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Responsabilidade civil do Estado:

conseqüências da omissão em fiscalizar e coibir o transporte coletivo clandestino

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Agenda 01/07/1999 às 00:00

1 - CONCEITO DE SERVIÇO PÚBLICO

Na doutrina, três correntes divergem sobre a conceituação de serviço público: a) a primeira, chamada "escola do serviço público", segundo a qual toda e qualquer atividade desenvolvida pelo Estado seria serviço público; b) para a segunda, o serviço público abrangeria todas as atividades estatais, exceto a legislativa e a judicial; c) a terceira corrente doutrinária acrescenta que, além da elaboração da lei e dicção do Direito, também deveriam ser excluídas da noção de serviço público as atividades que não são colocadas à disposição do cidadão (como aquelas relacionadas ao poder de polícia).

HELY LOPES MEIRELLES define serviço público como "todo aquele prestado pela Administração ou por seus delegados, sob normas e controle estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade ou simples conveniências do Estado" (cf. "Direito Administrativo Brasileiro", 19ª ed., pág. 294). No entanto, como ensinava RUY DE SOUZA há mais de 40 anos, "será o tempo e o meio, o direito positivo e a política vigente, que terão de nos dar os elementos precisos para a indagação" do conceito de serviço público (RDA 28/10).

Na atual ordem jurídica, além de elencar expressamente alguns serviços públicos (por exemplo, o de transporte de passageiros ou o serviço de telecomunicações), a Constituição Federal dispõe a respeito do seu regime jurídico (art. 175), que pode assim ser resumido: (a) O Poder Público detém a titularidade da prestação dos serviços públicos, mas (b) pode transferir sua execução a terceiros delegatários, que se submeterão a (c) regime especial definido em lei; a delegação da execução do serviço (prestação indireta) pode se formalizar (d) somente mediante concessão ou permissão, instrumentos administrativos de (e) natureza contratual e (f) conteúdo mínimo imperativo; (g) a licitação pública prévia é condição de validade e legitimidade da delegação da prestação do serviço a particulares.

A Lei 8.666/93, que regulamentou o art. 37, XXI, da Constituição, instituindo normas gerais sobre licitações e contratos da Administração Pública, definiu "serviço público" como sendo "toda atividade destinada a obter determinada utilidade de interesse para a Administração, tais como: demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adaptação, manutenção, transporte, locação de bens, (...)" (art. 6o., inc. II).

A lei 8.987/95 disciplinou o regime jurídico da concessão e permissão da prestação de serviços públicos previsto no art. 175 da Carta Magna, dispondo sobre os direitos e obrigações dos usuários, instituindo regras de política tarifária, definindo a obrigação do serviço adequado, impondo regras especiais de licitação e regulamentando o caráter especial do contrato celebrado com as empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos.


2 - O CARÁTER IMPOSITIVO DA LEI 8.987/95

A Lei 8.987/95, obedecendo ao comando do artigo 175 da CF., dispôs sobre o "regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos" previsto na norma constitucional, determinando, inequívoca e expressamente, que "a União, os Estados, o Distrito Federal, e os Municípios promoverão a revisão e as adaptações necessárias de sua legislação às prescrições desta lei" (cf. par. ún. do artigo 1º da Lei 8.987/95).

A lição doutrinária é no sentido de que a Lei 8.987/95 "tem âmbito nacional e às suas prescrições deverão adaptar-se não somente o sistema federal como os Estados, Municípios e Distrito Federal." (CAIO TÁCITO, "A Nova Lei de Concessões de Serviço Público", in RDA 201/29; no mesmo sentido: JOSÉ CARLOS DE OLIVEIRA, "Concessão e Permissão de Serviços Públicos", 1997, pags. 103/104; HELY LOPES MEIRELLES, "Licitações e Contratos Administrativos", 11ª ed., 1996, pág. 62; JESSÉ TORRES PEREIRA JÚNIOR, "Comentários à Lei de Licitações e Contratos da Administração Pública", pág. 670 e 687; SÔNIA YURIKO TANAKA, "Dispensa e Inexigibilidade da Licitação", in "Estudos Sobre a Lei de Licitações e Contratos", ed. Forense Universitária,1995, pág. 17/19; CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, "Elementos de Direito Administrativo", 3a. ed., 1991, pág. 176; EDMIR NETTO DE ARAÚJO, em painel apresentado em 1996 no XVII Congresso Brasileiro de Direito Constitucional, in "Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política", n. 18, 1997, pág. 99).

Por conseguinte, forçoso concluir que a nova lei é o Estatuto Nacional dos Serviços Públicos, obrigando a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios, e as respectivas autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista, fundações e quaisquer outras entidades sob seu controle direto ou indireto.

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3 - O DESTINATÁRIO DO SERVIÇO PÚBLICO

A Constituição Federal, além de determinar que "as reclamações relativas à prestação de serviços públicos serão disciplinadas em lei" (art. 37, par. 3º), reza que a Lei Nacional sobre Serviços Públicos deveria fixar "os direitos dos usuários" e a obrigação de manutenção de "serviço adequado" (cf. incisos II e IV do par. ún. do art. 175), obrigação da qual já se desincumbiu o Poder Público ao editar a Lei 8.987/95, que disciplinou o "serviço adequado" (cf. art. 6º), estendeu ao passageiro os direitos contidos no Código de Defesa do Consumidor e conferiu aos usuários direitos especiais (cf. art. 7º). Outrossim, o caput do art. 175 da Lei Maior reza que a prestação do serviço público "incumbe ao Poder Público", considerado o "gestor permanente e inexcludente do serviço público" (cf. CARMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA, "Estudo sobre Concessões e Permissões de Serviço Público no Direito Brasileiro", Saraiva, 1996, pág. 30).

Confrontando-se os preceitos normativos referidos pode-se concluir que : (a) a titularidade do serviço público foi inequivocamente atribuída ao Poder Público (que pode delegar apenas a sua execução); e (b) o destinatário do serviço público é o povo, o usuário, o cidadão. Eis, portanto, o binômio que caracteriza os serviços públicos: "um dever do estado e um direito do cidadão".

Bem por se cuidar de dever do estado e direito do cidadão, a Lei Maior não permite que a Administração escolha discricionariamente a quem delegar a prestação de serviço público, mas reza que a escolha do prestador delegatário se fará "sempre através de licitação" pública, "que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes", observados os princípios "de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade".


4 - O TRANSPORTE COLETIVO: UM "SERVIÇO PÚBLICO"

Não há dúvida de que o transporte de passageiros configura serviço público ou serviço de utilidade pública, pois "es sabido que los servicios públicos son los pilares sobre los que se asientam las sociedades modernas. Los transportes, las telecomunicaiones, (...) son prestaiones indispensables para el desenvolvimiento de los individuos en la comunidad" (cf. FRANCISCO JOSÉ VILLAR ROJAS, "Privatizaciòn de Servicios Públicos", Madrid, 1993, pág. 23).

No Brasil, dizem os intérpretes do Direito ser "incontestável que o serviço de transporte coletivo de passageiros é serviço público", "ante a unanimidade da doutrina e as manifestações da jurisprudência" (RDA 34/412).

Eliminando qualquer possibilidade de discussão, diversos dispositivos da LEX MATER brasileira classificam o transporte como serviço público (por exemplo, os arts. 21, 22 e 30, V). Cuida-se, pois, daquilo que a doutrina denomina "serviço público por inerência" ou "serviço público essencial por definição constitucional", eis que definido como tal pela própria Constituição Federal. Seguindo as diretrizes da Lei Fundamental, o legislador infraconstitucional também se referiu expressamente ao transporte como serviço público (cf. art. 6º, II, da Lei 8.666/93).


5 - A OUTORGA DO SERVIÇO PÚBLICO DE TRANSPORTE COLETIVO

A obrigatoriedade da licitação prévia consta da própria Lei Maior (art. 37, inc. XXI e art. 175, caput, da Constituição Federal), razão pela qual constitui condição de validade e legitimidade" da concessão (ou permissão) ulterior, não podendo o Administrador, em hipótese alguma, outorgar a prestação de atividade considerada serviço público por outro modo que não seja o processo seletivo (licitação).

É que, no Estado de Direito Democrático, todos têm o direito de se interessar em colaborar com a Administração Pública, devendo ser assegurada a absoluta equivalência aos participantes da disputa e ser escolhido, sem discriminações ou favoritismos, não o preferido de alguns, mas aquele que apresentar a proposta mais vantajosa para a administração, demonstrando idoneidade e revelando ter melhores condições de desempenhar o serviço licitado, de modo adequado e seguro, para satisfazer as necessidades da população.

Convém ressaltar que, além da expressa exigência constitucional, a obrigatoriedade da observância do processo licitatório para todas as contratações públicas e, especialmente, para a prestação de serviços públicos, mediante concessão ou permissão, é expressamente reiterada pela legislação infraconstitucional.

Com efeito, assim dispõe a Lei 8.666/93: " As obras, serviços, inclusive publicidade, compras, alienações, concessões, permissões e locações da Administração Pública, quando contratadas com terceiros, serão necessariamente precedidas de licitação, ressalvadas as hipóteses previstas nesta lei." (art. 2º)

Da mesma forma, reza a Lei 8.987/95 que: "Toda concessão de serviço público, precedida ou não da execução de obra pública, será objeto de prévia licitação, nos termos da legislação própria e com observância dos princípios da legalidade, moralidade, publicidade, igualdade, do julgamento por critérios objetivos e da vinculação ao instrumento convocatório." (art. 14)

Também a Constituição do Estado de São Paulo contempla a obrigatoriedade de licitação, dispondo que: " Ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, a qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações." (art. 117)

Mansa e pacífica é a lição doutrinária sobre o dever de licitar, considerando-se obrigatória a realização prévia de licitação, como condição de validade da delegação da prestação de serviço público a particulares (MARIA SILVIA ZANELLA DI PIETRO, "Direito Administrativo", ed. Atlas, 1990, págs. 219/220; HELLI ALVES DE OLIVEIRA, in "Concessão de Serviço Público", org. ODETTE MEDAUAR, pág. 46; CARMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA, ob. cit., pág. 113; LUIS ALBERTO BLANCHET, "Concessões e Permissões de Serviços Públicos", pág. 164; CARLOS BARROS JÚNIOR, in RDA 111/15; JUAREZ DE FREITAS, "Estudos de Direito Administrativo", 1995, pág. 45; JOSÉ AFONSO DA SILVA, "Curso de Direito Constitucional Positivo", 5ª ed., 1989, pág. 672; etc...)

Dessa inteligência não diverge a orientação jurisprudencial, como se vê nos acórdãos abaixo, ambos tratando especificamente do serviço público de transporte coletivo:

"Licitação. Edital. Transporte coletivo. Concessão de linhas de transporte coletivo de passageiros somente se dará mediante licitação." (cf. acórdão do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro, in RTCE/RJ, n. 29, jul/set/95, pág. 91)

"Transporte coletivo. Concessão. Licitação. Na atual ordem jurídico-constitucional não se pode admitir que possa o Poder Público conceder a execução de um serviço de utilidade pública sem prévia licitação" (cf. acórdão do Superior Tribunal de Justiça, prolatado nos autos do mandado de segurança n. 1.592, in RDA jul/set/93, vol. 193, pág. 258)

No mesmo sentido, decisão do egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo que anulou contrato, pela ausência de concorrência pública (in RDA 54/118) e acórdão do Supremo Tribunal Federal, relatado pelo em. Min. OCTÁVIO GALOTTI, no Recurso Extraordinário n. 140.989, julgado em 16.3.93.


6 - O TRANSPORTE COLETIVO E A INICIATIVA PRIVADA

EROS ROBERTO GRAU adverte que, embora a Constituição Federal tenha consagrado o princípio da subsidiariedade da intervenção estatal no domínio econômico, não se pode contrapor, de modo absoluto, os conceitos de serviço público e atividade econômica, pois o serviço público é espécie do gênero atividade econômica (cf. RDP 93/263).

Outrossim, reza a Constituição Federal que:

          "art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos."

          "Parágrafo único - A lei disporá sobre:

          I - o regime das empresas concessionárias e permissionárias dos serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;

          II - os direitos dos usuários;

III- política tarifária;

IV - a obrigação de manter o serviço adequado."

Não é difícil constatar que, nos termos do art. 175 da Carta Magna, se aplica o regime de Direito Público (distinto do que regula as relações privadas no desempenho de atividade econômica), a todo e qualquer serviço público, sendo o Estado responsável por sua prestação adequada. Assim, embora seja atividade passível de avaliação econômica, o serviço público se diferencia da atividade econômica em geral por se inserir no campo do Direito Público e identificar-se pelo escopo de realização do interesse coletivo e do bem comum.

Bem por isso, "não se incluem no conceito de atividade econômica em sentido estrito certas atividades que a Constituição qualificou como serviço público, mesmo que tais atividades tenham cunho econômico ou sejam potencialmente lucrativas" (cf. MARÇAL JUSTEN FILHO, "Concessões de Serviços Públicos", ed. Dialética, 1997, pág. 57; no mesmo sentido, ARNOLD WALD, LUIZA RANGEL DE MORAES e ALEXANDRE DE M. WALD, "O Direito de Parceria e a Nova Lei de Concessões", RT, 1996, pág. 71).

A análise do texto constitucional permite afirmar, portanto, que o legislador optou pela exclusividade da competência pública pelo e para o serviço público. Nesse sentido, leciona CARMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA que o art. 175 da CF "deixa o Poder Público como gestor permanente e inexcludente do serviço público, pois o que ele permite é apenas a delegação da prestação, não da sua titularidade" (cf. "Estudo sobre Concessões e Permissões de Serviço Público no Direito Brasileiro", Saraiva, 1996, pág. 30).

Quanto ao serviço público municipal de transporte coletivo, IVES GANDRA DA SILVA MARTINS adverte que "o transporte urbano é típica atividade" "que, explorada diretamente pelo estado ou por delegação pela iniciativa privada, está disciplinada pelas normas de direito público e em especial do direito administrativo" (cf. "A Licitação sobre Transportes na Constituição", in "Doutrina", ed. Instituto de Direito, 1996, pág. 178).

Por conseguinte, se o regime aplicável à prestação do serviço público de transporte de passageiros será sempre o de Direito Público (art.175) e nunca o da atividade econômica particular (art. 170) ou o da atividade econômica em sentido estrito (art. 173). pode e deve o Poder Público operar, delegar, gerir e fiscalizar o trânsito, o tráfego e o transporte coletivo, autuando, punindo e coibindo o sistema clandestino de transporte de passageiros.

Outrossim, é cediço que, em nenhum diploma legal brasileiro que cuide de serviços públicos, encontra-se a admissibilidade para o contrato ou subcontrato de natureza exclusivamente privada. "Isto porque tais serviços, ainda que operados por particulares, não se desvestem do caráter público, razão pela qual não podem ser executados em termos únicos de contrato privado" (cf. HELY LOPES MEIRELES, ob. cit., pág. 495).

Interpretando a ordem jurídica pátria, MARÇAL JUSTEN FILHO ensina que "não se incluem no conceito de atividade econômica em sentido estrito certas atividades que a Constituição qualificou como serviço público, mesmo que tais atividades tenham cunho econômico ou sejam potencialmente lucrativas" (cf. "Concessões de Serviços Públicos", ed. Dialética, 1997, pág. 57).

A conclusão inequívoca, portanto, é no sentido da inviabilidade da coexistência de um sistema público e outro privado para o transporte coletivo, porquanto o art. 175 da Carta Magna dispõe ser aplicável a todo e qualquer serviço público o regime de Direito Público, sendo o Estado responsável por sua prestação eficiente e adequada.

Sobre o autor
Jofir Avalone Filho

advogado em São Paulo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AVALONE FILHO, Jofir. Responsabilidade civil do Estado:: conseqüências da omissão em fiscalizar e coibir o transporte coletivo clandestino. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 33, 1 jul. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/496. Acesso em: 24 dez. 2024.

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