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Abandono afetivo

Agenda 08/06/2016 às 10:44

Abandono afetivo e seus aspectos jurídicos.

            O princípio da afetividade surge no contexto da Constituição de 1988 - mais especificamente nos artigos 226, parágrafo 4º, e artigo 227, parágrafos 5º e 6º, da Carta Magna -, promovendo o reconhecimento de uma nova tutela constitucional das relações familiares, incluindo disposições que valorizam a convivência intrafamiliar, a igualdade de direitos entre os filhos, a adoção como escolha afetiva e a afetividade como princípio norteador das relações familiares.

            A partir dos dispositivos constitucionais mencionados, e de acordo com o que aponta a melhor doutrina, é possível apontar quatro fundamentos essenciais para identificar o princípio da afetividade, a saber, (i) a igualdade de todos os filhos, independentemente da origem: art. 227, § 6º, da CF/88; (ii) a adoção como escolha afetiva com igualdade de direitos: art. 227, §§ 5º e 6º, da CF/88,; (iii) a comunidade afetiva formada por qualquer dos pais e seus descendentes, com a mesma dignidade de entidade familiar: art. 226, § 4º, da CF/88; e (iv) o direito à convivência familiar como direito absoluto da criança e do adolescente: art. 227 da CF/88.

            Mais do que mudanças pontuais, no entanto, as inovações trazidas pela Constituição Cidadã à tutela das relações familiares significa uma verdadeira mudança qualitativa no direito de família, incluindo direitos e deveres de escopo bastante largo e variado, de forma a atualizar o ordenamento jurídico brasileiro em relação à compreensão contemporânea da instituição familiar, sempre mantendo como norte e fundamento último o respeito à dignidade da pessoa humana.

            No atual contexto, portanto, as relações entre pais e filhos e principalmente as obrigações daqueles com estes se diversificam e adquirem maior sofisticação. É nesse sentido que se pode dizer que, hoje em dia, o dever de um pai em relação ao seu filho não se limita ao mero provimento das necessidades materiais da criança, passando a incluir também um “dever de convivência familiar” (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores para o Direito de Família. Belo Horizonte: Del Rey, 2005).

            Aliás, é o descumprimento desses deveres “imateriais”, próprios da condição de genitor, o que enseja a configuração do chamado “abandono afetivo”, conceituado como toda “omissão dos pais ou de um deles, pelo menos relativamente ao dever de educação, entendido este na sua acepção mais ampla, permeada de afeto, atenção, desvelo” (HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Pressupostos, elementos e limites do dever de indenizar por abandono afetivo – grifamos).

            Para melhor explicar a configuração dessas hipóteses de abandono moral ou afetivo, Rolf Madaleno comenta que

entre os inescusáveis deveres paternos figura o de assistência moral, psíquica e afetiva, e quando os pais ou apenas um deles deixa de exercitar o verdadeiro e mais sublime de todos os sentidos da paternidade, respeitante a interação do convívio e entrosamento entre pai e filho, principalmente quando os pais são separados ou nas hipóteses de famílias monoparentais, onde um dos ascendentes não assume a relação fática de genitor, preferindo deixar o filho no mais completo abandono, sem exercer o direito de visitas, certamente afeta a higidez psicológica do descendente rejeitado. (MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 310)

De fato, como devidamente apontado pelo professor Madaleno, é necessário atentar para o fato de que o descumprimento dos deveres de assistência moral e afetiva por parte do genitor não implica em mero dissabor ou contratempo na vida da criança, muito pelo contrário. A omissão do genitor na criação da criança, faltando com os deveres de carinho e afeto, certamente “afeta a higidez psicológica do descendente rejeitado”, causando danos talvez jamais recuperáveis à personalidade e autoestima da “vítima”.

Ainda que a proteção contra o abandono afetivo possua status constitucional e venha sendo defendida pela ampla maioria da doutrina e da jurisprudência, a verdade é que ainda há tribunais com maior resistência ao reconhecimento de responsabilidade civil dos pais nessas hipóteses.

Assim, a grande discussão referente ao instituto do abandono afetivo é a que gira em torno de saber onde localizar a linha que divide o dano moral verdadeiro e, portanto, devidamente indenizável, da alegação de dano moral oportunista e banal. Trata-se de encontrar o meio termo capaz de evitar a banalização do instituto, sem, contudo, consagrar a impunidade dos pais que, de forma irresponsável e injustificada, prejudicam o desenvolvimento sadio da criança.

Como o instituto do abandono afetivo é relativamente novo no Brasil e ainda não possui legislação específica a regulamentá-lo, o certo é dizer que não há consenso acerca da sanção a ser aplicada aos pais que descumprirem tal dever familiar.

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 Na doutrina, com efeito, de um lado há aqueles que defendem que em tais casos é possível a reparação civil, utilizando como argumento os princípios da dignidade humana, da afetividade e da proteção integral da criança e do adolescente; de outro há aqueles que entendem não ser possível a reparação pecuniária, pois que valores como afeto e amor não são passíveis de quantificação, assim como é defeso ao Estado obrigar alguém a amar sua prole. Dentro da primeira corrente – a majoritária, - situam-se autores como Paulo Lôbo, Rui Stocco, Bernardo Castelo Branco, Maria Berenice Dias e Rodrigo da Cunha Pereira; na segunda, encontram-se Lizete Schuh e Danielle Alheiros Diniz, entre outros.

Nesse ponto, aos doutrinadores que postulam que “é dificultoso cogitar-se a possibilidade de determinada pessoa postular amor em juízo, visto que a capacidade de dar e de receber carinho faz parte do íntimo do ser humano, necessitando apenas de oportunidades para que aflore um sentimento que já lhe faz parte, não podendo o amor, em que pese tais conceitos, sofrer alterações histórico-culturais, ser criado ou concedido pelo Poder Judiciário”( SCHUH, Lizete Peixoto Xavier. Responsabilidade civil por abandono afetivo: a valoração do elo perdido ou não consentido. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, v. 8, n. 35, abril/maio 2006, p. 67-68.), a doutrina majoritária responde que “ao confundir a afetividade que pode ser realizada, independentemente do sentimento que se tenha, com aquelas outras expressões do amor (...), corre-se o risco de afastar da proteção do Judiciário, situações que tenham esse princípio como cerne, como por exemplo, o abandono afetivo, o que justificaria o argumento contrário de que a lei não pode obrigar ninguém a amar. Pode sim. Objetivamente.” (OLIVEIRA, Catarina Almeida de. Refletindo o afeto nas relações de família. Pode o direito impor amor? In: Famílias no Direito Contemporâneo: estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Coord. Fabíola Santos Albuquerque, Marcos Ehrhardt Jr. e Catarina Almeida de Oliveira. Salvador: Juspodivm, 2010, p. 66.).

A mesma polêmica é replicada em sede jurisprudencial, até mesmo nos tribunais superiores. Na jurisprudência do STJ é possível encontrar manifestações entendendo pela impossibilidade de dever indenizatório decorrente, como a do REsp 757.411/MG e a do REsp 514.350/SP, cuja ementa transcrevemos:

CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. RECONHECIMENTO. DANOS MORAIS REJEITADOS. ATO ILÍCITO NÃO CONFIGURADO. I. Firmou o Superior Tribunal de Justiça que "A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária" (Resp n. 757.411/MG, 4ª Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves, unânime, DJU de 29.11.2005). II. Recurso especial não conhecido. (STJ - REsp: 514350 SP 2003/0020955-3, Relator: Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, Data de Julgamento: 28/04/2009, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 25/05/2009)

Há, contudo, decisões em sentido contrário, reconhecendo que inexistem restrições ao dever de indenizar em tais hipóteses. Vejamos:

“(...) 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88. 3. Comprovada que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia - de cuidado - importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes - por demandarem revolvimento de matéria fática - não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada. 7. Recurso especial parcialmente provido"(REsp nº 1.159.242/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/4/2012, DJe 10/5/2012 - grifou-se). Incide, na espécie, a Súmula nº 83/STJ. Ante o exposto, conheço do agravo para negar seguimento ao recurso especial. Publique-se. Intimem-se. Brasília (DF), 02 de fevereiro de 2015. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA Relator (STJ - AREsp: 473882 RN 2014/0028347-1, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Publicação: DJ 05/02/2015)

Assim, apesar dos posicionamentos contrários arrolados acima, parece-nos que o posicionamento atual do Superior Tribunal de Justiça acompanha o desenvolvimento doutrinário, reconhecendo o dever indenizatório nos casos de abandono afetivo, não por um suposto “dever de amar”, mas pelo dever de cuidar. Marco desse avanço jurisprudencial, que parece encaminhar-se para dar uma solução definitiva à querela, foi o julgamento do REsp n.º 1.159.242/SP, ocorrido em 2012, que reconheceu o afeto como valor jurídico e concedeu o direito à indenização à filha afetivamente abandonada pelo pai. Tratando com brilhantismo da questão, transcrevemos trecho do voto da Ministra Relatora Nancy Andrighi:

RECURSO ESPECIAL Nº 1.159.242 - SP (2009⁄0193701-9)

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE.

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS E MATERIAIS. FILHA HAVIDA DE RELAÇÃO AMOROSA ANTERIOR. ABANDONO MORAL E MATERIAL. PATERNIDADE RECONHECIDA JUDICIALMENTE. PAGAMENTO DA PENSÃO ARBITRADA EM DOIS SALÁRIOS MÍNIMOS ATÉ A MAIORIDADE. ALIMENTANTE ABASTADO E PRÓSPERO. IMPROCEDÊNCIA. APELAÇÃO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. [...] Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos.

O amor diz respeito à motivação, questão que refoge os lindes legais, situando-se, pela sua subjetividade e impossibilidade de precisa materialização, no universo meta-jurídico da filosofia, da psicologia ou da religião.

O cuidado, distintamente, é tisnado por elementos objetivos, distinguindo-se do amar pela possibilidade de verificação e comprovação de seu cumprimento, que exsurge da avaliação de ações concretas: presença; contatos, mesmo que não presenciais; ações voluntárias em favor da prole; comparações entre o tratamento dado aos demais filhos – quando existirem –, entre outras fórmulas possíveis que serão trazidas à apreciação do julgador, pelas partes.

Em suma, amar é faculdade, cuidar é dever [...].

Concluindo, entendemos que o poder familiar implica em direitos e deveres aos pais na relação com seus filhos, de forma que o descumprimento dessas obrigações asseguradas pela Constituição Federal, Código Civil e ECA não pode passar absolutamente impune e sem responsabilidade. Nesses termos, parece ser esse entendimento de que “amar é faculdade, cuidar é dever” o que melhor se aplica à questão do abandono afetivo, tal como nos parece vem sendo acompanhado pela melhor doutrina e pela jurisprudência das cortes superiores.

Sobre a autora
Danielle Morais Araujo

Estudante de Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie

Informações sobre o texto

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