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O princípio da insignificância e os crimes contra o sistema financeiro nacional

Agenda 19/03/2004 às 00:00

Salta aos olhos que o furto de um batom é conduta insignificante, mas o que dizer de um descaminho em que os produtos têm o valor total de R$ 1.000,00 ou R$ 2.000,00 ou da sonegação de R$ 500,00 de impostos? O que seria, nesses casos, lesão significativa ao bem jurídico protegido?

Sumário: 1. O caráter fragmentário do Direito Penal. 2. O princípio da insignificância ou da bagatela. 3. A subsidiariedade como baliza para a insignificância. 4. Os crimes contra o sistema financeiro nacional. 4.1 Informações falsas em contrato de câmbio. 4.2 Sonegação de cobertura de cambial.


1. O caráter fragmentário do Direito Penal

A República Federativa do Brasil, estruturada como Estado Democrático de Direito, tem como princípio fundamental a dignidade humana, isto é, a consideração de que o ser humano, independente de quaisquer especificações de credo, raça ou condição social, deve ser tratado como um fim em si mesmo, merecedor do respeito e consideração de seus semelhantes e principalmente do Estado, devendo estar livre de quaisquer arbitrariedades que restrinjam de modo desnecessário sua liberdade.

Sendo o ser humano, considerado em sua intrínseca dignidade, base de nosso Estado, chega-se facilmente à conclusão de que o Direito só deve atuar quando necessário para proteger aqueles bens considerados relevantes para o indivíduo e, portanto, para a sociedade: são os chamados bens jurídicos. Assim, é característica marcante do Direito em um Estado democrático é a sua fragmentariedade, ou seja, o ordenamento jurídico não deve se ocupar de todas as coisas e atos, o que, além de impraticável, resultaria em um regime de viés totalitarista, restringindo de forma brutal a liberdade e, por conseguinte, a dignidade humana.

A fragmentariedade que, como dito, deve ser uma característica de todo nosso ordenamento jurídico, aparece de forma marcante no Direito Penal, considerado o ramo do Direito que se difere dos demais pela rigidez de sua principal sanção: a pena privativa de liberdade. A prisão, largamente criticada pela doutrina moderna, é, como bem sabido, a forma mais drástica de sanção existente em nosso ordenamento jurídico, e, especialmente em nosso precário sistema prisional, um caminho quase inevitável para a completa degradação, física e moral, do ser humano.


2. O princípio da insignificância ou da bagatela

Nesse sentido, a questão da fragmentariedade se mostra ainda mais relevante no Direito Penal: uma limitação tão drástica da liberdade humana, bem jurídico de inquestionável valia, só pode se dar quando realmente indispensável para a proteção de outros bens jurídicos, tão ou mais valiosos, como a própria liberdade, a vida e a propriedade. Mesmo esses relevantíssimos bens jurídicos não devem ser objeto da tutela penal se forem atacados de modo a lhes causar uma lesão insignificante, como no clássico exemplo do roubo de uma maçã em um supermercado, em que a incidência da pena, e mesmo do processo, no caso, mostra uma injustiça flagrante que agride as mais básicas noções humanas de proporcionalidade entre a conduta e a sanção.

Tal é o princípio da insignificância ou bagatela, segundo o qual para que uma conduta seja considerada criminosa, pelo menos em um primeiro momento, é preciso que se faça, além do juízo de tipicidade formal (a adequação do fato ao tipo descrito em lei), também o juízo de tipicidade material, isto é, a verificação da ocorrência do pressuposto básico da incidência da lei penal, ou seja, a lesão significativa a bens jurídicos relevantes da sociedade. Caso a conduta, apesar de formalmente típica, venha a lesar de modo desprezível o bem jurídico protegido, não há que se falar em tipicidade material, o que transforma o comportamento em atípico, ou seja, indiferente ao Direito Penal e incapaz de gerar condenação ou mesmo de dar início à persecução penal.

Este princípio, enunciado pioneiramente por Klaus Roxin na Alemanha, ganhou rápida aceitação em solo brasileiro sendo aceita de forma majoritária por nossa doutrina e jurisprudência, como exemplifica o acórdão abaixo:

TACrim SP - CRIME DE BAGATELA – Agente que furta bicicleta em péssimo estado de conservação, inclusive sem os pedais – Reconhecimento – Necessidade – Atipicidade da conduta – Ocorrência: – É atípica a conduta do agente que subtrai bicicleta em péssimo estado de conservação, inclusive sem os pedais, pois, tal conduta, por sua insignificância, não obstante formalmente típica, não merece, em razão do desvalor do resultado, a atenção do Poder Público que só deve ir até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico, não se ocupando de bagatelas.

Apelação nº 1.278.997/5 - Birigüi - 10ª Câmara - Relator: Vico Mañas - 21/11/2001 - V.U. (Voto nº 5.198)

Da mesma forma coloca o saudoso ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, Francisco de Assis Toledo:

"Segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas. Assim, no sistema penal brasileiro, por exemplo, o dano do art. 163 do Código Penal não deve ser qualquer lesão à coisa alheia, mas sim aquela que possa representar prejuízo de alguma significação para o proprietário da coisa; o descaminho do art. 334, parágrafo 1º, d, não será certamente a posse de pequena quantidade de produto estrangeiro, de valor reduzido, mas sim a de mercadoria cuja quantidade ou cujo valor indique lesão tributária, de certa expressão, para o Fisco; o peculato do art. 312 não pode estar dirigido para ninharias como a que vimos em um volumoso processo no qual se acusava antigo servidor público de ter cometido peculato consistente no desvio de algumas poucas amostras de amêndoas; a injúria, a difamação e a calúnia dos arts. 140, 139 e 138, devem igualmente restringir-se a fatos que realmente possam afetar significativamente a dignidade, a reputação, a honra, o que exclui ofensas tartamudeadas e sem conseqüências palpáveis; e assim por diante." (Princípios Básicos de Direito Penal, p. 133)

Assim também nos ensina Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli (Manual de Direito Penal Brasileiro, pp. 549-550 e 562), em sua teoria da tipicidade conglobante:

"Havíamos estabelecido ser o tipo legal a manifestação de uma norma que é gerada para tutelar a relação de um sujeito com um ente, chamado ‘bem jurídico’. A norma proibitiva que dá lugar ao tipo (e que permanece anteposta a ele ‘não matarás’, ‘não furtarás’ etc.) não está isolada, mas permanece junto com outras normas também proibitivas, formando uma ordem normativa, onde não se concebe que uma norma proíba o que outra ordena ou aquela que outra fomenta. Se isso fosse admitido, não se poderia falar de ‘ordem normativa’, e sim de um amontoado caprichoso de normas arbitrariamente reunidas".

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"Pois bem: pode parecer que o fenômeno da fórmula legal aparente abarcar hipóteses que não são alcançadas pela norma proibitiva, considerada isoladamente, mas que, de modo algum, podem incluir-se na sua proibição, quando considerada conglobadamente, isto é, fazendo parte de um universo ordenado de normas. Daí que a tipicidade penal não se reduz à tipicidade legal (isto é, á adequação à norma legal), e sim que deva evidenciar uma verdadeira proibição com relevância penal, para o que é necessário, que esteja proibida à luz da consideração conglobada da norma. Isto significa que a tipicidade penal implica a tipicidade legal corrigida pela tipicidade conglobante, que pode reduzir o âmbito da proibição aparente, que surge da consideração isolada da tipicidade legal".

"A insignificância da afetação [do bem jurídico] exclui a tipicidade, mas só pode ser estabelecida através da consideração conglobada da norma: toda ordem normativa persegue uma finalidade, tem um sentido, que é a garantia jurídica para possibilitar uma coexistência que evite a guerra civil (a guerra de todos contra todos). A insignificância só pode surgir à luz da finalidade geral que dá sentido à ordem normativa, e, portanto, à norma em particular, e que nos indica que essas hipóteses estão excluídas de seu âmbito de proibição, o que não pode ser estabelecido à luz de sua consideração isolada".


3. A subsidiariedade como baliza para a insignificância

Porém, nem sempre é possível, como o foi no exemplo acima, que se determine de plano o caráter bagatelar de uma conduta, o que acontece amiúde em casos de descaminho, crimes previdenciários e de sonegação de impostos. Salta aos olhos que o furto de um batom é conduta insignificante, mas o que dizer de um descaminho em que os produtos têm o valor total de R$ 1.000,00 ou R$ 2.000,00 ou da sonegação de R$ 500,00 de impostos? O que seria, nesses casos, lesão significativa ao bem jurídico protegido?

Para responder a essa questão, torna-se necessário recorrermos a uma decorrência lógica do princípio da fragmentariedade: o caráter subsidiário do sistema penal. De acordo com essa característica, o Direito Penal só deve atuar quando a ação dos outros ramos do ordenamento jurídico se mostrar ineficaz e insuficiente para a repressão do comportamento considerado indesejável. Sendo essa atuação suficiente a eventual resposta penal a essa conduta se torna desnecessária e desproporcional.

Nesse sentido e considerando o caráter fragmentário do Direito como um todo, vemos ocasiões em que mesmo os outros ramos do ordenamento jurídico, que não contém toda a carga sancionatória do Direito Penal, se furtam a atuar, frente ao exíguo dano aos bens jurídicos tutelados. Nestes casos, a atuação estatal, além dos já citados problemas, incorreria em grave ofensa ao princípio da eficiência (Constituição Federal, art. 37, caput) já que o dispêndio de recursos materiais e humanos seria claramente desproporcional ao ganho que se poderia obter. Junte-se a isso o exíguo número de procuradores federais e estaduais, juízes e promotores existentes que devem dar cabo inumeráveis processos (só no Supremo Tribunal Federal são milhares por ano para cada Ministro) e se verá que o caso não é só de coerência jurídica, mas também de compreender, realisticamente, as necessidades e as limitações da práxis estatal.

Assim, encontramos em nosso ordenamento jurídico normas segundo as quais o Estado, pelas razões já expostas, se abdica de reprimir certas condutas que, em face de seu valor, se tornam irrelevantes. Ocorre desse modo na Procuradoria da Fazenda Nacional que, de acordo com a lei, está desobrigada de impetrar ações de cobrança de débitos inferiores a R$ 1.000,00. Já na Procuradoria do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) esse limite se eleva para R$ 5.000,00. Ora, se os Direitos Tributário e Previdenciário, que conta com sanções rigorosas, mas, que de qualquer forma são bem mais suaves que as penas criminais, consideram desnecessária a persecução do autor, o que dirá o Direito Penal, que, como visto, deve agir somente em ultima ratio?

A resposta é dada de forma unânime pelos nossos tribunais como exemplificado abaixo:

Jur. ementada 3636/2002: Penal. Crime previdenciário (CP, art. 168-A). Valor até R$ 5.000,00. Princípio da insignificância (portaria 4.190/99-MPAS).

TRF 4ª REGIÃO - RECURSO CRIMINAL EM SENTIDO ESTRITO Nº 2000.72.01.003148-6/SC (DJU 10.06.02, SEÇÃO 2, P. 495, J. 25.06.02)

EMENTA

PENAL. PROCESSO PENAL. OMISSÃO NO RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. PORTARIA Nº 4.910/99. MPAS. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PENAL. APLICAÇÃO. PRECEDENTES. QUARTA SEÇÃO DESTE TRIBUNAL. APLICA-SE O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA JURÍDICA COMO CAUSA EXCLUDENTE DE TIPICIDADE, QUANDO O CRÉDITO PREVIDENCIÁRIO NÃO ULTRAPASSAR O VALOR EQUIVALENTE A R$ 5.000,00 (CINCO MIL REAIS) CONFORME EXPLICITA A PORTARIA N° 4.910, DE 04 DE JANEIRO DE 1999, DO MPAS, TENDO EM VISTA A INEXISTÊNCIA DE DANO AO ERÁRIO E POR NÃO OFENDER OU COLOCAR EM PERIGO O BEM JURÍDICO PENALMENTE TUTELADO, NÃO PODENDO POR ISSO, SER CONSIDERADO COMO FATO PENALMENTE TÍPICO.

Nesse sentido, conclui-se que o princípio da insignificância encontra balizas sólidas no caráter subsidiário do Direito Penal, isto é, todas as vezes que um dos ramos do ordenamento jurídico se furta a atuar, assim também será, com muito mais razão, no Direito Penal. Portanto, no exemplo acima, todas as apropriações indébitas previdenciárias que não ultrapassarem R$ 5.000,00 serão consideradas fatos atípicos e não o crime descrito no art. 168-A do Código Penal.


4. Os crimes contra o sistema financeiro nacional

A lei 7.492, de 16 de junho de 1986, cuida dos crimes contra o sistema financeiro nacional e do procedimento a estes relativos. Seu título já põe em relevo o objeto da tutela penal, isto é, o bem jurídico protegido: o sistema financeiro nacional, que pode ser conceituado como:

"O conjunto articulado de instituições, ou entes a ela equiparados, públicos ou privados, que correspondem ao modelo expressamente definido em lei e estruturados com o escopo de ‘promover o desenvolvimento equilibrado do País e servir aos interesses da coletividade’, instituições em atuação na captação, gestão e aplicação de recursos financeiros e valores mobiliários de terceiros – quer entes públicos ou privados – sob a fiscalização do Estado, bem como as relações jurídicas existentes entre tais instituições, seus usuários, seus funcionários e o poder público" (Rodolfo Tigre Maia, in Dos Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional – Anotações à Lei Federal n. 7.492/86, pág. 28).

Nesse sentido, à Lei 7.492/86, também chamada de lei do "colarinho branco", é reservada a importantíssima missão de proteger a salubridade do sistema financeiro nacional, o que, em última análise, significa a proteção de toda a economia brasileira contra práticas espúrias que possam afetá-la de modo especialmente danoso.

A questão que aqui se coloca é: o que distinguiria uma conduta realmente lesiva ao sistema financeiro nacional de outra que o afeta de modo insignificante, não justificando a atuação repressiva do sistema penal? Em outros termos, qual o critério a ser usado para aferir a tipicidade material desta categoria especialíssima de crimes?

Desde logo, ressalte-se que o sistema financeiro nacional conta com centenas de bancos, corretoras, distribuidoras de valores, casas de câmbio etc. que movimentam diariamente bilhões de reais e efetuam, também diariamente, cerca de dezesseis mil operações cambiais. Assim, os critérios usados para aferir a lesividade em crimes como o de furto não são aqui aplicáveis, já que o bem jurídico protegido, por sua magnitude, só seria significativamente atingido quando ocorressem condutas que, via de regra, envolvam valores vultuosos, pois só aí sua prática pode trazer avaria relevante para a economia nacional.

Nesse sentido, avulta-se o critério exposto no item anterior, isto é, a subsidiariedade como baliza para a insignificância. No estudo em tela, torna-se sem sentido a intervenção penal se, administrativamente, o órgão encarregado de exercer o poder punitivo, isto é, o Banco Central, está dispensado de punir (multar) as pessoas e entidades autores de determinadas condutas que não chegam a atingir certo valor.

Feitas essas considerações, passamos a examinar dois delitos em que o uso do princípio da insignificância se mostra especialmente relevante: os tipificados nos parágrafos únicos dos artigos 21 e 22 da Lei 7.492/86.

4.1 Informações falsas em contrato de câmbio

Dispõe o art. 21 da Lei 7.492/86:

Art 21. Atribuir-se, ou atribuir a terceiro, falsa identidade, para realização de operação de câmbio:

Pena - Detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, para o mesmo fim, sonega informação que devia prestar ou presta informação falsa.

Patente se mostra a semelhança desta conduta com a descrita no art. 307 do Código Penal, que está assim colocado: "Atribuir-se ou atribuir a terceiro falsa identidade para obter vantagem, em proveito próprio ou alheio, ou causar dano a outrem". Trata-se de um caso de conflito aparente de normas que se resolve, de acordo com o princípio da especialidade, em prol do art. 21, o qual contêm uma finalidade específica ("realização de operação de câmbio").

O bem jurídico protegido é, nos dizeres de Manoel Pedro Pimentel (Crimes contra o sistema financeiro nacional – comentários à Lei 7.492, de 16.6.86, p. 152), "a boa execução da política econômica do Estado afrontada pelo comportamento fraudulento do agente que usa da falsidade para realizar operação de câmbio".

Vimos que não há sentido em se penalizar um agente que cometeu uma conduta lesiva de modo insignificante ao bem jurídico protegido. A questão que aqui se coloca agora é: a partir de qual valor podemos considerar como significativa uma operação de câmbio, isto é, qual o parâmetro pecuniário para que o agente que comete esse tipo de falsidade possa ser penalizado?

Tal baliza é dada pela Lei 10.755, de 03.11.03, que revogou a Lei 9.817, de 23.08.99, e estabelece multa em operações de importação, verbis:

Art 1º Fica o importador sujeito ao pagamento de multa a ser recolhida ao Banco Central do Brasil nas importações com Declaração de Importação – DI, registrada no Sistema Integrado de Comércio Exterior – Siscomex, quando:

I – contratar operação de câmbio ou efetuar pagamento em reais sem observância dos prazos e das demais condições estabelecidas pelo Banco Central do Brasil;

(...)

§ 2º A multa de que trata o caput será aplicada pelo Banco Central do Brasil na forma, no prazo, no percentual e nas demais condições que vier a fixar, limitada a cem por cento do valor equivalente em reais da respectiva importação...

Assim, o importador que desobedecer as condições estabelecidas pelo Banco Central para a contratação de câmbio fica sujeito à pesadíssima multa equivalente, em reais, à totalidade do valor da operação. Entre essas condições se inclui, obviamente, a veracidade das informações prestadas.

Ora, considerando a complexidade das operações cambiais e da legislação a ela pertinente, seria injusto punir o pequeno importador que, na maior parte das vezes, desconhece essas normas. Além disso, como visto, a pequena lesão à política econômica do Estado não justifica que sejam despendidos recursos materiais e humanos na repressão dessa conduta.

Nesse sentido, a citada lei dispõe que:

Art 2º A multa de que trata esta Lei não se aplica:

IV – às importações cujo saldo para pagamento seja inferior a US$ 10,000.00 (dez mil dólares norte-americanos) ou o seu equivalente em outras moedas;

Portanto, já que para a própria Administração Pública valores inferiores a US$ 10,000.00 são considerados insignificantes para fins de sanção administrativa, tal valor deve ser considerado como marco da ofensividade da conduta na esfera penal, sendo irrelevantes os valores inferiores.

No mesmo sentido, já decidiu o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN):

203ª Sessão em 26 de julho de 2001

ACÓRDÃO/CRSFN 3310/01

Recurso 3470

Processo origem BCB 9900986656

RECURSO DE OFÍCIO

RECORRENTE: BANCO CENTRAL DO BRASIL

RECORRIDO: ARI PINTO PORTUGAL

EMENTA: RECURSO DE OFÍCIO – Câmbio - Importação – Falsa declaração prestada em contrato – Ingresso das mercadorias no País – Valor inferior – Princípio da insignificância – Recurso improvido.

ACÓRDÃO/CRSFN 3310/01: Vistos, relatados e discutidos os presentes autos, decidem os membros do Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, por unanimidade, negar provimento ao recurso de ofício interposto, mantida a decisão do órgão de primeiro grau no sentido

de arquivar o processo em relação ao recorrido, ARI PINTO PORTUGAL, não devendo ser considerada, por insignificante, a diferença existente entre o valor do contrato e o das mercadorias de fato adquiridas ao vendedor no estrangeiro.

4.2 Sonegação de cobertura de cambial

A sonegação de cobertura cambial consiste na exportação de mercadorias sem que haja a respectiva entrada do numerário no país. O parágrafo único do art. 22 assim a tipifica:

Art 22. Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País:

Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.

Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente.

Assim, sempre que uma pessoa física ou jurídica declara uma exportação, mas não recebe o pagamento do importador, ocorre a saída de divisa para o exterior e indica a manutenção de depósitos no estrangeiro sem comunicação à autoridade competente.

A norma tem por objetivo proteger o mesmo bem jurídico resguardado pelo art. 21, isto é, a "a boa execução da política econômica do Estado". Aqui também se coloca a indagação feita com relação a esse crime: qual o parâmetro pecuniário para que o agente que comete esse tipo de irregularidade possa ser penalizado?

Neste caso, também contamos com uma baliza, que é dada pela Circular 2.944, editada pelo Banco Central do Brasil em 21.10.99, que, em seu Capítulo 5, Título 8, item 4, "a", assevera:

4. E dispensável, ao exportador, o inicio da ação judicial de cobrança contra o devedor no exterior:

a) nos cancelamentos que, no total, não excedam, por embarque, a US$ 30.000,00 (trinta mil dólares dos Estados Unidos) ou seu equivalente em outra moeda, observado que, na hipótese de a moeda estrangeira da exportação ter sido negociada com mais de um banco, cumpre tanto ao exportador quanto aos bancos verificarem a observância desse limite;

Ora, só se configuram indícios suficientes da existência do crime de sonegação de cobertura cambial após a não comprovação dos esforços da empresa para o recebimento do valor. Caso, contrário, haveria apenas um mero inadimplemento contratual por parte do importador. Nos termos da norma citada é dispensada para o exportador a postulação da ação de cobrança quando o valor da mercadoria exportada, cujo pagamento não entrou em território nacional, for inferior a US$ 30.000,00, pelo pequeno montante e pelos altos custos que essa cobrança envolveria. Nesse sentido, não estando configurada hipótese de sanção administrativa neste caso, logicamente também não se configurará a incidência da sanção penal.

No mesmo sentido, também já decidiu o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN):

210ª Sessão em 27 de fevereiro de 2002

ACÓRDÃO/CRSFN 3545/02

Recurso 3760

Processo BCB 9900968212

RECURSO DE OFÍCIO

RECORRENTE: BANCO CENTRAL DO BRASIL

RECORRIDA: UNI TRADING S.A.-MASSA FALIDA

EMENTA: RECURSO DE OFÍCIO – Câmbio – Exportação - Falta de negociação das divisas em estabelecimento autorizado a operar na modalidade ou de repatriamento das mercadorias – Princípio da insignificância - Sonegação de cobertura não demonstrada – Recurso improvido.

ACÓRDÃO/CRSFN 3545/02: Vistos, relatados e discutidos os presentes autos, decidem os membros do Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, por unanimidade, negar provimento ao recurso de ofício interposto, mantida a decisão do órgão de primeiro grau no sentido de arquivar o processo em relação à recorrida, UNI TRADING S.A. - MASSA FALIDA, à vista do reduzido valor da pendência cambial em face do montante das operações em causa, o que dá azo à aplicação do princípio da insignificância.


BIBLIOGRAFIA

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Parte Geral. São Paulo: Editora Saraiva, 2002.

MAIA, Rodolfo Tigre Maia. Dos crimes contra o sistema financeiro nacional. Anotações à Lei Federal 7.492/86. São Paulo: Malheiros Editores, 1996.

PIMENTEL, Manoel Pedro. Crimes contra o sistema financeiro nacional (Comentários à Lei 7.492, de 16.6.86). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1987.

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de Direito Penal. São Paulo: Editora Saraiva, 1999.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.

Sobre o autor
Alexandre Magno Fernandes Moreira Aguiar

procurador do Banco Central do Brasil em Brasília (DF), especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Estácio de Sá, professor de Direito Penal e Processual Penal na Universidade Paulista (Unip) e nos cursos preparatórios Objetivo e Pró-Cursos

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AGUIAR, Alexandre Magno Fernandes Moreira. O princípio da insignificância e os crimes contra o sistema financeiro nacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 255, 19 mar. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5000. Acesso em: 22 dez. 2024.

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