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Estranho discurso em torno da DRU

Agenda 02/10/2016 às 14:24

Uma ação que o governante vai elaborando dia a dia, de acordo com os interesses do momento. Em outras palavras, nada de controle, nada de limites; "O orçamento anual é aquilo que eu, governante, desejo que seja"; "O Estado sou eu!".

Para quem conhece noções elementares de direito financeiro, mais precisamente do direito orçamentário, é difícil de compreender as manifestações favoráveis dos políticos em geral, com o apoio até de economistas e da  mídia, em torno da Desvinculação de Receitas da União, conhecida pela sigla DRU. Na verdade, a DRU é um funesto instrumento de mexer, remexer e desmontar o orçamento anual aprovado pelo Parlamento, permitindo gastos sem fiscalização e controle, gastos esses,  quase sempre, bem distantes dos interesses públicos, pelo menos daqueles encampados pela vontade soberana do povo que são exatamente os revelados pelo exame da Lei Orçamentária Anual – LOA.

Para que todos possam entender, com a devida licença dos doutos,  é preciso que se explique em palavras simples e objetivas o que é o orçamento anual, como ele surge e para que fim ele existe. Em seguida discorrer, em rápidas pinceladas, como se dá sua execução orçamentária e quais os mecanismos de fiscalização e controle dessa execução. Finalmente,  explicar a origem da DRU com sucessivas prorrogações de 4 em 4 anos e o que na prática ela representa, para que os leitores possam optar conscientemente pela sua aprovação ou sua rejeição.

O que é orçamento anual

É uma estimativa de receitas, de um lado, e fixação de despesas, de outro lado, no mesmo montante da receita prevista. Deriva da proposta orçamentária de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo, que dispõe de milhares de órgãos e servidores, qualificados ou não, para analisar a conjuntura nacional e as legislações tributárias em vigor, bem como para examinar as execuções dos orçamentos dos anos anteriores para poder estimar o montante das receitas que fique tanto quanto possível  no patamar próximo da realidade. Em seguida, cabe ao governo que conhece a realidade nacional eleger as prioridades da sociedade e formular um plano de ação governamental para o ano seguinte, direcionando o montante da arrecadação estimada para esses setores prioritários. Essa proposta orçamentária leva, ainda, em conta o superávit primário (recursos para pagamento de juros da dívida pública) e o superávit nominal (diferença entre a receita global e a despesa total) previstos na Lei de Diretrizes Orçamentária – LDO – que precede a elaboração do projeto da LOA. Portanto, o exame da proposta orçamentária possibilitará prever o crescimento ou o decréscimo do PIB no exercício a que se refere.

Essa proposta é enviada pelo Presidente da República até o dia 31 de agosto de cada ano ao Congresso Nacional, que deverá aprová-la até o final da sessão legislativa, para que o orçamento anual possa ser executado a partir do dia 1º de janeiro do ano seguinte. O Legislativo praticamente não tem o poder de modificar a proposta orçamentária recebida. Sua alteração depende de demoradas negociações entre os dois Poderes na base do “dá cá e toma lá”,  resultando no envio de mensagens aditivas pelo Executivo para adequar a proposta original. São as chamadas “emendas parlamentares”. Os recursos oriundos dessas “emendas parlamentares” vinham sendo contingenciados pelo Executivo, fato que causou a indignação dos parlamentares, que revidaram com a apresentação da PEC que institui o orçamento impositivo, isto é, obriga o governo a exaurir as verbas consignadas no orçamento não mais se limitando à autorização de despesas. Aprovada a proposta por meio de uma lei especial de caráter concreto, para valer por um ano, significa que todas as despesas fixadas nas diferentes dotações foram legalmente autorizadas, atendendo ao princípio da legalidade das despesas, um corolário do princípio da legalidade tributária. Quem consente na arrecadação de tributos, consente igualmente na destinação desses recursos. Nesse sentido a LOA é um instrumento de exercício da cidadania.  Por isso, despesas sem autorização legal configuram crime de responsabilidade, pelo menos é o que continua consignado na Lei nº 1.079/51,  recepcionada quase na íntegra pela Constituição de 1988. Mas, na prática, é a violação mais frequente desde o descobrimento do Brasil por Pedro Álvares Cabral, segundo ensina a história. Antes que me acusem de ser contrário ao impeachment em curso, abro parênteses para dizer que esse impedimento resultou do clima de ingovernabilidade a que foi conduzido o País pela governante que  atentou violenta e ostensivamente contra a probidade na Administração, não  reprimindo atos reprováveis de seus subordinados, mas, ao contrário, prestigiando-os,  e procedendo de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro no exercício do cargo (art. 10 da Lei nº 1.079/51). Foi isso que levou ao clamor popular. O povo nem sabe o que é abertura de crédito adicional suplementar, nem o que é  pedalada, até hoje, sem um conceito uniforme e preciso, como exige a ciência do Direito,  mas  o povo  sabe descobrir e sentir  as intermináveis  safadezas governamentais que crescem  em uma velocidade nunca vista.

Mecanismo de fiscalização e controle da execução orçamentária

Como a vontade popular está expressa na Lei do Orçamento Anual – LOA – a Constituição prevê mecanismos de fiscalização e de controle da execução orçamentária, para evitar desvios de recursos financeiros para outros fins – lícitos ou ilícitos – que não estejam contemplados nas diversas dotações orçamentárias que podem ter suas verbas remanejadas pelo Executivo até o percentual prefixado pela LOA. Além desse limite, o remanejamento depende de prévia autorização legislativa.

A fiscalização é exercida pelas centenas de órgãos internos, dentre os quais a extinta Controladoria Geral da União – CGU –, que deu margem à criação do Ministério da Transparência. Por ironia  ou não, o Ministro da Transparência não conseguiu se afirmar no cargo caindo em desgraça nos primeiros dias de seu exercício. Sempre desconfiei que excesso de transparência traz resultados imprevistos. Daí o velho hábito de empurrar toda a sujeira para debaixo do tapete. A CGU, hoje Ministério da Transparência, exerce o chamado controle administrativo ou o controle interno. O controle externo ou o controle político é aquele feito pelo Congresso Nacional com auxílio do Tribunal de Contas. Raramente se faz o controle concomitante, muito menos o preventivo, ficando sempre no exercício do controle a posteriori, que, às vezes, consegue detectar as barbaridades cometidas pelo governo na realização da despesa pública, que nada tem a ver com o interesse público espelhado na LOA. Em outras palavras, o TCU e o Congresso Nacional limitam-se a constatar o estrago feito, o que não é exatamente o papel que lhes cabe. Já imaginou um policial que fica assistindo ao crime acontecendo para, depois de consumado o crime, dar a voz de prisão? Certamente a vítima ficaria inconformada!  Existe, ainda, o chamado controle social a ser exercitado por qualquer  partido político, cidadão, associação ou sindicato. Muito bonito, mas de pouco uso.  O Ministério Público não está incluído entre os órgãos competentes para fazer esse controle social, mas o MP paulista está movendo ação de improbidade contra o atual Prefeito por desvio de fabulosos recursos arrecadados a título de multas de trânsito, que crescem como bolas de neve por conta de sofisticados radares de última geração importados e de intermináveis alterações bruscas das velocidades permitidas que surtem duplo efeito: de um lado, engordam mais e mais as multas; de outro lado, engordam os fabricantes de placas que devem estar adorando o atual Prefeito.

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Se os mecanismos de fiscalização e controle da execução orçamentária funcionassem a contento, a LOA seria, de fato e de direito, um instrumento de exercício da cidadania, como deveria ser.

O que é a DRU

DRU significa Desvinculação de Receita da União, isto é, verbas que ficam desvinculadas da LOA, formando um fundão para serem gastas não segundo a prescrição legal, mas à discrição do governante. Está prestes a ser aprovada a PEC que prorroga a DRU, vencida em dezembro de 2015, até o ano de 2023. Vem com nova roupagem: aumentou o prazo que era de 4 anos para 8 anos e o percentual de desvinculação que era de 20% para 30% do montante da arrecadação tributária da União, incluindo as contribuições da Seguridade Social que financiam a Previdência, a Saúde e a Assistência Social. Vale dizer, 30% dos recursos da Previdência são retirados mensalmente, o que não casa com o discurso da Reforma da Previdência para salvá-la. Por isso que sempre digo:  parem de roubar os recursos dela!

Como surgiu a DRU?

A origem da DRU está no Fundo Social de Emergência, criado pelo governo FHC, por meio da Emenda Revisional de nº 1/94 para atender a uma situação emergencial. Por conta do impeachment do Presidente Collor, o Congresso só conseguiu aprovar a LOA de 1994 no final do exercício pela Lei nº 8.933, de 9 de novembro de 1994. Como não se pode gastar sem autorização legislativa,  a solução encontrada foi a de criar um fundão – FSE – formado com a desvinculação de 20% do produto de arrecadação de  todos os tributos da União, para vigorar nos anos de 1994 e 1995. Havia, pois, fundamento razoável para excepcionar a incidência do princípio da legalidade das despesas. Acontece que gastar à vontade, sem as amarras da lei, aguçou o apetite do governante, que resolveu prorrogar esse fundão com o nome de Fundo de Estabilização Fiscal – FEF – por meio da EC nº 1096. Outras Emendas foram patrocinadas por sucessivos governantes, as  ECs ns.  17/07, 27/00, 42/03, 56/07 etc. A partir da EC nº 27/00 esse fundão perdeu a sua denominação para não dar a ideia de que o País ainda estava no regime de estabilização financeira, passando a ser conhecida pela sigla DRU que, agora, vem com 30% de desvinculação, ou seja cerca de R$ 886.063 bilhões que ficam  a salvo do controle e da  fiscalização da execução orçamentária. Por que? Porque não é possível aos órgãos de controle e fiscalização acompanhar os gastos realizados  sem  identificação dos elementos de despesas.

Para os leigos explico melhor da seguinte forma: quando um chefe de família coloca R$1.000,00  em um saco e entrega ao filho menor para prover suas despesas durante um mês, o pai não tem como controlar as despesas do filho. O máximo que ele pode fazer é esvaziar diariamente o saco e contar quanto dinheiro sobrou, mas, nunca saberá no que foi gasto o dinheiro faltante. Agora, se o pai colocar no saco esses mesmos R$1.000,00 contendo a discriminação de despesas a serem feitas no mês (100,00 para alimentação; 400,00 para aquisição de livros; 300,00 para aquisição de roupas e  200,00 para diversões em geral), com a observação de que não poderá utilizar o dinheiro de um item para custear despesas de outro item, sem prévia autorização do pai, será sempre possível fiscalizar e controlar as despesas do filho. Isso se chama orçamento, em contraposição à primeira hipótese, que corresponde à DRU. Pergunte a seu filho menor: qual forma ele prefere? Evidentemente, a primeira. É o que o governo vem fazendo desde 2006, desfazendo 20%, e agora 30%, do orçamento por ele elaborado e aprovado pelo Parlamento em nome do povo.

Por que  orçamento aprovado pelo Congresso não serve para implementar o plano de ação  governamental se a proposta orçamentária foi apresentada pelo Chefe do Executivo? De duas uma: (a) ou o governo, desde 1966, vem fingindo que está formulando um plano de governo, elegendo as fictícias prioridades da sociedade refletidas na proposta orçamentária enviada ao Congresso Nacional; (b) ou o governo depois de referendado esse plano de governo mediante aprovação da LOA quer dele se desfazer, para substituir por um outro plano de governo. Um plano que não é plano, isto é, uma ação governamental que o governante vai elaborando dia a dia de acordo com os interesses do momento. Em outras palavras, nada de controle, nada de fiscalização, nada de freios, nada de limites. O orçamento anual é aquilo que eu, governante, desejo que seja. O Estado sou eu.

No fundo, é isso que todos os políticos estão aplaudindo no pressuposto de que o governo de um só é o melhor. Muitas cabeças pensantes dando palpites acerca das prioridades da sociedade atrapalham. E quando o povo começa a manifestar seus desejos, então tudo piora e o  caos se instaura. O melhor regime é o autocrático! É o que, na realidade, pensam os congressistas. A aprovação da LOA é uma mera formalidade constitucional. Ela não serve para concretizar os planos de governo, porque ela não está voltada para a realidade nacional.

Esse sumiço de 30% da arrecadação que atinge  as contribuições sociais, inclusive, as de seguridade social (art. 195, incisos I a IV da CF) é melhor do que aumentar impostos que, além de desagradar o povo, obriga  a União a  repartir 48% do produto de sua arrecadação com os Estados, Municípios, DF e regiões N, ND e CO (IPI e IR). Essa sumição é intransparente. O Ministério da Transparência não consegue detectá-lo e é, também, invisível aos olhos da população leiga, que sabe muito bem da miséria que vem sofrendo, mas  é absolutamente incapaz de associar uma coisa à outra.

Espero que tenham entendido o sentido da DRU que veio para ficar. Provisória  na origem, tornou-se permanente ante a facilidade que ela propicia para desvios de recursos orçamentários. Ganhou da CPMF no tempo e nos efeitos maléficos.

Sobre o autor
Kiyoshi Harada

Jurista, com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HARADA, Kiyoshi. Estranho discurso em torno da DRU. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4841, 2 out. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/49987. Acesso em: 24 nov. 2024.

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