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Responsabilidade civil do Estado:

conseqüências da omissão em fiscalizar e coibir o transporte coletivo clandestino

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Agenda 01/07/1999 às 00:00

12 - A AUTONOMIA MUNICIPAL E A CLASSIFICAÇÃO DOS VEÍCULOS PREVISTA EM NORMA FEDERAL

CELSO BASTOS adverte que as competências inseridas no art. 30 da Constituição Federal "não devem estimular uma visão exageradamente grandiosa da autonomia municipal", eis que "diversas matérias aí explicitadas sofrem a restrição de uma normatividade superior" ("Curso de Direito Constitucional", Saraiva, 89, 11ª ed., p.278).

Como se viu, a correta interpretação do disposto no art. 30, inc. I, da Constituição Federal "é a de que ele autoriza o município a regulamentar as normas legislativas federais ou estaduais, para ajustar sua execução a peculiaridades locais" (MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, "Comentários à Constituição Brasileira", Saraiva, 1990, vol.I, pág. 219). É o caso, expressamente previsto na Constituição, da ordenação do território (inc VIII), hipótese na qual deverá o legislador municipal respeitar os planos nacional e regionais sobre a matéria. Também "é o caso do inc V que comete ao Município a organização do transporte coletivo, sendo certo, porém, que à União cabe editar diretrizes para os transportes urbanos" (FERNANDA DIAS MENEZES DE ALMEIDA, "Competências na Constituição de 1988", Atlas, 1991, pág. 127).

Tais diretrizes (art. 21, XX), fixadas no Código Brasileiro de Trânsito (Lei 9.503/97) e nas Resoluções do CONTRAN (cf. arts. 6º, 12 e 314 da Lei 9.503/97), não podem ser desrespeitadas pelas leis municipais editadas em razão da Competência atribuída aos Municípios.

Assim, para obter o registro, licenciamento e emplacamento necessários para circular nas vias públicas, somente ônibus e microônibus que atendam as exigências estabelecidas no art. 117 da Lei 9.503/97 e na Resolução n. 811/77 podem ser destinados ao transporte coletivo de passageiros (cf. art. 1º, caput, da Resolução/CONTRAN nº 811/77). Excepcionalmente, podem os condutores de taxi operar alternativamente o transporte coletivo em seus veículos (desde que se habilitem para o serviço de lotação). Convém ressaltar que, nos termos da Resolução 811, expedida em 27.2.96 pelo CONTRAN, "considera-se como microônibus o veículo de transporte coletivo de passageiros projetado e construído com a finalidade exclusiva de transporte de pessoas, com lotação de no máximo 20 (vinte) passageiros e dotado de corredor interno para circulação dos mesmos".

Acresce, ainda, que todos os condutores de veículos de transporte coletivo devem ter habilitação especial e preencher os requisitos legais constantes dos artigos 138, 139, 143, inciso IV e 145 da Lei 9.503/97 e dos artigos 92, 135, 184 e 329 do Regulamento.

O desrespeito às normas e exigências legais, relativas aos condutores e veículos de transporte coletivo, caracteriza infração de trânsito (cf. artigos 161, 162, inc. III, 231, inc. VIII, 298, incs. IV e V, da Lei 9.503/97), impondo a aplicação das penalidades previstas no art. 256 e/ou das medidas administrativas referidas no art. 269 da Lei 9.503/97, sem prejuízo de eventual punição tipificada no Capítulo XIX do Código Brasileiro de Trânsito (crimes de trânsito) ou na Lei Penal (Decreto-lei 7.903/45, que define o crime de concorrência desleal).


13 - TRANSPORTE COLETIVO E "SERVIÇO DE LOTAÇÃO"

Ensinam os doutos que o transporte pode ser de coisas ou de pessoas. O transporte de pessoas é contrato de resultado, obrigando o transportador a levar o usuário são e salvo ao seu destino. O transporte de pessoas é tradicionalmente classificado em duas categorias, a saber: "transporte singular de passageiros" e "transporte coletivo de passageiros" (cf. JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, "Direito Administrativo Perante os Tribunais", vol. 2, 1ª ed., 1996, pág. 198).

Embora se diga usualmente que os perueiros fazem "lotação", tecnicamente é impossível ao condutor de perua efetuar serviço de lotação. Com efeito, nos termos do art. 43 do antigo Código Nacional de Trânsito e do art. 87 do Regulamento, somente os "veículos de aluguel (taxi)" podem realizar o serviço de lotação, que se classifica como modalidade de transporte coletivo (cf. Resolução 514/77 do CONTRAN; art. 314 da Lei 9.503/97).

O novo Código Brasileiro de Trânsito também distingue o transporte coletivo de passageiros do transporte individual de pessoas, utilizando, para o último, a mesma expressão "veículos de aluguel" (empregada pelo antigo CNT), e mantendo inalterada a classificação dos veículos (cf., por exemplo, arts. 85 e 107 da Lei 9.503/97)

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Assim, os "veículos de aluguel" licenciados para o transporte individual de passageiros (taxi) poderão, desde que satisfeitas as exigências do Poder Concedente, efetuar o transporte coletivo de passageiros (lotação), observando horários e itinerários previamente fixados pela autoridade concedente (cf. arts. 1, 2 e 4, par. único, da Resolução 514/77).

Para autorizar o acesso dos proprietários de taxi ao serviço de lotação, a autoridade competente deverá manter um número de veículos que assegure "o transporte individual de passageiros - taxi - em qualquer horário" (art. 4, caput, da Resolução nº 514/77).

Também incumbe ao Poder Concedente fixar "a tarifa por passageiros de forma a evitar concorrência danosa com os serviços de transporte individual de passageiros (taxi) e transporte coletivo (ônibus)" (cf. Resolução 514/77, art. 5). Concorrência danosa ou ruinosa, vale lembrar, é a competição na qual um dos sujeitos causa prejuízos econômicos ao outro, que passa a ter seu ganho reduzido. HELY LOPES MEIRELLES, cuidando de transporte intermunicipal, conceitua "concorrência ruinosa" como "a competição desenfreada, na exploração das linhas de transportes coletivos, com o enriquecimento de alguns permissionários e o empobrecimento de outros, ou a ruína de todos eles, o que, de modo algum interessa ao Estado" (cf. "Estudos e pareceres de Direito Público", RT, volume IX, página 267).

Do exposto se conclui que a atividade desenvolvida pelos "perueiros" não configura "serviço de lotação", nem tampouco transporte individual de passageiros (que também só pode ser efetuado por taxis). Marcada pelo conflito e pela inconstitucionalidade, caracterizada pela ilegalidade e ilicitude, a atividade desenvolvida pelos "perueiros" só pode ter uma denominação: "serviço clandestino de transporte coletivo de passageiros".


14 - CONSEQÜÊNCIAS DA OMISSÃO DO PODER PÚBLICO EM FISCALIZAR E COIBIR O TRANSPORTE COLETIVO CLANDESTINO

Como se viu, o transporte coletivo de passageiros é direito fundamental do cidadão e dever do Estado, sendo o Poder Público Municipal responsável, na área de sua jurisdição, pelo seu gerenciamento, operação, fiscalização e punição, nos temos da lei. Outrossim, além de estabelecer que a prestação de quaisquer serviços públicos, por concessão ou permissão, deve ser obrigatoriamente precedida de regular licitação (art. 175), a Constituição Federal disciplinou a responsabilidade civil do Estado dispondo que:

"as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa" (§ 6º do art. 37 da Constituição).

Mas não é apenas a ação do administrador (e de quaisquer outros agentes públicos) que pode produzir danos e gerar direito `a indenização, mas também a omissão (do latim OMISSIO, de OMITERE) que significa negligência, esquecimento, inatividade, desídia, inércia, ou "o que não se fez, o que se deixou de fazer, o que foi desprezado" (cf. PLÁCIDO E SILVA, "Vocabulário Jurídico", vol. III, p. 1.093).

A omissão do agente público configura culpa in omitendo ou culpa in vigilando, podendo causar prejuízos aos administrados, à própria Administração e ao agente público responsável, pois "se se cruza os braços ou não se vigia, quando deveria agir, o agente ,público omite-se, empenhando a responsabilidade do Estado por inércia ou incúria do agente. Devendo agir, não agiu. Nem como o bonus pater familiae, nem como bonus administrator." (CRETELLA JÚNIOR, "Tratado de Direito Administrativo", vol. VIII, Forense, p.210, n.161).

Convém ressaltar que o Tribunal de Justiça de São Paulo vem decidindo reiteradamente pela responsabilização e conseqüente reparação, tanto nos casos de típica omissão, como nos casos de falta de presteza do agente; ainda que não se saiba quem é o responsável pelo prejuízo causado ao particular (culpa anônima), o Tribunal condena a Administração pela reparação dos prejuízos (cf. RJTJESP 97/342). E até mesmo quando haja fiscalização, mas sendo ela deficiente, caracteriza-se a omissão geradora da responsabilidade civil do estado (cf. RT 445/844 e 389/161).


CONCLUSÃO

1. Do exposto se conclui que a atividade desenvolvida pelos chamados "perueiros" configura serviço público clandestino de transporte coletivo. Da exegese da ordem jurídica surge a convicção de que será irremediavelmente ilegal, inconstitucional e ineficaz qualquer lei ou ato normativo, estadual ou municipal, que pretenda disciplinar a atividade clandestina de transporte de passageiros e que: a) imponha regime jurídico de Direito Privado à atividade desenvolvida pelos clandestinos; b) atribua a delegação do serviço ao particular, sem prévia aferição da excelência do agente e de sua habilitação jurídica, fiscal, técnica e econômico-financeira, com processo licitatório regido pelas leis 8.666/93 e 8.987/95; c) atribua a delegação do serviço por mera autorização ou outros instrumentos que não sejam os da concessão ou permissão; d) deixe de atribuir ao contratado os deveres de prestar serviço adequado, de prestar contas ao poder concedente e aos usuários, de conceder livre acesso aos agentes da fiscalização; e) não disponha sobre as cláusulas especiais do contrato e de sua prorrogação, sobre a aplicação de penalidades legais e contratuais, ou sobre as hipóteses de extinção da concessão (ou permissão), respeitadas as normas da legislação federal; f) não preveja a possibilidade de intervenção na concessão, com fim de assegurar a adequação na prestação do serviço; g) não disponha sobre os direitos dos usuários; h) não preveja no edital a obrigatoriedade de apresentação de projeto básico; i) autorize a prestação do serviço, sem licitação, a pessoa física, associação ou cooperativa; j) contrarie as normas gerais fixadas no Código Brasileiro de Transito (Lei Nacional sobre trânsito e tráfego referida no inc. XI do art. 22 da Constituição Federal); l) estabeleça características e classificação dos veículos em desacordo com aquelas fixadas no próprio Código de trânsito ou nas normas editadas pelo CONTRAN; m) autorize a circulação de veículo que não satisfaça as exigências legais para os "veículos de aluguel" "destinados ao transporte individual ou coletivo de passageiros"; n) autorize a circulação de veículo de transporte coletivo conduzido por pessoa que não preencha os requisitos dos art. 138, 139, 143 inc. IV e 145 do Código brasileiro de Trânsito e art. 89, 92 e 184 do Regulamento; o) autorize o transporte remunerado de passageiros em veículo que não seja taxi, ônibus, ou microônibus; p) que autorize o transporte remunerado de passageiros em veículo não licenciado para esse fim específico ; q) não preveja ou imponha restrições ao poder-dever da Administração de fiscalizar o serviço; r) autorize o transporte remunerado de passageiros, sem fixação prévia de tarifa ou sem definição de horários, itinerários e pontos de embarque/desembarque; s) autorize o transporte remunerado de passageiros sem resguardar as empresas de ônibus e os taxistas das conseqüências nocivas da concorrência ruinosa.

2. A inércia da autoridade administrativa, deixando de fiscalizar e de coibir a ação dos clandestinos, causa lesão ao patrimônio jurídico individual da concessionária e ao patrimônio público, obrigando o Poder Concedente a restaurar o equilíbrio econômico-financeiro da concessão. É que tal atitude (ou falta de) constitui "forma omissiva de abuso de poder, quer o ato seja doloso ou culposo" (cf. CAIO TÁCITO, "O Abuso de Poder Administrativo no Brasil", pág. 11), dando lugar à reparação de todos os prejuízos causados ao particular pela omissão, demora ou retardamento na prática do ato que lhe incumbia, conforme lição do clássico MIGUEL SEABRA FAGUNDES ("Responsabilidade do Estado - Indenização por Retardada Decisão Administrativa", parecer inserido na RDP, ns. 57/58, página 13).

Sobre o autor
Jofir Avalone Filho

advogado em São Paulo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AVALONE FILHO, Jofir. Responsabilidade civil do Estado:: conseqüências da omissão em fiscalizar e coibir o transporte coletivo clandestino. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 33, 1 jul. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/496. Acesso em: 24 dez. 2024.

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