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Responsabilidade civil do Estado:

conseqüências da omissão em fiscalizar e coibir o transporte coletivo clandestino

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Agenda 01/07/1999 às 00:00

7 - A PESSOA FÍSICA E A CONCESSÃO DO SERVIÇO PÚBLICO DE TRANSPORTE COLETIVO DE PASSAGEIROS

Ao traçar as diretrizes que devem nortear as concessões e permissões de serviço público no Brasil, o art. 175 (inc. I do par. único) da Constituição diz que a lei instituirá "o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão".

Por outro lado, o inc. II do art. 2º da Lei 8.987/95 só permite outorgar concessão ou permissão de serviço público "a pessoa jurídica ou consórcio de empresas", excluindo-se a pessoa física, em virtude do caráter empresarial do instituto. Isso "significa dizer que, no sistema jurídico vigente, não pode a concessão ser contratada com pessoa física" (CARMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA, "Estudo sobre Concessões e Permissões de Serviço Público no Direito Brasileiro", Saraiva, 1996, pág. 52).

A regra da impossibilidade da outorga de concessão (ou permissão) de serviço público ainda mais se sobressai quando se cuida do transporte coletivo, pois , como leciona IVES GANDRA DA SILVA MARTINS, "a prestação de serviços públicos de transporte é de natureza relevante e implica custos elevados. A transferência de responsabilidade para terceiros pressupõe densidade econômica destes para, assumindo tal prestação, realizarem-na no interesse público e da administração e com rentabilidade suficiente para investimentos, manutenção de frotas e instalações adequadas, além de lucratividade razoável. Tal complexo de garantias pressupõe a segurança jurídica para quem presta serviços e para quem os recebe." ("A Licitação sobre Transportes na Constituição", in "Doutrina", ed. Instituto de Direito, 1996, pág. 182)


8 - OUTORGA DO SERVIÇO PÚBLICO MEDIANTE AUTORIZAÇÃO

O serviço público de transporte coletivo somente pode ser delegado à iniciativa privada por licitação, mediante "concessão ou permissão". É o que determina o do art. 175 da Constituição Federal, que não se refere à autorização como instrumento de formalização da outorga de serviço público (ao contrário de outros dispositivos, como, por exemplo, o do art. 21, inc. XII, que admite a delegação do serviço por mera autorização).

A lei 8.987/95 também não trata da autorização, somente fazendo referência à concessão e à permissão como instrumentos de outorga (no mesmo sentido é o Decreto n. 952, de 7.10.93, que dispõe sobre transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros).

A lição doutrinária também é no sentido da impossibilidade de delegação do serviço de transporte por mera autorização (cf. LÚCIA VALLE FIGUEIREDO, "Curso de Direito Administrativo", Malheiros, 2ª ed., 1995, pág. 71; CARMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA, ob. cit., pág. 176; MARÇAL JUSTEN FILHO, ob. cit., pág. 64; EROS ROBERTO GRAU, "Curso de Direito Administrativo", Malheiros, pág. 102).

Os que admitem a delegação por autorização advertem que somente pode ser utilizada para serviços eventuais, emergenciais, inconstantes, relativos a uma situação incomum, de caráter não-permanente.

É o caso, por exemplo, de uma greve no serviço público ou da realização de uma feira agroindustrial, nas quais hipóteses "a prefeitura autoriza uma ou várias empresas a realizarem o serviço enquanto durar o certame, fixando, desde logo, no alvará, o itinerário, os horários, a tarifa e demais condições convenientes" (HELY LOPES MEIRELES, "Direito Municipal Brasileiro", 5ª ed., pág.316).


9 - DELEGAÇÃO PARCIAL DO SERVIÇO DURANTE A VIGÊNCIA DE CONCESSÃO OU PERMISSÃO

A orientação jurisprudencial é no sentido de que, durante o prazo da concessão ou permissão, não pode o poder público concedente outorgar a terceiro a exploração parcial do serviço (cf. ac. do e. Tribunal de Justiça de São Paulo, in RDA 80/165).

Se a Administração desrespeitar essa proibição, delegando parcialmente a terceiros o serviço já concedido anteriormente, será compelida a compensar o concessionário mediante elevação da tarifa, pagamento de indenização ou sob a forma de contribuição financeira direta (subsídio), a fim de restaurar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato (cf. art. 37, inc. XXI, da Constituição Federal; art. 55 do Decreto-lei 2.300/86; art. 65, I e II, "d", e parágrafo sexto, da Lei 8.666/93; art. 18, inc. VIII, art. 23, IV e parágrafos 2, 3 e 4 do artigo 9 da Lei 8.987/95).

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Analisando caso concreto, parecer do Prof. JOSÉ CRETELLA JÚNIOR sustenta que "a outorga da permissão para a exploração de linhas a certa empresa, havendo outra que já explora, a contento, no mesmo percurso, o mesmo serviço de transporte, configura, de modo inequívoco, a chamada concorrência ruinosa" (in "Direito Administrativo Perante os Tribunais", vol. 2, 1996, págs. 93 a 108; no mesmo sentido, HELY LOPES MEIRELLES, "Estudos e Pareceres de Direito Público", vol. II, págs. 387 a 401).


10 - "EQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO" DO CONTRATO

A "equação econômico-financeira é a relação que as partes estabeleceram inicialmente no contrato administrativo entre os encargos do particular e a retribuição devida pela entidade ou órgão contratante, para a justa remuneração do seu objeto" (HELY LOPES MEIRELLES, "Licitação e Contrato Administrativo", 4a. ed., RT, pág. 206). Essa correlação encargo/remuneração deve ser mantida durante todo o prazo de execução do contrato, mesmo que sejam alteradas as chamadas "cláusulas de serviço" (parte regulamentar da concessão).

MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO leciona que, embora tenha o legislador contemplado a obrigatoriedade de se manter o equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo (cf. art. 37, inc. XXI, da Constituição Federal; art. 55 do antigo Estatuto das Licitações; art. 65, I e II, "d", e parágrafo sexto, do novo Estatuto da Licitações e Contratos Públicos; art. 18, inc. VIII, art. 23, IV e parágrafos 2, 3 e 4 do artigo 9 da Lei 8.987/95), "ainda que não houvesse lei assegurando os direitos do contratado à manutenção desse equilíbrio, esses direitos seriam a ele reconhecidos, tanto pela doutrina como pela jurisprudência" (in "Direito Administrativo na Década de 90", ed. RT, 1997, pág. 111).

Eis a lição sempre atual de FRANCISCO CAMPOS a respeito do assunto: "Se, portanto, vem incidir sobre a relação entre os termos da equação financeira um fator que a faça variar em detrimento do concessionário, nasce para o concedente a obrigação de restaurar a relação primitiva ou o equilíbrio na economia da concessão" ("Direito Constitucional", 1956, vol. I, pág. 113).

Pacífico também é o entendimento jurisprudencial sobre o direito ao equilíbrio econômico-financeiro, como se vê no voto vencedor do em. Desembargador WEISS DE ANDRADE, lavrado em 11.9.91, nos autos da ação direta de inconstitucionalidade nº 12.584-0/7-SP: "A Municipalidade, ao permitir que estudantes universitários gozem de desconto sobre a tarifa do transporte coletivo, obriga-se, implícita e explicitamente, a complementar o pagamento dos passes a fim de que permaneça o equilíbrio já referido ou seja, o equilíbrio entre o preço dos transportes e a justa remuneração aos concessionários" (cf. LAIR DA SILVA LOUREIRO, "Ação Direta de Inconstitucionalidade", Saraiva, 1996, pág. 290)


11 - COMPETÊNCIA LEGIFERANTE E INCONSTITUCIONALIDADE

A Constituição da República é a norma suprema do Estado brasileiro, a base da estrutura normativa, o fundamento de validade de todas as normas existentes em nosso ordenamento jurídico ("fundamental law"). Assim, a norma hierarquicamente inferior não pode contrariar a superior, sob pena de não ter validade perante a ordem normativa. Consequentemente, toda e qualquer norma infraconstitucional deve guardar irrestrita compatibilidade com a Constituição da República e com a norma imediatamente superior, "sob pena de tornar-se irremediavelmente viciada, isto é, afrontando a norma hierarquicamente superior rompe com seu fundamento de validade" ("O Controle Judicial da Constitucionalidade das Leis Municipais", in RDP 37-38/45).

Outrossimao repartir as competências, a Constituição federal atribuiu à União o poder-dever de editar normas gerais, reservando aos Estados e Municípios a legislação complementar, supletiva, "a legislação dos pormenores que preenchem as lacunas ou desenvolvem os princípios gerais da legislação federal" (JOSÉ AFONSO DA SILVA, "Curso de Direito Constitucional Positivo", RT, 6ª ed., 1990, p.412).

Como é cediço, competência "latu sensu" é a faculdade ampla de legislar, de administrar e de julgar. Considerada strictu sensu, competência é a capacidade genérica ou possibilidade de desempenhar serviços e de editar atos administrativos e atos políticos. Já a competência privativa ou exclusiva é aquela enumerada como própria de cada pessoa política (CRETELLA JR. , 1990, vol. III, pág. 1440; CELSO BASTOS, 1989, pág. 262). É o caso, por exemplo, da competência atribuída à União para legislar sobre trânsito e transporte (art. 22, inc. XI), sobre diretrizes da política nacional de transportes (art. 22, inc. IX) ou sobre "normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para a administração pública, direta e indireta" (art. 22, inc. XXVII).

O art. 24 da Constituição Federal atribuiu competência concorrente aos estados, Distrito Federal e União, mas excluiu os Municípios; atribuiu-lhes, contudo, competência legislativa suplementar (art. 30, II). A análise sistemática do disposto no art. 30, inc. II, permite concluir que essa suplementação é apenas complementar, no sentido de adaptar a legislação federal e estadual às peculiaridades ou realidades comunitárias. Em outras palavras, a competência suplementar permite dispor sobre "hipóteses irreguladas, preenchendo o vazio, o branco que restar, sobretudo quanto às condições locais" (cf. Acórdão do TRIBUNAL PLENO do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, rel. Min. Oscar Dias Corrêa, que declarou a inconstitucionalidade de ato normativo estadual, por invasão da competência geral reservada à Lei federal, in RTJ 115/1008).

Outrossim, o inciso XXVII do art. 22 da Constituição atribui privativamente à União competência legiferante para editar "normas gerais" de licitação e contratações da Administração Pública. Norma geral é aquela assim denominada pela própria Constituição e que disponha apenas sobre matéria também fixada em preceito Constitucional (cf. CRETELLA JR. "Das Licitações Públicas", 2ª ed., Forense, 1993, p.10/11).

Assim, não cabe às normas estaduais e municipais contrariar as do Estado Federal (8.666/93, 8.987/95 e 9.503/97) nos pontos fundamentais da matéria (cf. ROQUE CITADINI, ob. cit., pág. 21/22). Em conseqüência, na hipótese de conflito entre leis municipais e federais disciplinando a mesma matéria, a legislação federal e estadual prevalecerá sobre a legislação municipal (cf. REGINA MARIA M. NERY FERRARI, "Elementos de Direito Municipal, RT 1993, pág. 83 e pág. 38).

Ora, como os meios de circulação e transporte interessam a todo o país, as normas de trânsito e de tráfego são editadas pela União, a quem a Lei Maior atribuiu a competência legislativa privativa para disciplinar a matéria. É conveniente esclarecer que "trânsito" é o normal deslocamento de pessoas ou coisas pelas vias de circulação e "tráfego" é o deslocamento de pessoas ou coisas pelas vias de circulação, em missão de transporte. Embora distintas quanto ao seu objeto, as regras de trânsito (condições de circulação) e de tráfego (condições de transporte) costumam ser editadas em conjunto.

Todavia, embora o município não possa dispor sobre o conteúdo de matéria de competência legislativa privativa da União (ou dos estados), "pode e deve reger ‘aspectos externos’ a elas, para disciplinar seu desempenho de forma compatível com a vida local" (REGINA MARIA M. NERY FERRARI, "Elementos de Direito Municipal, ed. RT, 1993, p.80). Desta forma, respeitadas as normas gerais da legislação federal, resta ao município disciplinar as questões locais relativas ao trânsito no perímetro urbano, implantação de sinalização, locais de estacionamento, pontos de ônibus, estação rodoviária, circulação nas vias sob sua jurisdição, fixação de mão e contramão nas vias urbanas, limitação do número de automóveis de aluguel (taxi), etc.

Por conseguinte, será inconstitucional e destituída de qualquer eficácia, eventual regulamentação municipal do serviço executado pelos chamados "perueiros", atividade incompatível com os princípios e normas gerais previstas na Lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1995 (o mesmo raciocínio é válido quanto às regras nacionais e gerais previstas nas Leis Federais 8.666/93 e 9.503/97).

Convém ressaltar que o advento da Lei 8.987/95 suspendeu a eficácia de todas as normas editadas anteriormente sobre a mesma matéria (serviços públicos), nos precisos termos do § 4º do art. 24 da Constituição Federal, razão pela qual são inaplicáveis todos os dispositivos de leis estaduais ou municipais já editadas, sobre concessões de serviços públicos, que definam regime jurídico diverso do que a Lei 8987/95 estabeleceu para as concessionárias, ou que contemplem hipóteses conflitantes com as contidas na Lei Federal (8.987).

Sobre o autor
Jofir Avalone Filho

advogado em São Paulo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AVALONE FILHO, Jofir. Responsabilidade civil do Estado:: conseqüências da omissão em fiscalizar e coibir o transporte coletivo clandestino. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 33, 1 jul. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/496. Acesso em: 23 dez. 2024.

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