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A razão pública de Rawls no processo decisório judicial

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Agenda 15/06/2016 às 11:04

Esse artigo pretende analisar o conceito de ‘razão pública’ de Rawls, diferenciando-o da definição de ‘doutrina abrangente razoável’, estudando sua aplicação em uma sociedade democrática, em particular, na fundamentação das decisões dos magistrados.

A RAZÃO PÚBLICA DE RAWLS NO PROCESSO DECISÓRIO JUDICIAL

Paulo Ribeiro Soares de Ladeira[i]

 

Resumo: Esse artigo pretende analisar o conceito de ‘razão pública’ de Rawls, diferenciando-o do conceito de ‘doutrina abrangente razoável’, estudando sua aplicação em uma sociedade democrática, em particular, na fundamentação das decisões tomadas no Poder Judiciário, fazendo recomendações sobre como essas decisões devem ser redigidas e fundamentas à luz dos conceitos analisados.

Palavras-chave: Rawls. Razão pública. Doutrina abrangente razoável. Sentenças. Poder Judiciário.

 

“Minha função, como cientista social e filósofo é atravessar a selva que descreve a realidade tal como a percebemos e impor uma ordem conceitual. Esse esforço tem dois propósitos: fornecer um melhor entendimento do que observamos e lançar as bases para a melhora. Assim, na minha concepção, a produtividade social da análise abstrata é muito alta.”

(John Buchanan)[ii]

 

 

1.INTRODUÇÃO

 

Os elementos de convicção de uma decisão judicial possuem limites. É importante, portanto, delimitá-los, estabelecer suas fronteiras. A sociedade possui inúmeros valores, de inúmeras fontes: ideologias políticas, doutrinas religiosas, padrões éticos, filosofias tradicionais ou holísticas, etc.. Elas possuem um traço em comum: estabelecer normas de conduta, regras, ser uma fonte da qual os nossos conceitos de certo e errado bebem quotidianamente.

Um magistrado é um cidadão integrado em nossa sociedade. Ele possui suas ideologias e suas convicções, sua religião ou seu ateísmo, enfim, uma série de valores que formam o seu caráter e que lhe foram passados por anos de experiências em sociedade e em seus ambientes familiares. Sendo assim, é preciso esclarecer até que ponto pode um juiz de direito, em sua decisão, se deixar influenciar por tais convicções pessoais. Pois elas ali estão, não sendo possível ignorá-las, pois isso seria ignorar a si mesmo.

Na maioria dos casos a simples aplicação da norma é uma solução simples e válida, de tal forma que a questão apresentada nos parágrafos acima não seria um problema.  Mas, sendo o problema apresentado ao magistrado controverso, não havendo jurisprudência que tenha tratado de similares pretensões resistidas, sendo a lei pouco clara na regulamentação da questão, toda a experiência social do magistrado é colocada à prova. E assim sendo, parâmetros são necessários para que se possa estabelecer o que o magistrado pode usar ao decidir por equidade, por exemplo.

 

 

2.O CONCEITO DE RAZÃO PÚBLICA

 

Voltemos, portanto, à questão: como devem os juízes julgarem os casos controversos? Um positivista diria que fazendo uma nova norma, já um não-positivista diria que uma decisão nova é necessária[iii]. De qualquer forma, caberia a indagação se nesse processo o juiz pode apelar a seus sentimentos morais, às suas convicções religiosas ou políticas, às possíveis consequências econômicas de sua decisão (redução da inflação, alta ou baixa do dólar)?[iv] Rawls pretendeu solucionar esse problema ao apresentar o conceito de razão pública. Segundo Dworkin:

 

But Rawls developed a doctrine, which he called the doctrine of public reason, about the arguments public officials may properly use to justify their decisions, and he said emphatically that the doctrine of public reason applies with particular stringency to judges.[v]

 

A aplicação da razão pública, em Rawls, é um aspecto que garante aos juízes decisões imparciais, pois eles passam a basear suas decisões em valores políticos da sociedade, e não em valores morais ou filosóficos próprios.[vi] Ela é aplicável em todas as discussões realizadas em qualquer local político e público (chamados, por Rawls, de “fóruns políticos públicos”), inclusive no Poder Judiciário. Segundo o próprio Rawls:

 

It is imperative to realize that the idea of public reason does not apply to all political discussions of fundamental questions, but only to discussions of those questions in what I refer to as the public political forum. This forum may be divided in three parts: the discourse of judges in their decisions, and specially of the judges of a supreme court; the discourse of government officials, specially chief executives and legislators; and finally the discourse of candidates for public office and their campaign managers […].[vii] (grifo meu)

 

A razão pública aplicada aos juízes, entretanto, é a mais importante, conforme já foi dito aqui e segundo o próprio Rawls[viii], e é sobre ela que cabe estudo mais atento. Desconsideraremos, portanto, a sua aplicação a funcionários públicos do Poder Executivo e Legislativo, entre outros.  A aplicação desse conceito à atuação da magistratura manifesta-se como uma necessidade, pois confere maior legitimidade às decisões judicias[ix] e é uma necessidade da democracia deliberativa[x], ainda mais levando-se em consideração o princípio da igualdade[xi] – atitude também chamada por Rawls de reciprocidade[xii] - o qual traz a obrigatoriedade de se explicar de modo que o outro, visto como igual, compreenda as razões apresentadas. Nada mais resta senão concluir que a razão pública é a própria mantenedora da paz social em uma democracia:

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“Harmony and concord depend  on the vitality of the public political culture and on citizen's being devoted to and realizing the ideal of public reason.”[xiii]

 

O magistrado, ao fundamentar uma sentença, deve se concentrar na razão pública, evitando o que Rawls chama de doutrinas liberais abrangentes. Essas últimas são exemplificadas pelas doutrinas religiosas, morais e filosóficas, as quais, apesar de conflitantes entre si, são típicas do pluralismo razoável presente em toda democracia.[xiv] Concorda, inclusive, Dworkin:

 

The doctrine [of public reason], therefore, requires judges searching for a justification of the law's structure to avoid controversial religious, moral or philosophical doctrines.”[xv]

 

Eliminadas as doutrinas abrangentes razoáveis, resta averiguar qual o conteúdo a ser usado pela razão pública. Esse conteúdo é assim definido por Rawls:

 

Thus, the content of public reason is given by a family of political conceptions of justice, and not by a single one […]. Three main features characterize these conceptions:

 

Esses requisitos tem uma definição similar aos dois princípios da Justiça enunciados por Rawls em sua primeira obra[xvii]. Isolados, portanto, não se enquadram na razão pública, pois não necessariamente há um consenso político e social sobre eles, ou seja, são apenas uma espécie de doutrina abrangente razoável:

 

A Theory of Justice hopes to present the structural features of such a theory so as to make it the best approximation to our considered judgments of justice and hence to make it the best appropriate moral basis for a democratic society. Furthermore, justice as fairness is presented there as a comprehensive liberal doctrine (although the term “comprehensive doctrine” is not used in the book) in which all the members of well ordered society affirm the same doctrine. This kind of well ordered society contradicts the fact of reasonable pluralism and hence political liberalism regards that society as impossible.”[xviii] (grifo meu)

 

Não sendo possível que todos possuam a mesma ideologia e a mesma carga de valores em uma sociedade verdadeiramente democrática, o juiz deve se basear em um consenso social mínimo quando for necessário, por exemplo, decidir por equidade. Além dos conceitos básicos anteriormente citados por Rawls (estrutura democrática de uma sociedade livre e igual), há outros critérios que nos ajudam a definir o conceito de uma concepção política de justiça. Segundo o mencionado filósofo, são eles:

 

 

Sendo assim, qualquer princípio que esteja presente em mais de uma concepção ideológica que seja aceita por uma maioria da sociedade pode ser enquadrado no conceito de razão pública aqui analisado.

 

3.APLICAÇÃO PRÁTICA DO CONCEITO ANALISADO

 

O estudo da razão pública, com o esclarecimento de sua definição e aplicação no processo decisório judicial é de extrema importância, pois com ele define-se de que forma o juiz pode fundamentar suas decisões, mantendo a imparcialidade necessária para melhor alcançar a Justiça. A doutrina de Rawls causou grande influência no Judiciário estadunidense[xx], mas não só. Várias decisões são encontradas em que Rawls é citado também no Brasil. No Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em uma breve procura “online”, foram dados pelo sistema como resultado 157 acórdãos citando a Teoria da Justiça de Rawls como um dos fundamentos de suas decisões.  Eis alguns:  Apelação nº 9215319-95.2005.8.26.0000 (princípio da diferença citado ao julgar-se IPTU progressivo), Apelação nº 0000863-24.2010.8.26.0157 (princípio da diferença em Mandado de Segurança discutindo-se o fornecimento de medicamentos não padronizados pelos SUS), entre outros.

A importância da distinção entre doutrina abrangente razoável e razão pública fica nitidamente clara ao se analisar um voto do Min. Luis Fux  no período em que esteve no STJ. Eis um trecho:

 

29. Salvante o aspecto estritamente jurídico, a ciência do direito, na atualidade, convive com dois ramos destacados e que se sobressaem, a saber: a justiça econômica e a economia normativa, no dizer do John Rawls na sua célebre Teoria da Justiça.

29.1. Essa novel feição jurídica impõe que na solução das questões judiciais sejam considerados os dados econômicos das premissas e do resultado das decisões, porquanto pertencem ao campo da "justiça corretiva", diversa da "justiça distributiva" a que se referia Aristóteles.

(Eresp 705254 – PR, Min, Luiz Fux, Embargante Andrade e Martins LTDA, Embargado: Fazenda Nacional)[xxi]

 

Lendo-se o trecho acima, de forma isolada, não se percebe, mas o Ministro julgava uma pedido de restituição de Créditos de IPI. Sendo o princípio da diferença de Rawls, na própria visão de seu autor, uma doutrina abrangente razoável, pelo demonstrado acima, fica claro que não caberia seu uso como fundamentação em uma sentença a não ser que se trate de um consenso político e social que acabe por adentrar o conceito de razão pública (felizmente Rawls nunca foi o único argumento nessas decisões). Nenhum dos juízes acima, entretanto, argumentou no sentido do porquê esses princípios de Rawls seriam uma unanimidade no fórum político público nacional, para poder usá-los como fundamentação (exemplos de filósofos muito mais polêmicos, como Karl Marx, também podem ser encontrados em acórdãos do TJSP[xxii]), o que certamente revela a necessidade de um estudo aprofundado do conceito de razão pública no próprio Rawls, da diferenciação das doutrinas abrangentes e do porquê da sua aplicação no processo decisório judicial. Conceitos esses que também se revelam importantes por resvalar em temas como a imparcialidade do Judiciário, a legitimidade de suas decisões em uma democracia deliberativa como a nossa e a importância de sua fundamentação adequada dentro desse ambiente institucional.

 

 

4.A MUDANÇA NECESSÁRIA

 

Há o hábito, no ambiente do judiciário nacional, em se citar teóricos da filosofia jurídica e política, quiçá apenas com vistas a mostrar erudição, sem, entretanto, notar, muitas vezes, que tais atitudes podem ferir a própria imparcialidade do Judiciário, ao tratar de concepções por vezes não unânimes em um ambiente institucional democrático. A concepção de razão pública em Rawls revela uma maior preocupação com as decisões desses membros, os quais, apesar de não eleitos, devem se preocupar em decidir de forma que suas razões se revelem legítimas dentro de uma democracia deliberativa.

Não é difícil imaginar a repercussão social de um caso, especialmente se controverso, quando um juiz decide mencionando ideologias, principalmente se polêmicas. Sendo a função do judiciário a pacificação social, a sentença deve ser fundamentada de tal forma que não possa ser contestada pela parte condenada a cumpri-la, para que a lendo, entenda seus motivos, e cumpra-a de boa vontade. No atual momento de polarização partidária, imaginemos um juiz condenado um membro do PSDB citando algum documento da Fundação Perseu Abramo[xxiii], ou, invertendo o exemplo, condena um membro do partido dos trabalhadores citando algum livro do Fernando Henrique Cardoso. A sentença não cumpriria o objetivo de estar acima dessas polêmicas, pois não teria usado argumentos presentes na “razão pública” tal como definida por Rawls. 

Afinal, como disse o próprio:

 

“The politician, we say, looks to the next election, the statesman to the next generation, and philosophy to the indefinite future.”[xxiv]

 

5.REFERÊNCIAS

 

DWORKIN, Ronald. Rawls and the law. Fordham Law Review. Nova York, v. 72, n.5, p. 1387-1405, Abril 2004.

 

BUCHANAN, James M.. Freedom in Constitucional Contract: Perspectives of a Political Economist. College Station: Texas University, 1977. 

 

RAWLS, John. Collected Papers. FREEMAN, Samuel (ed.). Cambridge: Harvard University, 1999.

 

_______. O Direito dos Povos – seguido de a ideia de razão pública revista. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

 

_______. Political Liberalism. 3ª ed. Nova York: Columbia, 2005.

 

_______. Uma Teoria da Justiça. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

 

 

RAWLS’ PUBLIC REASON APPLIED TO JUDICIAL DECISION MAKING

 

Abstract: This article intends to analyze Rawls’ concept of “public reason”, differentiating it from the concept of “comprehensive liberal doctrine”, and studying how it should be used in a democratic society, mainly in the reasons a judge gives for his sentence, making recommendations on how such decisions should be drafted in light of the analyzed concepts.

Keywords: Rawls. Public Reason. Comprehensive liberal doctrine. Sentences. Justice.

                                                                                                                                                  

 

Sobre o autor
Paulo R. S. de Ladeira

Possui graduação em Direito pela Universidade de São Paulo (2010). Pós Graduação em Direito de Família e Sucessões pela PUCSP. Fundador da Advocacia Ladeira, onde atualmente trabalha como advogado, com atuação predominante em Direito de Família e Sucessões. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Possui entrevistas (web, jornal e televisão), livros e blog na área. www.advocacialadeira.com

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