RESUMO: Trata-se de estudo acerca da adoção da teoria do domínio do fato na ação penal nº. 470, alcunhada de mensalão, apresentando como amostra a parcela do processo relativa ao ex-ministro chefe da Casa Civil, José Dirceu. Tem-se como principal referencial teórico Claus Roxin, sistematizador ímpar da aludida teoria, que também é abordada conforme as lições de Hans Welzel. Analisam-se as diferentes expressões do domínio do fato, versando sobre o domínio da ação, o domínio funcional do fato e o domínio da vontade, com maiores esclarecimentos quanto ao domínio da organização. Desvirtuando-lhe em essência e estrutura, o STF emprega a respectiva teoria de modo a assinalar patentes distorções e ensejar íntimas correlações com a teoria da cegueira deliberada, resultando numa infesta aproximação da responsabilidade penal objetiva.
Palavras–chave: Teoria do domínio do fato. Mensalão. Domínio da organização. Ação penal nº. 470. José Dirceu.
SUMÁRIO:1. Introdução – 2. Teoria do domínio do fato: 2.1. A construção welzeliana; 2.2 A sistematização de Claus Roxin; 2.2.1 O domínio do fato sob o enfoque da ação; 2.2.2 O domínio do fato sob o enfoque da vontade; 2.2.3 O domínio da organização; 2.2.4 O domínio do fato sob o enfoque da contribuição relevante dentro de um plano global – 3. A prova da autoria e a teoria do domínio do fato: uma análise crítica do julgamento da ação penal nº. 470: 3.1 “O domínio funcional [...do] chefe do organograma delituoso.”; 3.2 “[...] José Dirceu tinha mesmo o domínio intelectual das ações [...]” versus “[...] domínio funcional do partido dos trabalhadores e [...] dos seus mais destacados dirigentes e próceres.”; 3.3 A teoria do domínio do fato como uma “panaceia geral”; 3.4 A “[...] teoria do domínio do fato não basta [...] para exonerar o ministério público do gravíssimo ônus de comprovar [...] a culpabilidade do réu [...]”; 3.5 Teoria do domínio do fato: deliberadamente cega? – 4. Conclusão.
1 INTRODUÇÃO
A temática da pesquisa que originou o presente artigo consiste na aplicação da teoria do domínio do fato no processo popularmente conhecido como Mensalão – ação penal nº. 470/MG –, objetivando-se a análise de sua adequação no caso em tela. Para tanto, foi selecionada como amostra a parte do processo concernente ao ex-ministro chefe da Casa Civil, José Dirceu.
No tocante ao principal referencial teórico adotado, tem-se Claus Roxin, estudioso alemão que sistematizou a teoria do domínio do fato e lhe conferiu os contornos atual e mundialmente conhecidos. Seus ensinamentos foram recorrentemente abordados no julgamento da aludida ação, ainda que de forma questionável.
A partir dos resultados obtidos no cotejamento da teoria do domínio do fato com os documentos constitutivos do referido processo, verifica-se que aquela foi empregada pelo Ministério Público e, posteriormente, pelos ministros do Supremo Tribunal Federal como condão caracterizador da autoria delitiva conferida a Dirceu, sobre o qual se delimita a abordagem deste estudo. Nesse passo, concluiu-se pela observância, nos dizeres do subscritor da exordial acusatória, bem como dos membros da Suprema Corte, de imprecisões terminológicas e inconsistências estruturais quanto à transposição de tal construção teórica ao plano fático do que se entendeu por mensalão.
Explanar-se-á a teoria do domínio do fato nos moldes contemplados pelo finalismo welzeliano e, mais aprofundada e detalhadamente, no entender de Roxin. A partir deste, serão apresentadas as diferentes expressões do domínio do fato, contemplando-o sob a perspectiva da ação, da vontade e da contribuição relevante dentro de um plano global.
Num último momento, são analisadas as distorções pelo Supremo ao aplicar a teoria do domínio do fato, correlacionando-a com a teoria da cegueira deliberada, assim como demonstrando sua inerente repercussão no cenário pátrio, política e juridicamente considerado.
2 TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO
Em sentidos bastante longínquos ao que se conhece hoje, a concepção de domínio do fato foi exposta por diversos autores no decorrer da história, cuja empregabilidade se deu por razões igualmente diversas em suas respectivas construções teóricas.
Em 1915, foi Hegler[1] quem apontou, pela primeira vez, tal conceito, no desenvolvimento da teoria da culpabilidade. Para ele, apenas quem detém o domínio do fato age culpavelmente, ainda que tal domínio se revele na imprudência de não evitar o resultado quando assim esperado fosse. Em que pese não tenha adotado o domínio do fato para a conceituação da autoria, foi esta doutrina de relevante contribuição, sobretudo para o entendimento atual da autoria mediata, inexistindo tal domínio na figura do indivíduo instrumentalmente utilizado.
Hermann Bruns[2], por sua vez, em 1932, utilizou tal expressão de acordo com a teoria da adequação. Considerar-se-ia como autor aquele que, dolosa ou culposamente, revelasse a possibilidade de dominar o fato, ou seja, agisse propiciamente à sua ocorrência. Insta observar que, em verdade, não logra êxito tal pensamento quando da distinção entre as modalidades de participação lato sensu, haja vista que quaisquer delas são adequadamente capazes de alcançar o resultado.
No ano de 1935, subsequentemente e ainda independentemente das teorias já expostas, incumbiu-se Weber[3] da exposição do domínio do fato como fundamentação para a teoria subjetiva da participação. Segundo ele, a autoria pressupõe a vontade de dominar o fato como próprio, não elucidando efetivamente em que consiste o mencionado conceito.
Em sentido diverso, Lobe[4], em 1933, tece críticas à vontade de agir como autor, elegendo como essencial o animus domini, a ser verificado na execução do fato sob esse domínio, respeitados, pois, critérios subjetivos e objetivos para tanto. Através de tal concepção, tão pouco lembrada quando abordada a presente temática, é que se formulou, ainda que incipientemente, a ideia de domínio do fato, diferenciando a participação da autoria exatamente pela verificação do domínio da ação executiva direcionada ao resultado mediante uma vontade própria.
Já Eberhard Schmidt[5] em 1936, apresenta o domínio do fato dentro da ideia de dever. Conforme seu entendimento, vigora o conceito extensivo de autor, consistente naquele que, dada sua posição de dever, atua conscientemente como detentor de tal domínio.
Por fim, cumpre apontar a doutrina de Welzel[6] , a quem se atribui a conceituação do domínio do fato de forma sólida, sem abster-se, todavia, de conferir a devida relevância a inúmeros outros trabalhos, como os de Maurach[7], Gallas[8], Lange[9], Niese[10], Sax[11], Busch[12], Less[13] e Jescheck[14]. A partir daquela concepção doutrinária, procedeu-se a evolução da aludida teoria para os moldes hodiernamente considerados pelo Direito, nos mais robustos centros de estudos penais em todo o mundo, cuja representatividade é conferida a Claus Roxin, sistematizador ímpar do domínio do fato na doutrina da autoria e figura central do presente artigo.
2.1 A CONSTRUÇÃO WELZELIANA
De forma clara e com inserção primaz na configuração da autoria, foi a expressão domínio do fato pioneiramente tratada por Hans Welzel, em 1939, quando do desenvolvimento da doutrina finalista da ação, segundo a qual todas as condutas humanas se dirigem de modo a perseguir determinado fim. Esta, glose-se, desloca o dolo e a culpa do terreno da culpabilidade e os integra ao tipo, o que, segundo Maurach[15], compõe a moderna estrutura do delito, que “[...] não só é sustentada pelos adeptos do conceito finalista da ação [...] como também por aquêles penalistas que, por princípio, se consideram ‘não finalistas’, tais como Bockelmann, Gallas e Eberhard Schmidt.”
Na constatação da autoria, segundo o autor citado, não é suficiente a verificação do domínio final do fato. Faz-se necessária, também, a demonstração de elementos objetivos e subjetivos, além da comissão mesma, nos crimes de mão própria.
No tocante aos critérios subjetivos, tem-se a intenção de se alcançar um propósito com a prática tipificada; a tendência especial da ação típica de alcançar o propósito em si, a exemplo da satisfação de lascívia disposta no artigo 218-A, CP; e os componentes especiais de ânimo descritos no tipo a demonstrar o desvalor social da conduta, projetando-se para além do dolo. No tocante aos últimos, infere-se que podem estes ser somente elementos do injusto ou também da culpabilidade, como se extrai, por exemplo, do motivo egoístico no crime de dano qualificado.
Welzel[16] aborda a autoria sob dois enfoques, do dolo e da culpa. No tocante ao primeiro, conceitua-se autor como aquele que possui o domínio finalista do fato, ou seja, o domínio consciente do fato destinado a determinado propósito, o que representa a característica geral da autoria, ainda que o tipo exija elementos pessoais – objetivos, como nos crimes próprios e nos crimes de intenção, ou subjetivos, como acima descritos. Dessa forma, partícipe seria quem contribuiu para a execução delituosa de outrem ou quem instigou outrem a decidir praticá-la, não demonstrando domínio, portanto, do fato.
Já no que tange ao autor culposo, resta-se apenas a análise da causação de um resultado que poderia ser evitado, razão pela qual qualquer contribuição causal evitável culminaria na configuração da autoria, não se fazendo possível a figura da participação, num cenário de inegável retomada ao conceito unitário de autor. Em sentido contrário, contudo, pauta-se a doutrina espanhola, que, conforme Mir Puig[17], aceita a participação em delitos culposos, de modo que “[...] a ‘participação dolosa’ em um fato requer o dolo do autor principal [...]”, enquanto “[...] para a ‘participação não dolosa’, em que o partícipe não quer o fato, não é preciso, entretanto, o dolo do autor; cabe participação imprudente em um fato imprudente.”
Tecendo considerações acerca do autor mediato, Welzel[18] apresenta duas de suas hipóteses elementares, a saber, aquela em que o terceiro, instrumento para a prática delituosa, não atende às características objetivas e/ou subjetivas pessoais do autor, sendo, dessa maneira, mero ajudante, bem como aquela em que há ausência de domínio final do fato pelo terceiro. Desde logo, constatada estaria a inviabilidade de se considerar a autoria mediata quando o sujeito atuante fosse igualmente autor, ainda que o autor de trás se servisse de erro de proibição decorrente do autor imediato.
Configurada estaria a autoria mediata, conforme o aludido jurista, quando o terceiro não atuasse com dolo, agindo com ou sem culpa; ou quando o terceiro atuasse finalisticamente, mas não de modo livre; ou quando o terceiro se tratasse de subordinado que atende, de boa-fé, a uma ordem antijurídica; ou, por fim, quando o terceiro se encontrasse em estado de necessidade por coação.[19] Neste, alerta o doutrinador sobre a punição do autor mediato pela lesão autoprovocada pelo terceiro, bem como o emprego de crianças ou enfermos mentais que, em que pese ajam aparentemente de modo livre e final, estejam a fazê-lo sem elemento volitivo próprio.
Nesse diapasão, Welzel[20] rechaça a designação da autoria unicamente pelo critério psicológico do animus auctoris, defendendo que este deve ser considerado apenas em concomitância ao domínio final e real do fato, conforme anteriormente explicitado.
A coautoria, por seu turno, como se trata de uma forma de autoria, exigiria o compartilhamento desse domínio do fato por mais de uma pessoa, o que se daria mediante a consciência recíproca da divisão do trabalho, numa só execução do delito. Dessa forma, em que pese o indivíduo aja apenas preparatoriamente ou como ajudante dos demais, pode ser ele considerado coautor, desde que detenha o referido domínio comum, observando-se que a mera cooperação sem o entendimento recíproco configuraria, em verdade, a autoria colateral, chamada pelo jurista de autoria secundária[21].
Consequentemente, em sendo hipótese de crimes de mão própria, deve cada coautor agir conforme o descrito no tipo, atendendo-se, por óbvio, às condições pessoais da autoria. Segundo ressalta o teórico, ausentes estas, estar-se-ia inequivocamente diante de partícipes.
O ensinamento de Welzel[22], já no que tange à participação, remonta sua dependência de um fato principal consumado ou tentado, a demonstrar seu caráter de acessoriedade. Neste viés, em evidente coerência está o artigo 31 do Código Penal vigente, ao dispor que “[...] o ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em contrário, não são puníveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado.”
A referida forma de concurso de pessoas, na visão proposta pelo então pensador de dispensa da culpabilidade, exige apenas a presença da antijuridicidade do fato e a tipicidade, ou seja, trata-se de uma acessoriedade limitada, independendo o partícipe da possibilidade de se imputar pessoalmente o fato ao autor – em contraponto à já discutida teoria da acessoriedade extrema, cujos fundamentos convergem para a teoria causal de integração do dolo à culpabilidade. Nesse sentido, Pierangeli[23] infere que optou o legislador penal brasileiro pela teoria da acessoriedade limitada.[24]
A participação stricto sensu é abordada pelo jurista nas formas de instigação e cumplicidade, bastando-se para ambas o dolo eventual de realização do delito, também dolosamente, por determinado autor. Se este, todavia, extrapola os limites do dolo comum, não responde o partícipe pelo excesso, mas tão somente pelo quantum estritamente influenciado ou fomentado, salvo nos resultados mais graves nos crimes de qualificação pelo resultado. Nesse sentido, dispõe o Código Penal, em seu art. 30, que “[...] não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime.”
A instigação é explicitada como influência psíquica e dolosa do partícipe para que o autor cometa dolosamente um ou mais delitos, independendo do meio adotado por este. Se não houve a realização total do crime influenciado ou a sua realização se deu autonomamente, se estaria diante de uma instigação tentada, impunível por só ser a participação penalmente relevante quando promover o fato principal, pois, em contrário, se estaria punindo apenas o ânimo. Seria ela tentada, ainda, quando em erro, o instigador crê incitar um agir doloso, mas se observa a ausência de dolo no comportamento do autor.
Já a cumplicidade é apresentada como prestação dolosa de ajuda a fomentar o partícipe a cometer dolosamente o crime, podendo consistir tal ajuda, também, numa contribuição de caráter psíquico, como um conselho ou como a omissão quando necessário agir. Cumpre, aqui, destacar o posicionamento de penalistas brasileiros[25] e [26], segundo os quais a ajuda prestada pelo cúmplice dota, em verdade, de caráter eminentemente material ou exteriorizado, como o fornecimento de ferramentas que, ainda que inutilizadas no ato delituoso, ofereçam uma contribuição – na opinião de Pierangeli[27], não necessariamente causal, mas facilitadora ou ratificadora – dolosa à conduta do autor.
Em se tratando de delitos de resultado, a mencionada contribuição, por conseguinte, só é assim considerada pelo jurista se colaborou causalmente para o resultado. Por fim, se o crime não foi realizado absolutamente ou o foi de modo autônomo, tem-se, também, a cumplicidade tentada, impunível conforme já esclarecido ao discorrer sobre a instigação.
Demonstra Welzel[28], ainda, a consideração mediata da participação, aduzindo que “[...] instigação à instigação é instigação mediada a fato. Cumplicidade na instigação, instigação à cumplicidade e cumplicidade na cumplicidade são casos de cumplicidade mediata a fato.” Se, contudo, mais de um modo de participação recair sobre a mesma ação de um mesmo indivíduo, os mais graves absorverão os mais leves.
Iniciando as considerações finais acerca do concurso de pessoas, o aludido especialista, em sua obra Direito Penal, expõe que, no que se refere às condições pessoais fundamentais à pena, basta ao autor atender às exigências do tipo, uma vez que a participação é concebida apenas acessoriamente. Já nas qualidades de aumento, atenuação ou afastamento de pena, aproveitam estas apenas a aqueles – partícipes ou autores – que efetivamente as detêm.
Com efeito, classifica o jurista, outra peculiar forma de participação, a que denomina de participação necessária. Refere-se, quanto a essa, aos crimes que apresentam, de acordo com sua natureza, a necessidade de uma coparticipação lato sensu de outros indivíduos com o autor, a exemplo do rufianismo, em que a prostituta exerceria a função de partícipe necessária. Tal concurso resta-se impune, não devendo transcender aos limites do tipo, sob o risco de, a depender do mesmo, vir a culminar numa forma de cumplicidade ou instigação e tornar-se, portanto, punível.
2.2 A SISTEMATIZAÇÃO DE CLAUS ROXIN
Dentre inúmeras outras ilustres contribuições ao Direito Penal, apresentou o influente jurista alemão Claus Roxin conceituação sistematizada da problemática acerca da autoria e da participação, cuidadosamente analisando, na parte inicial de sua monografia Autoría y domínio Del hecho em Derecho Penal, a metodologia que considera devida para a construção de tais critérios.
Demonstrado é o caráter indevido da adoção de unicamente um método para o melhor alcance dos conceitos de autor e partícipe, sendo imperiosa a realização de uma síntese dos pontos de vista teleológico e ontológico. Assim, assinala Roxin[29] a necessidade de afastamento dos conceitos secundário e extensivo de autor, bem como da sua consideração mediante critérios de merecimento de pena e perigosidade.
No que comporta ao conceito secundário, tem-se a caracterização da autoria pela exclusão dos que se enquadrarem como partícipes, o que, conforme o teórico, resta-se inadmissível, devendo procedê-la primariamente, haja vista a já explanada acessoriedade da participação stricto sensu.
Desviando do conceito extensivo de autor, é apresentada a sua contradição quando da consideração teleológica da equivalência de condições ao passo que coloca a cumplicidade e a indução como causas de atenuação de pena. Ainda, cumpre analisar a incompatibilidade de tal conceito com o disposto no mundo ôntico, ressaltando-se, também aqui, o caráter secundário de determinação da autoria, uma vez que se figuraria como autor apenas quando não fossem apontadas as atenuantes da indução e da cumplicidade.
Em contraponto ao conceito de autor pelo merecimento, lembra o jurista que a própria legislação determina, a priori, uma mesma pena a todos que concorrerem para a ação punível – verifique-se o supramencionado artigo 29, caput, do Código Penal brasileiro – não havendo efetivas razões para se conceber o autor como maior merecedor de pena.
Já no que tange à teoria da perigosidade, afere-se sua grande suscetibilidade a arbitrariedades, observando-se que, na autoria mediata, por exemplo, o homem de trás pode ser o mais perigoso, de forma a se afirmar a necessidade do estabelecimento, para o autor, de um conceito restritivo (portanto, não extensivo) e diferenciador (portanto, não unitário).[30]
Assim, sugerida é uma máxima descritiva, segundo a qual é a autoria formalmente verificada quando o indivíduo figurar no núcleo do acontecer típico em forma de ação. Conferida é, portanto, essência acessória à participação, estando o partícipe a se apoiar no âmago representado pelo autor.
Essa máxima da ocupação de papel central no acontecer típico se apresenta de três formas: mediante o domínio do fato (nos crimes comuns comissivos dolosos), “[...] pela violação de um dever especial (nos delitos próprios, que Roxin chama de delitos de dever) ou pelo elemento típico que exige a prática da conduta com as próprias mãos (nos delitos de mão própria).”[31]
A esse respeito, faz-se mister esclarecer, embora não vá o presente trabalho adentrar nessa questão, que, em que pese o domínio do fato constitua, segundo Roxin[32], o que melhor satisfaz a conceituação de autor, por ele não se nutrem anseios de utilização universal.[33] Isto porque o legislador, em determinados delitos, pauta a figura central da ação em parâmetros diversos, não sendo o domínio do fato o que atribuirá a qualidade de autor ao sujeito, como ocorre nos delitos de mão própria e naqueles chamados por Roxin de delitos de dever.[34]
Os delitos de dever[35] são o que se entende por delitos próprios (aqueles em que o sujeito ativo ou passivo deve dotar de qualidade especial) e omissivos impróprios (aqueles em que, dada a posição de garantidor, deve-se evitar o resultado). A qualidade especial exigida no tipo e a posição especial que se ocupa, respectivamente, convocam deveres, que, se violados, configuram a autoria de quem os detém. Portanto, se concorrem comissiva ou omissivamente para o acontecer causal – seja a contribuição considerável ou pouco relevante – e possuem a requerida qualidade, são autores, senão são apenas partícipes.
Já os delitos de mão própria são aqueles em que o sujeito deve, ele mesmo, praticar o descrito no tipo, não podendo se valer de outrem, de forma que inviável é a consideração de coautoria ou de autoria mediata. Para se enquadrar um delito na categoria de mão própria “Roxin propõe que sejam diferenciados aqui três grupos de delitos: os delitos de comportamento vinculado (nossa tradução de ‘verhaltensgebundeneDelikte’), em que o injusto repousa na reprovabilidade de um determinado modo de se comportar sem que seja necessária a comprovação de uma lesão a bem jurídico (exemplo do código alemão seria o incesto, § 173 StGB); os delitos de direito penal de autor (täterstrafrechtlicheDelikte), que elegem como ratio da punição um modo de condução de vida, como o rufianismo, ainda existente em nosso Código Penal (art. 230); e os delitos de infração de um dever personalíssimo, como o delito de falso testemunho (art. 342). Os dois primeiros grupos são corpos estranhos no moderno direito penal e, em verdade, apenas o último grupo é de maior relevância”. [36]
Nos crimes comuns comissivos dolosos, por sua vez, o fundamento para a determinação da autoria é o domínio do fato. Este se demonstra conforme se doma dolosamente o acontecer causal, não devendo, contudo, ser entendido como a capacidade de se evitar o fato. Se assim o fosse, haveria uma aproximação dos delitos omissivos, onde não há domínio do fato, pois somente aquele que atua positivamente pode, de fato, dominar algo.
O conceito de domínio do fato deve ser conceituado, segundo Roxin[37], por uma fórmula geral, de modo a atender a todas as hipóteses de autoria desses delitos apresentadas no caso concreto. Para tanto, rechaçada é a utilização de um conceito indeterminado, que traria extremada insegurança jurídica, bem como a conceituação mediante padrões pré-fixados, uma vez que não se tem, aqui, a exatidão das ciências naturais, transcendendo a um juízo de mera subsunção, sobretudo por tratar-se de uma gama diversificada de casos, dos quais muitos são ainda desconhecidos.
Sugere, portanto, o autor que se utilize um conceito aberto de domínio do fato, que partiria de um procedimento descritivo, mas não exaustivo, de seus elementos, de forma a se obter um conceito geral, regado por princípios orientadores. Tal conceito expressa a autoria restritivamente, de forma que é autor aquele que age tipicamente, enquanto o partícipe tem sua punição vinculada a outra manifestação da lei, a saber, a uma causa de extensão da punibilidade. Assim, o conceito de autor mediante o domínio ocupa, no sistema, o âmbito do injusto típico – ao qual pertence o dolo, mas concebido por Roxin em sentido diverso do proposto pela ação finalista de Welzel – não dependendo, pois, da culpabilidade.
Para tanto, analisa-se a teoria do domínio do fato, metodologicamente, a partir de três perspectivas. São elas: o domínio da ação, o domínio da vontade e o domínio funcional do fato.
2.2.1 O domínio do fato sob o enfoque da ação
Claus Roxin[38] apresenta, inicialmente, o domínio da ação como concernente àquele que, em qualquer hipótese, realiza, de mão própria, livre e dolosamente, todo o disposto no tipo penal.
Observa o jurista germânico, todavia, que, em que pese dote de relevância a característica dolosa da ação, não se pode seguir uma teoria subjetiva, uma vez que não é a vontade de dominar o fato que determina a autoria – ressalte-se que o partícipe também pode possuí-la. O determinante seria, objetivamente, a ação típica completa de própria mão, “[...] ainda que aja a pedido ou a mando de outrem, ou mesmo em erro de proibição inevitável determinado por um terceiro [...]”[39] quando então permanecerá autor, em que pese abarcado por uma exculpante.
Assim, contrariamente a Welzel[40], posiciona-se Roxin[41] pela configuração do domínio do fato e, portanto, da autoria mesmo nas hipóteses em que aquele que realiza o tipo de mão própria encontra-se em estado de necessidade por coação. Isto porque, independentemente da punição, se faz perfeitamente possível o domínio da situação pelo coagido, uma vez que a coação pode vir a tornar a sua atividade ainda mais robusta, como exemplifica o jurista em “[...] el caso en que alguien, para salvar de la muerte a su hijo, secuestrado por unos gángsteres, comete un asesinato por orden de los secuestradores, o un robô en una joyería.”[42]
Discutida é, ainda, a possibilidade de se considerar autor aquele que realiza apenas um ou alguns elementos do tipo, mas não a sua completude. Neste passo, remete-se a Welzel[43] e Maurach[44] como doutrinadores que entendem pela suficiência da realização de algum elemento do tipo, enquanto Mezger[45] e Schönke-Schröder[46] exigem que se realizem todos os elementos constantes no tipo. Nesse mérito, entende Roxin que não é possível extrair da vontade do legislador a eleição de um único elemento típico como o bastante para a verificação da autoria. Assim, autor é quem realiza a ação executiva descrita no tipo, sendo possível que o executor de apenas um elemento típico seja coautor, a depender do caso concreto, conforme se abordará mais adiante.
2.2.2 O domínio do fato sob o enfoque da vontade
Existem hipóteses em que o autor não é aquele que realiza a ação executiva, verificando-se o domínio do fato pelo sujeito de trás sobre a vontade regente do executor direto. Tais situações podem ocorrer de inúmeras formas, apontando Roxin[47] a utilização dolosa de um agente sem liberdade, de um agente em erro, de um agente inferior não só intelectualmente, mas também psiquicamente, como menores e enfermos mentais, bem como de um agente subordinado mediante um aparato organizado de poder. Assim, analisa-se a autoria mediata em três vieses: da coação, do erro e do domínio da organização.
Nesse passo, não se pode olvidar a incorreção de se entender o domínio da vontade mediante parâmetros psicológicos, haja vista que isso aproximaria o Direito de uma ciência natural e, portanto, tendente a inflexibilidades. Assim, sugere que sua concepção seja pautada em critérios legais, de forma que se verifique o domínio da vontade não somente quando inexista uma decisão autônoma, mas também quando o próprio Direito assim optar, dando espaço à atuação judicial.
Sob a perspectiva da coação, o domínio do fato presente no autor mediato se dá quando o executor direto não possui liberdade para decidir. Nesse caso, não se trata de qualquer forma de influência volitiva despendida a ele, mas de algo dotado de efetiva intensidade, inclusive porque tanto o cúmplice quanto o indutor tem o poder de exercer alguma influência. Nesse sentido dispõe o Código Penal, em seu art. 22, que “Se o fato é cometido sob coação irresistível ou em estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da coação ou da ordem.”
O executor, entretanto, em que pese não aja livremente, tem ciência do que lhe ocorre, assinalando Roxin[48] que só é possível se estender o domínio do fato ao coator, nesse caso, devido à opção legislativa em atribuir-lhe a responsabilidade – evoca-se o que o doutrinador chama de princípio da responsabilidade.
Segundo o jurista, no estado de necessidade por coação, o sujeito coator é autor mediato, pois é ele quem insere o executor na situação de perigo, da qual este se livraria apenas pelo cometimento de determinado delito. Contudo, no que se tem por estado de necessidade simples – em que não se encontra coagido por alguém, mas devido a fatores externos – não há, em primeira análise, domínio da vontade por parte do sujeito de trás, em que pese algum auxílio prestado por ele venha a antecipar sua ação.
Logo, sendo o estado de necessidade imposto por circunstâncias externas, é possível que se observe a figura da participação, a se utilizar desse estado já instalado. Tal entendimento coincide com o de Welzel[49], segundo o qual, em se tratando de estado de necessidade simples, aquele que se aproveita da situação para alcançar um fim é partícipe e não autor mediato. Entretanto, Roxin[50] diverge de Welzel na hipótese em que o sujeito se aproveita do estado de necessidade existente, mas o modifica de modo a fornecer meios para aquele que está em perigo praticar o fato criminoso. Segundo ele, “Modificando la situación externa, mediante lo cual se procura una preponderância con respecto al otro, el sujeto de detrás hace las veces del destino [...]”, devendo ser entendido como titular do domínio do fato em autoria mediata.[51]
Ao impor, dolosamente, ao executor um conflito moral que o faça agir em prol de determinado bem jurídico, mas em desfavor de outro, está configurado o estado de necessidade exculpante supralegal no Direito alemão (teoria diferenciadora), enquanto no Brasil (teoria unitária)[52], respeitado o artigo 24, CP, já se daria a justificação e, assim, a exclusão da ilicitude. Dessa sorte, conforme já explanado, o domínio da vontade do sujeito de trás é concebido a partir da não responsabilização penal do executor por uma escolha do legislador – já que não agiu como real instrumento – transferindo à figura daquele o papel central na realização do fato.
Se o sujeito de trás, por sua vez, influenciar psiquicamente (semelhantemente à coação) o executor e este não estiver abarcado sequer por uma excludente de culpabilidade, entende o jurista alemão por estar configurada apenas a participação. Segundo ele, o legislador entendeu que a decisão última permaneceria nas mãos do executor, tal como aduz Welzel[53], que inadmite a autoria mediata na aludida situação, ainda que por critérios distintos. Para este, conforme anteriormente exposto, deve o executor direto tratar-se apenas de um instrumento, ao passo que Roxin[54] considera como já abordado, além da ausência de decisão autônoma, hipóteses legalmente eleitas para tanto, o que, nas situações apenas análogas ao estado de necessidade, não é possível se observar.
No que tange ao – já abordado por Welzel[55] – estado de necessidade coativo para a autolesão, a problemática é enfrentada por Roxin[56] à ótica da participação no suicídio. Todavia, dada a tipificação pelo ordenamento jurídico-penal brasileiro do crime de induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, cabe apenas a apresentação de seu posicionamento, que daria azo à abordagem quanto à autolesão corporal. Infere-se que, segundo o último doutrinador, se verifica o domínio da vontade do sujeito de trás apenas quando tratar-se de estado de necessidade por coação.
Outra questão polêmica entre os adotantes da teoria do domínio do fato reside na autoria mediata por um sujeito que, sem efetiva coação, determina a outrem o ataque a um bem penal de terceiro para que este último, em resposta, o lesione justificadamente. Assinala Roxin[57] ser possível ao sujeito de trás agir antijuridicamente mesmo que a execução do resultado se dê em licitude. Nesse aspecto, faz-se relevante apontar o pensamento wezeliano, que exige o domínio da situação justificante pelo indivíduo de trás para, somente assim, se verificar o domínio do fato.
Sob a perspectiva do erro, por sua vez, o domínio do fato se dá quando o executor tem seu processo de formação da vontade viciado, pautando-se em algo irreal. Ainda que o erro não venha a excluir ou reduzir o dolo ou a culpabilidade – a exemplo do erro sobre a pessoa – tem-se a autoria mediata, pois possui o sujeito de trás um maior grau de domínio da situação, como se seguirá explicando. Isso, no posicionamento roxiniano, frise-se, é perfeitamente possível ainda que configurada a autoria imediata do executor.
Em havendo erro de proibição (art. 21, CP) inevitável por parte do executor e, assim, atuando este sem dolo ou culpa devido à articulação do sujeito de trás, cuja influência causal sequer precisa dotar de caráter imprescindível ao feito delituoso, tem-se também autoria mediata. Numa situação em que alguém, consciente dos fatos, pede a outrem que aperte um botão para supostamente acender a luz e isso o faz ativar um explosivo e lesionar bens jurídicos penalmente tutelados, aquele dominou os fatores causais. Assim, apesar de o domínio não figurar sobre a pessoa do executor e ser inegavelmente inseguro de sucesso o plano traçado, Roxin[58] entende pela existência do domínio do fato nas mãos do sujeito de trás, sobretudo porque o atuante equipara-se, aqui, a qualquer causa não humana, agindo, segundo já havia apontado Welzel, de maneira não final e estando a autoria determinada pela fruição dolosa da ausência de dolo do executor.
Todavia, quando o executor age com culpa – inconsciente ou consciente – é inegável que seu papel seja essencial para se conceder o domínio do fato ao sujeito de trás, de forma que, em alguma medida, tem domínio sobre as circunstâncias, ainda que em sentido diverso do concebido pela teoria do domínio do fato (necessidade, ao menos, do dolo eventual). Desse modo, caso esta imprudência esteja tipificada, é possível enquadrar como autor não só o sujeito de trás (através da teoria do domínio do fato), mas também o executor culposo (através de critério diverso, a saber, uma opção legislativa), o que não desconstrói a autoria mediata ora verificada. Nas palavras de Roxin[59], “Bien es verdad que el legislador hace también responsable del resultado al ejecutor allí donde la imprudencia sea punible. Pero la imputación se basa en circunstancias que son irrelevantes para el dominio de la voluntad por parte del sujeto de detrás. [...] Así pues, podríamos ampliar el principio que estabelecíamos supra señalando que también aquel que, ante un ejecutor que actúa con imprudencia consciente, aporta una condición del resultado es autor mediato en todo caso.”
Com efeito, nos casos de erro, para a distinção entre autoria mediata ou participação do sujeito de trás, é imperioso verificar a supradeterminação que rege os fatos. Se o executor possui a ciência da probabilidade de alcançar o resultado e assume o risco tanto quanto o sujeito de trás, este é mero partícipe. Contudo, se o conhecimento acerca do curso causal reside em maior escala nesse sujeito não aparente, dada a situação de erro em que se encontra o executor, imerge-se numa discussão repleta de minúcias.
Para se verificar o devido enquadramento do sujeito de trás como autor mediato ou partícipe, nas situações de erro, Roxin[60] propõe que se conheça o domínio do fato em quatro graus.
Se cientes apenas das circunstâncias fáticas, são dominadores do fato de primeiro grau, enquanto os que conhecem a correspondência social de desvalor da conduta – antijuridicidade material, a saber, conceito aberto à valoração no caso concreto – detêm o domínio do fato de segundo grau. O terceiro nível consiste, por sua vez, na consciência da reprovabilidade da ação, como numa situação em que, por exemplo, alguém, erroneamente se vê em estado de necessidade e outrem, sabendo do erro, se aproveita para alcançar um fim criminoso. Por fim, o quarto grau de domínio do fato reside no conhecimento do sentido concreto da ação, o que se observa, por exemplo, no sujeito de trás que cria no executor uma situação de erro sobre a pessoa.
Em consequência, deve-se ter em mente que o erro de proibição inevitável do executor já dá ensejo à constatação da autoria mediata daquele, uma vez que sequer teria um domínio de segundo grau e, assim, haveria um “atuar cego”.
Tais pressupostos – relativos às situações de coação e erro – são, também, empregados para entender o domínio da vontade mediante a utilização de inimputáveis. Se a vontade do executor for formada através do domínio do sujeito de trás, observa-se uma redução do âmbito volitivo daquele, configurando-se autoria mediata. Nessa, também resultaria a hipótese em que a supradeterminação do sujeito de trás influi na compreensão do executor, seja dos fatos ou do desvalor da conduta, observando-se um âmbito intelectivo reduzido.
Nos casos de inimputabilidade, a opinião de Roxin diverge da de Welzel. Para este, conforme já explanado na subseção anterior, sejam enfermos mentais, crianças ou adolescentes, é possível constatar a autoria, desde que tenham vontade própria e ajam de maneira final. De encontro a tal posicionamento vai Roxin[61], que entende sempre pela autoria mediata no caso de crianças e, em sendo adolescentes, apenas quando estes não sejam penalmente responsáveis.[62]
Por fim, imperioso é ratificar que não se pode considerar a autoria mediata pelo simples fato de o executor ter agido sem dolo, sem consciência do injusto ou inimputavelmente. Deve-se, como já explanado, observar no sujeito de trás a ciência e o aproveitamento de tais condições para conduzir os fatos, senão (seja por desconhecimento ou erro sobre os requisitos da autoria) faz-se possível punir apenas por participação. Assim, em que pese pareça, à primeira vista, que estaria violada a acessoriedade da participação quando o executor agir de modo não finalístico, “[...] esto en nada cambia en que el sujeto de detrás coopera sin domínio del hecho a la realización del tipo.”[63], sendo este, portanto, partícipe.
2.2.3 O domínio da organização
O domínio da vontade, além dos formatos da coação e do erro, é percebido nas ordens proferidas na engrenagem de uma estrutura de poder organizada e dissociada do Direito “[...] que garanta a execução do comando, mesmo sem coação ou engano, uma vez que o aparato enquanto tal assegura a execução do fato.”[64].
A autoria mediata se reveste, aqui, do poder que detém o sujeito de trás, independentemente do grau que ocupe hierarquicamente, para comandar a execução criminosa por sujeitos (absolutamente responsáveis) inespecíficos e, portanto, passíveis de fungibilidade. Dessa maneira, esse domínio se vale não da exata pessoa que executa, mas do sistema que a cerca.
Conhecidos exemplos de tal forma de autoria são as atrozes manifestações do nacional-socialismo[65], bem como as organizações terroristas e as máfias, as quais, como notoriamente sabido, seguem caminho não percorrido pelo Direito. Suas estruturas de poder se valem da fácil substituição de um executor por outro para a garantia do resultado criminoso, de modo que se tem a total segurança de que a ordem será prontamente cumprida.
Desse modo, observa-se que a escolha de um sujeito determinado, cuja qualidade específica é imprescindível à execução, não configura a autoria mediata de quem o ordena. Inexistindo erro ou coação, tem-se apenas a figura da participação.
Faz-se mister salientar, todavia, que a autoria mediata do controlador da organização não exime a responsabilidade do executor imediato. Este possui o domínio da ação e age por seus próprios esforços, enquanto o sujeito de trás atua através do aparato de poder, de forma que ambos são autores, imediata e mediatamente.
Isto posto, não há espaço para a configuração de uma coautoria entre o que emana a ordem e os que, nas circunstâncias já descritas, a cumprem, uma vez que inexiste acordo comum ou divisão de tarefas entre eles. A autoria mediata dota de verticalidade, o que é claramente observado em tais estruturas de poder, ao passo que a coautoria é horizontal e, já assim, se demonstra incompatível.
No mesmo sentido, tem-se a inverosimilhança de se conceber a instigação nas hipóteses em comento, haja vista que, se assim o fosse, não se observaria a preponderância da vontade do autor de gabinete no curso causal.
Há, entretanto, de se ter em mente que, em ocasiões diversas da discutida e, assim, inexistentes os requisitos da autoria, nada impede que se configure a participação stricto sensu mesmo dentro de um aparato organizado de poder. Isso ocorre, por exemplo, nas condutas que não interferem no andamento e na organização do aparato, tais como as decorrentes de um sujeito sem poder de decisão, ainda que dê auxílio técnico para um plano (cumplicidade), “[...] assim como aquele que, de fora do aparato, denuncia um determinado grupo e causa na cúpula uma ideia de aniquilação, sem possuir qualquer influência no decorrer dos acontecimentos (instigador).”[66]
Por fim, cumpre observar a crítica de Roxin[67] no que tange à aplicação da teoria da autoria mediata pelo domínio da organização nos casos de empresas ou demais aparatos regidos pelo Direito. Nessas circunstâncias, não há espaço para se discutir a correção do cumprimento de ordens ilícitas, uma vez que, além de ser inescusável o desconhecimento da lei (art. 21, caput, CP), há leis orgânicas que expressamente vedam tal conduta, a exemplo do estatuto dos servidores públicos civis da União, que, em seu art. 116, IV, impõe como dever do servidor “[...] cumprir as ordens superiores, exceto quando manifestamente ilegais.”
2.2.4 O domínio do fato sob o enfoque da contribuição relevante dentro de um plano global
Autonomamente ao domínio da ação e ao domínio da vontade, tem-se ainda uma terceira expressão de domínio do fato, a saber, a coautoria. Nesta, há, ao menos, dois sujeitos, que demonstram uma mesma medida de domínio, através da sua atuação conjunta, em divisão do trabalho (domínio funcional do fato). Assim, respondem em imputação recíproca, uma vez que o domínio do fato de cada um está vinculado ao dos demais pelo acordo comum.
A contribuição causal de cada agente não se vincula aos limites dispostos no tipo, mas, segundo Roxin, devem integrar a fase executiva. Nesta, observa-se que, se dissociadas as condutas, não se alcançaria – ao menos não em conformidade com o plano comum – o resultado desejado, tendo em vista que “[...] cada individuo domina el acontecer global en cooperación con los demás.”[68] Para tanto, não se discute a motivação (nem mesmo se essa, em consequência do acordo, culminar na realização de tipos heterogêneos pelos coautores) ou o merecimento de pena de cada um, bem como não se exige que a contribuição dada tenha caráter exteriorizado ou se faça fisicamente presente no momento e local do fato. Logo, é possível considerar a coautoria até mesmo ao vigilante que, aparentemente, em nada contribui ao crime, desde que o atuar dele também seja parte integrante do acordo.
Se, todavia, apenas um dos agentes tem ciência da relação de colaboração estabelecida, este é autor mediato, assim como ocorre com aquele que comete excessos em relação ao quantum preestabelecido. Se, por outro lado, um dos agentes cometer um erro e, diante disso, agir em desacordo com o plano (como, por exemplo, no erro sobre a pessoa), também não seria coerente considerá-lo coautor, o que, entretanto, não ocorreria se todos os coautores incorressem num mesmo erro.
Em havendo um coexecutor sem culpabilidade, a configuração da autoria mediata não exclui a existência de uma coautoria, desde que o autor mediato atue como parte essencial do plano. É possível, ainda, a coautoria quando um sujeito é inserido posteriormente na execução do plano criminoso, o que, todavia, na opinião de Roxin[69], não significa ser cabível atribuir a ele as qualificantes que já se faziam presentes.
Na fase preparatória, por sua vez, cumpre observar inicialmente o fato de Welzel entender pela coautoria, desde que também haja resolução do sujeito no acordo comum. Contrariamente se pauta o posicionamento roxiniano, segundo o qual aquele doutrinador foi por demais subjetivo nesse aspecto e, como dito anteriormente, o domínio do fato só é considerado no ato executivo, pois a contribuição dada pelo preparador não tem o condão de dominar propriamente o acontecer causal, mas tão somente o psicológico dos executores, sendo possível apenas caracterizar a participação.
É por essa razão que não se faz possível, para Roxin[70], configurar ao chefe do bando que só determine e não atue nos atos executivos a coautoria. Nesse caso em especial, conforme mencionado na subseção 2.2.2, tem-se geralmente uma autoria mediata, seja pelo domínio da organização ou pela coação, desde que cumpridos, logicamente, os requisitos destes.