ponte com a teoria do domínio do fato, cerne do presente artigo. Para tanto, verifica-se que a adoção desta sistematização teórica pelos ministros do Supremo Tribunal Federal procedeu-se como se deliberadamente cega fosse. Isso porque, conforme explanado nas demais subseções deste artigo, o domínio – ora da vontade, por intermédio do aparato organizado de poder, ora funcional – atribuído a José Dirceu funcionou como uma fórmula mágica, capaz de configurar a autoria, ainda que num cenário de escassez probatória.

Por conseguinte, a teoria do domínio do fato, haja vista que fora aplicada em distorção dos moldes originais e submersamente ao que se entende por responsabilidade penal objetiva, tornou-se igualmente perigosa.[128] À vista disso, não há alternativas possíveis senão, sobre ela, se aplicar as mesmas críticas formuladas à teoria da cegueira deliberada.

Acoplando-se os casos de desconhecimento intencional dos elementos típicos ao conceito de dolo, se estaria a colocar num mesmo patamar o que Bottini[129] aduz por comportamentos normativa e ontologicamente distintos. Seriam igualmente dolosas as condutas perpetradas por quem efetivamente desejava o resultado e aquelas em que sequer apresentou-se ciência do risco, uma vez que buscou óbices à desconstrução de sua ignorância. Diante disso, o mesmo autor observa que “Ainda que ambos sejam reprováveis, caracterizar os dois da mesma forma sobrecarrega o instituto do dolo e afeta a proporcionalidade na aplicação da norma penal.”[130]

Com efeito, não apenas decisões pautadas na teoria do avestruz ou na equivocada utilização da teoria do domínio do fato, mas também diplomas vigentes no Brasil que possibilitem a aplicação de uma responsabilidade penal objetiva devem ser palco de críticas, como ocorre com a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional e contra a Corrupção. A primeira foi ratificada junto à Secretaria Geral da ONU em 2004 e promulgada pelo decreto 5.015/2004[131], cujos artigos 5º e 6º prevêem a inferência do conhecimento e da intenção do agente mediante critérios objetivos. A segunda, por sua vez, foi ratificada em 2005 e promulgada pelo decreto 5.687/2006, dispondo o mesmo em seu artigo 28. Transcreve-se: “Artigo 28 – Conhecimento, intenção e propósito como elementos de um delito – O conhecimento, a intenção ou o propósito que se requerem como elementos de um delito qualificado de acordo com a presente Convenção poderão inferir-se de circunstâncias fáticas objetivas”.

Diante de todo o exposto, apesar da teoria da cegueira deliberada ser empregada ainda de forma bastante incipiente em solos pátrios, bem como inexistentes posicionamentos conclusivos do Superior Tribunal de Justiça e do próprio Supremo Tribunal Federal, cabe à academia submetê-la a aprofundadas discussões. Apenas assim se fará factível a necessidade de seu afastamento, tal qual é devido quando em se tratando da aplicação errônea da teoria do domínio do fato.

Ratifique-se, uma vez mais, que a teoria arquitetada por Claus Roxin, não tem o fito de condenar por meras presunções e nem mesmo o condão de afastar a imprescindibilidade da prova relativa à culpa. Não se trata, pois, de uma construção processual. Como bem esclarece Greco e Leite[132], a teoria “[...] não condena quem, sem ela, seria absolvido; ela não facilita, e sim dificulta condenações. Sempre que for possível condenar alguém com a teoria do domínio do fato, será possível condenar sem ela.”

Sobre a autora
Larissa Gomes Ucha

Advogada. Pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho. Contribuinte do site JusNavigandi.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

UCHA, Larissa Gomes. O Supremo Tribunal Federal e a teoria do domínio do fato:: retomada técnica da Ação Penal 470. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4723, 6 jun. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/49207. Acesso em: 23 dez. 2024.

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