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Pelo controle externo da OAB

Agenda 17/03/2004 às 00:00

O diagnóstico está certo — a Justiça é, sem dúvida, a mais grave doença do país. Mas a terapia está completamente errada — o controle externo do Judiciário não cura o Brasil. Culpar o Judiciário pela inexistência de Justiça no país é o mesmo que responsabilizar exclusivamente o médico pelas mazelas do sistema de saúde. Os Tribunais de Justiça, a exemplo dos hospitais de urgência, só cuidam do cidadão depois que ele passa pelas mãos dos responsáveis pelo atendimento básico de seus direitos — geralmente policiais, advogados e promotores. Controlar o juiz — o último elo na cadeia da Justiça — não torna o promotor mais escrupuloso, o advogado mais ético e o policial mais investigativo. É como tentar pôr um telhado numa casa sem alicerces.

Irresponsavelmente, várias autoridades brasileiras, inclusive juízes, convenceram a nação de que o Poder Judiciário é uma caixa-preta necessitando de controle. Essa idéia, que partiu de advogados, espalhou-se entre promotores e encontra guarida na própria magistratura, é — sem qualquer sombra de dúvida — uma das mais apelativas demagogias de toda a história do Brasil. Todavia, mesmo aventado em governos passados, — sempre que o Executivo queria mais poder, — o controle externo do Judiciário só veio a tornar-se uma obsessão no atual governo. De repente, o controle externo tornou-se o novo "emplastro Brás Cubas", a panacéia universal do "defunto-autor" de Machado de Assis — controle-se o Judiciário, e o Brasil estará completamente salvo de seu eterno descontrole.

Com um misto de inocência e demagogia, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva acreditou piamente neste "emplastro Brás Cubas" institucional e, com sua costumeira linguagem pedestre, tem-se empenhado em difamar o Poder Judiciário. Para perpetrar esse perigoso acinte aos fundamentos da República, o presidente Lula contou com a entusiasmada anuência de seu ministro da Justiça, o advogado Márcio Thomaz Bastos, Conselheiro Acácio do mundo jurídico brasileiro. Entre outras medidas estapafúrdias, francamente inconstitucionais e indignas do jurista que diz ser, Thomaz Bastos criou até uma secretaria de controle externo do Judiciário no âmbito do Ministério da Justiça. Com isso, preparava o terreno para a ditadura institucional que o seu patrão, o presidente Lula, tenta implantar no país.

O controle externo do Judiciário não passa de um AI-5 disfarçado. Prova disso é que está sendo discutido no período de recesso do Legislativo, quando o Congresso Nacional reúne-se às pressas e vota somente o que o governo quer. Se Fernando Henrique Cardoso, num dos momentos mais infelizes de seu governo, resolvesse propor o controle externo do Judiciário em pleno período de recesso parlamentar, sem dúvida seria chamado de ditador pelos petistas que hoje estão no governo. Isso se não fosse tachado de fascista. Merecidamente, aliás. Porque o controle externo do Judiciário, ao contrário do que se imagina, não vai melhorar a Justiça — vai apenas hipertrofiar ainda mais o poder do Executivo. Na melhor das hipóteses, será inócuo. Se funcionar, rasgará a Constituição, instituindo o fascismo no país.

Com a megalomania típica dos que datam o mundo de si mesmo, o presidente Lula quer recriar a República, desprezando uma tradição que remonta ao Iluminismo e superou as mais diversas intempéries históricas nos mais distintos países. A República já nasceu relativizando os poderes, que eram absolutos na unicidade do rei. Na verdade, todos os poderes da República já são controlados externamente: o Executivo é fiscalizado pelo Legislativo; o Legislativo é controlado pelo eleitor; o Judiciário é acompanhado pelas partes (representadas por advogados e promotores). Já o Ministério Público é controlado por sua própria essência — como não tem o poder de decisão, só de demanda, sua ação já é autocrítica em si, fornecendo à opinião pública (especialmente aos advogados, a parte contrária) os elementos necessários a seu controle externo.

E, para completar o ciclo dos controles externos que fundamentam o sistema republicano, é essencial perceber que, do ponto de vista da gestão financeira (um dos motivos alegados para o cerco ao Judiciário), todos os poderes e órgãos da República ainda são submetidos a um outro controle — a fiscalização dos tribunais de contas. Nem o Poder Judiciário escapa desse crivo contábil. Ou seja, não há poder no Brasil que já não seja controlado externamente. E se esses controles falham (como sempre falhou o controle do eleitor sobre o Legislativo), não é por falta de lei, mas por falta de cultura cívica — algo que não se cria com uma emenda ditatorial aprovada por um Congresso servil.

Apenas uma instituição no Brasil não tem qualquer espécie de controle — a Ordem dos Advogados do Brasil. A OAB está acima da Constituição. Ela tem o direito de integrar os supremos poderes da República, mas não admite o dever de ser fiscalizada como todos os demais poderes. Enquanto os demais conselhos profissionais, como o Conselho Federal de Medicina, e até o Judiciário e o Legislativo se submetem à fiscalização do Tribunal de Contas da União, a OAB não dá satisfação a ninguém — ela jamais aceitou ter suas contas vistoriadas pelo TCU. No entanto, essa mesma instituição que se recusa a ser fiscalizada, terá assento no Conselho Nacional de Justiça — o órgão inconstitucional que está sendo criado pelo Executivo para controlar o Judiciário e oprimir a nação.

O poder supremo da OAB — que, repito, está acima da própria Constituição — nasce com a "República dos Bacharéis", velha conhecida da sociologia nacional. Historicamente, o conhecimento costuma pôr-se a serviço do poder, mas, no Brasil, essa tendência é mais do que um fato histórico — é a doença nacional. Na Europa e nos Estados Unidos, a busca do conhecimento precedeu sua titularidade — primeiro Sócrates pensou o mundo, só depois é que Platão se fez "acadêmico". E, nos Estados Unidos, Tomas Edson foi um dos maiores cientistas da história do país sem ter freqüentado universidade. No Brasil, a titularidade precede o conhecimento — primeiro, o sujeito se empenha em conquistar títulos; só depois, vê se sobra tempo para arranjar conhecimento.

Ainda que não seja a única a sofrer da síndrome do bacharelismo, a advocacia é a profissão que melhor encarna a República dos Bacharéis. No século XIX, quando o Brasil se torna efetivamente um país e começa a se ver como nação, o direito, a medicina e a engenharia tornam-se as artes liberais por excelência, conferindo muito prestígio ao advogado, ao médico e ao engenheiro. Até meados do século passado, essas três categorias profissionais ajudaram a forjar o Brasil tal como ele é — desigual como todo país, mas profundamente injusto como nenhum outro. Macaqueando o pensamento europeu, esses bacharéis — advogados, médicos e engenheiros — criaram um Brasil de papel, em que leis perfeitas e projetos mirabolantes escondem um país precário habitado por um povo mambembe.

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Na verdade, a própria legislação no Brasil não passa de um projeto. Exemplo disso é a própria Constituição de 88, que prescreveu até taxas de juros, como se a concreta volatilidade do mercado pudesse ser regulada pela pretensa durabilidade da lei. Ao contrário do direito anglo-saxão, onde a lei é decorrência dos costumes, no Brasil, a lei é uma carta de intenção — mais do que prescrever normas, expressa um desejo. "Saúde é direito de todos e dever do Estado" — prescreve o desejo constitucional. Sem, no entanto, jamais entrar em vigor, porque é imediatamente revogado pela própria medicina preventiva: como é que o Estado vai garantir o direito à saúde de uma pessoa se ela própria não se sente no dever de preservá-la?

A cada idealismo transformado em lei, a Justiça foi sendo desmoralizada no país. Se uma lei tem poucas chances de ser cumprida, para tirá-la do papel só arregimentando batalhões de advogados os promotores. Daí a força dos juristas, especialmente dos advogados, que se alimentam de infinitos processos judiciais — o verdadeiro problema da Justiça. A corrupção do Judiciário, quando ocorre, dá-se nas entranhas do processo, entre um recurso e outro, quase sempre com a participação de advogados, como mostrou a reportagem "Doutores do Crime", publicada pela revista Época, em 26 de janeiro deste ano. Só o traficante Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, chegou a receber a visita de 24 advogados em apenas um mês. Onde estava a OAB que não viu a óbvia infração de seu Código de Ética nesta acintosa formação de quadrilha?

Obviamente, a Ordem dos Advogados do Brasil é uma instituição respeitável, dirigida por homens probos, que nada tem a ver com os criminosos togados que trabalham para Fernando da Costa. Tanto é que, segundo Época, só no ano passado, a OAB expulsou 33 advogados cariocas, sete deles envolvidos com o trafico. Mas não basta a OAB fechar a porta depois de arrombada a casa — ela precisa rever princípios, evitando a ação dos advogados criminosos. O advogado não pode ter livre acesso aos presídios, como se fosse um ser isento de pecado. Da mesma forma que o presidente da República põe capacete quando visita um canteiro de obra, ou usa máscara quando visita uma UTI, também o advogado, como qualquer outra pessoa, precisa passar por revista quando entra numa penitenciária. Ou a OAB acha que todo advogado é santo e está imune à insalubridade ética dos presídios?

É possível que ela pense assim e, nesse ponto, a histórica Ordem dos Advogados do Brasil torna-se, indiretamente, cúmplice dos mais abjetos criminosos do país. A reportagem de Época mostrou que muitos advogados sequer prestam serviços jurídicos aos traficantes — são regiamente pagos para funcionar como pombos-correios do crime organizado, contribuindo para que os bandidos, mesmo presos, continuem mantendo o controle do tráfico de drogas e de armas. Esses fatos levaram o advogado Miguel Reale Júnior, com uma coragem rara entre seus pares, a afirmar, também à revista Época, de 2 de fevereiro (p.26): "Onde existe juiz corrupto, existe um advogado corruptor. Deve haver uma atuação mais rígida da OAB neste campo". Diante da pergunta da revista, "se falta firmeza da OAB para lidar com advogados bandidos", Miguel Reale Júnior foi taxativo: "Em alguns casos, sim" (p.26).

Sem dúvida, Miguel Reale Júnior tem razão. Se todos os demais operadores do direito fossem honestos e a corrupção dependesse só do juiz, provavelmente não haveria corrupção no Brasil, porque o magistrado, sozinho, é quase incapaz de fazer corrupção. A lei não permite ao juiz ir atrás dos crimes, e os processos não têm pés para caminhar sozinhos até os tribunais. Em praticamente todos os casos de corrupção de juízes denunciados na imprensa, sempre se vê a presença de advogados e policiais. Quando um juiz vende uma sentença, quem propõe a compra nunca é o criminoso diretamente, mas o seu advogado. O criminoso despertaria suspeitas se fosse visto conversando com o juiz fora das audiências. Já o advogado tem esse privilégio e pode propor a compra da sentença sem dar na vista. Até porque a estrutura da Justiça brasileira institui — desde as faculdades de direito — amizades muitas vezes nocivas entre juízes e advogados. O ideal é que esses profissionais não se misturassem, porque — muito ao contrario do que se pensa — advocacia e magistratura são duas atividades incompatíveis. A missão do magistrado é sempre fazer justiça; a do advogado, às vezes, é burlá-la.

Daí a provável inutilidade do controle externo do Judiciário. Ele não toca no espírito corporativo da Justiça brasileira, assim como a proposta de Reale Júnior. Professor da USP e ex-ministro da Justiça no governo Fernando Henrique Cardoso, Miguel Reale Júnior chega a defender o controle externo da OAB. "O Conselho de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil deveria ter magistrados e promotores", afirma o jurista. (Na revista foi publicado "magistrados e advogados", mas só pode ter sido erro de edição, como mostra a seqüência da frase do entrevistado.) No entender de Miguel Reale Júnior, "tem de ser uma via de mão dupla": "Se os advogados requerem participação nos órgãos de controle da magistratura e do Ministério Público, deve haver representação da magistratura e do Ministério Público na comissão de ética dos advogados" (Época, p.26). Essa proposta não deixa de ser um grande avanço, mas ainda é tímida. Sem contar que ela estimula uma perigosa promiscuidade entre advogados, promotores e juízes, intensificando ainda mais outro gravíssimo problema do Brasil — o excessivo corporativismo da Justiça toda e não só do Judiciário.

Como conseqüência do viés bacharelesco da cultura brasileira, criou-se no país uma Justiça excessivamente calcada no diploma de bacharel em direito. A Justiça tornou-se privativa de juristas. Assim como os militares não se misturam com os civis, a quem chamam de "paisanos", os operadores do direito não se misturam com os demais cidadãos, a quem chamam de "leigos". Daí o riso de desdém dos juristas cada vez que vêem um cidadão comum defendendo a pena de morte. Com a empáfia típica de quem incrusta o diploma como ornato não assimila o direito como nutrição (parafraseando Machado de Assis), os juristas negam ao leigo o direito de defender a pena de morte, como se o valor moral — do qual o direito nasce — não igualasse os homens perante a ciência. Diante do filho morto por assaltantes, a dor de uma mãe analfabeta não dói menos apenas porque ela não leu os tratados jurídicos de Beccaria que vêem na pena de morte uma vingança bárbara. Logo, do ponto de vista moral, a defesa que esta mãe faz da pena de morte tem o mesmo valor do libelo de Miguel Reale, pai, contra esse instituto penal.

Mas no Brasil bacharelesco as coisas não são vistas desta forma. E a OAB tem grande parcela de culpa nisso. Mais do que qualquer outra instituição, ela contribuiu para transformar os juristas em pessoas mais iguais do que as outras. Quem achar que é exagero fazer esse tipo de afirmação, basta atentar para a própria história da OAB. A Ordem dos Advogados do Brasil começou a nascer em 7 de agosto de 1843, quando o imperador Dom Pedro II aprovou os estatutos do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros. Nos referidos estatutos, estabeleceu-se que o objetivo do instituto — como seu próprio nome indicava — era criar a Ordem dos Advogados do Brasil. Mas a OAB só seria criada quase 100 anos depois, no dia 18 de novembro de 1930, através do Decreto 19.408, que lhe deu poderes de "seleção" dos advogados e "disciplina" do exercício profissional, incluindo o direito de votar seus próprios estatutos, que deveriam ser aprovados pelo governo.

Até aí, tudo bem. Antes de se regulamentar a profissão de médico, pessoas sem o menor pendor para a profissão ingressavam na Faculdade de Medicina, prejudicando a profissão e a ciência. Foi o caso do poeta Olavo Bilac, que, aos 15 anos, entrou por apadrinhamento na Faculdade de Medicina da corte. Felizmente, Bilac percebeu que sua vocação era ouvir estrelas e não tratar doentes — abandonou o curso e dedicou-se à poesia. Da mesma forma, antes da criação da OAB, qualquer um podia ser advogado no país. O advogado e, depois, desembargador, André de Faria Pereira, que convenceu Oswaldo Aranha (ministro de Getúlio Vargas) a criar a OAB, conta que advocacia se tornara um escoadouro de "egressos de penitenciária" e "comerciantes falidos", que faziam concorrência aos advogados sérios (Sodré, 1975, p.239). Ou seja, as corporações profissionais, como a OAB, não nascem apenas para atender seus próprios interesses, mas também em função de uma ética pública, que ajudam a construir, beneficiando a sociedade.

O problema é que os interesses da profissão acabam se sobrepondo aos interesses da sociedade, gerando o corporativismo. A Ordem dos Advogados do Brasil é quem mais padece dessa doença — a OAB é extremamente corporativa. A começar por sua própria constituição. Filha da ditadura de Getúlio Vargas, que a criou por decreto, a OAB, em seu corporativismo, chega a ser totalitária. Como o feroz Jeová bíblico diante do aterrorizado povo hebreu, a OAB diz aos seus filiados: "Não terás outros deuses diante de mim". E, na prática, proíbe seus filiados de terem sindicatos, contrariando, frontalmente, a Constituição da República, que garante o livre associativismo. Em 1953, a OAB chegou a elaborar um anteprojeto de lei, apresentado à Câmara dos Deputados por um parlamentar, conferindo prerrogativas sindicais a si mesma e proibindo os advogados de serem filiados a qualquer sindicato. Diante de sua flagrante inconstitucionalidade, o projeto acabou sendo arquivado.

Hoje, na legislação que rege o exercício da advocacia, prevê-se laconicamente a existência de sindicatos de advogados. Mas, na prática, eles não existem. Como reconhece o advogado Ruy de Azevedo Sodré, no livro A Ética Profissional e o Estatuto dos Advogados, quando viu que não seria possível impedir, por lei, a sindicalização do advogado, a OAB preferiu lançar mão de outra estratégia — deixou "aberta a porta da sindicalização", mas, ao mesmo tempo, tornou-a "de um lado vazia, de outro onerosa" (p.569). As palavras entre aspas são do próprio Ruy Sodré, que, aliás, foi o autor intelectual do anteprojeto rejeitado. Todavia, mesmo arvorando-se a ser também sindicato, a ponto de tentar ferir a Constituição com esse objetivo, a OAB, quando se mete nos Tribunais de Justiça, inclusive no Supremo, através do quinto constitucional, garante que seus representantes jamais pensam em interesses classistas — só no bem do Brasil.

Só mesmo os filhos do acaciano Rui Barbosa para acreditarem nesse conto da carochinha. É mais do que óbvio que os conselhos profissionais são incompatíveis com a atividade sindical. Por uma razão muito simples: o conselho representa a profissão, enquanto o sindicato representa o profissional — e quase sempre os interesses da profissão (que devem ser os da sociedade) ferem os interesses do profissional (que tendem a ser os do seu bolso). Ora, a função do sindicalista (que se ocupa de salário) é incompatível com a função do conselheiro (que se ocupa de ética). Os médicos goianos, por exemplo, são obrigatoriamente filiados ao Conselho Regional de Medicina, que regulamenta a profissão, mas também podem se filiar ao Sindicato dos Médicos, que brigam por seu salários. Com que autoridade o CRM goiano fecharia a UTI do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás, como fizeram recentemente, se ele também exercesse a função de sindicato dos médicos? Sem dúvida, ficaria a suspeita de que fechara a UTI não em nome da saúde dos pacientes, mas em defesa do salário de seus filiados.

Pois é nisto que a OAB quer que o Brasil acredite — que ela tem a pureza dos anjos e, ao sentar-se no Conselho Nacional de Justiça, para controlar o Judiciário, jamais o fará em nome dos interesses corporativos, que tão maquiavelicamente representa, mas apenas em nome dos anseios mais nobres do país. Ora, senhores conselheiros da Ordem, não abusem da inteligência da nação! Se os senhores têm tanto interesse na transparência de instituições alheias, por que não aclaram a própria? Passa da hora de a OAB entrar na ordem institucional do país, submetendo-se à Constituição da República como todo mundo e admitindo que o Tribunal de Contas da União aprecie suas finanças, como ocorre com os conselhos de Medicina, de Engenharia, de Farmácia, enfim, com todos os demais conselhos profissionais do país.

Do modo como foi instituída no Brasil, a OAB é quase uma anomalia jurídica. Prova disso é que governos democráticos relutaram em criá-la — coube à ditadura de Getúlio Vargas o papel de instituí-la por decreto. Ou seja, a OAB, que se vende como heroína da liberdade, é filha direta do arbítrio. Nenhum governo, antes de Getúlio Vargas, aceitou criar a OAB nos moldes que os advogados pretendiam instalá-la, por entender que ela feria o livre exercício das profissões, inscrito na Constituição de 1891. O decreto de criação da OAB determinou que o Instituto dos Advogados, que precedeu à Ordem, seria o encarregado de elaborar os estatutos que regem a profissão. Portanto, os próprios advogados criaram as normas que regem sua profissão, sem precisar submetê-las ao Congresso Nacional.

De 1931 até 1963, portanto, durante 32 anos, os estatutos da OAB foram baixados por decreto, mesmo tendo enorme influência na vida nacional. E o que mais grave: esses decretos, legislando em causa própria, concediam total autonomia à própria entidade. Eu pergunto: é ou não é uma aberração jurídica um decreto de uma entidade corporativa valer mais do que a própria Constituição do país, ao arvorar-se a conferir autonomia a si mesma? Não se deve esquecer que a autocracia da OAB, ao longo de 17 anos, feriu uma Constituição democrática — a Constituição de 1946, promulgada por uma Assembléia Nacional Constituinte. Só em 1963 é que o Estatuto da OAB foi apreciado pelo Congresso Nacional e se tornou lei, ganhando legitimidade.

Sempre que quer gozar de benefícios públicos, a OAB afirma-se como serviço público federal. Mas na hora de submeter-se ao Tribunal de Contas da União, ela nega que seja autarquia, como os demais conselhos profissionais. Diante desta conveniente crise de identidade, já na década de 50, o desembargador Amorim Lima, então presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, assim observou sobre a OAB: "Se não é pessoa jurídica, quer de direito público, quer de direito privado; se não se reveste de organização sindical; se não é autarquia ou entidade paraestatal (…), não se situa a Ordem dos Advogados do Brasil no quadro da organização jurídica do país. Afirmar-se, por outro lado, que a Ordem constitui serviço público federal, para o fim de gozar imunidade tributária total, será afirmar o atributo sem o sujeito; a atribuição ou função, sem o órgão" (Sodré, 1975, p.253).

Na época, o deputado e jurista Milton Campos, que foi o relator do projeto do Estatuto da OAB, respondeu, em defesa da entidade: "Vem, assim, a Ordem existindo como ente moral inominado, como realidade válida à margem das classificações" (Sodré, 1975, p.254). Mas o que para ele e os demais advogados é motivo de regozijo, para os demais cidadãos brasileiros, súditos da Ditadura dos Bacharéis, é caso de absoluta perplexidade — ora, se a Ordem dos Advogados do Brasil é um "ente jurídico inominado", como reconhece Milton Campos, então, ela não faz parte da organização jurídica do país. Logo, ou a OAB está acima da lei, ou é fora da lei. Que escolha — urgentemente — a classificação que melhor lhe convém. Uma instituição que ainda não encontrou seu lugar na ordem jurídica não pode controlar a própria Justiça.

Sobre o autor
José Maria e Silva

Jornalista graduado pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e Mestre em Sociologia também pela UFG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, José Maria. Pelo controle externo da OAB. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 253, 17 mar. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4999. Acesso em: 22 nov. 2024.

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