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O foro de prerrogativa de função e a impunidade na realidade brasileira

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Agenda 22/06/2016 às 20:33

A presente pesquisa acadêmica versa sobre o foro por prerrogativa de função, buscando identificar os aspectos concernentes aos resultados que este instituto gera no âmbito social e jurídico do Brasil.

INTRODUÇÃO

 

O presente trabalho visa analisar a impunidade no âmbito processual penal quanto aos agentes detentores do foro de prerrogativa de função, bem como analisar a estrutura normativa e judiciária, suas possíveis falhas e as possibilidades de abolição e continuação do foro de prerrogativa, à luz de doutrinas, leis, jurisprudências, avaliando, ainda, as atuais consequências da utilização do foro de prerrogativa de função e os efeitos que uma má estrutura judiciária causa à sociedade.

O primeiro capítulo discorre sobre a evolução histórica do foro de prerrogativa de função no Brasil, desde a época da colonização até a Constituição Federal de 1988, demonstrando as mudanças ocorridas e as aproximações entre elas, através da análise das Constituições Brasileiras. Também neste capítulo, abordará o foro especial a luz do Direito Comparado.

O segundo capítulo refere-se ao foro de prerrogativa de função e a realidade brasileira, a disciplina constitucional e infraconstitucional, e o tratamento da matéria empregado pelos Tribunais Superiores, bem como o entendimento jurisprudencial a respeito do tema. Também serão abordados os casos de conexão e continência quanto aos agentes detentores do foro especial, o tratamento da matéria após a cessão do exercício funcional e as propostas de extinção e alteração do foro por prerrogativa de função.

O terceiro e último capítulo expõe a estrutura dos Tribunais Superiores, dados estatísticos dos julgamentos dos agentes detentores do foro de prerrogativa de função. Além do mais, discorrerá sobre o azo da sensação de impunidade gerada na sociedade devido à mora do judiciário, bem como a inviabilidade ou viabilidade da cessação do foro de prerrogativa de função.  

Por fim, o presente trabalho inclina-se na análise da impressão de impunidade no âmbito processual penal quanto aos agentes detentores do foro de prerrogativa de função, na tentativa de revelar as conseqüências que o foro especial produz na sociedade brasileira, seja na corrupção, impunidade, no descrédito ao judiciário.

 

 

 

1 O FORO DE PRERROGATIVA DE FUNÇÃO: EVOLUÇÃO HISTÓRICA E BREVE ANÁLISE

 

O foro de prerrogativa de função, também conhecido como o foro especial ou foro privilegiado, é um tema bastante polêmico, principalmente hodiernamente como os meios de comunicação e com a evolução da sociedade no entusiasmo de mudá-la ou na expectativa de garantir mais efetividade aos julgamentos dos agentes detentores do foro por prerrogativa de função.

O capítulo debruçará sobre a evolução histórica do foro por prerrogativa de função no Brasil, a finalidade de seu emprego e a previsão do instituto em outros países.

 

1.1 Conceito

O foro por prerrogativa de função é a delimitação da competência jurisdicional ratione personae, em razão da natureza do cargo ou função ocupada.

No cometimento de crimes comuns e de responsabilidade, serão julgados, os agentes detentores do foro por prerrogativa de função por um Tribunal Superior.

Os agentes que possuem o foro especial não gozam apenas da prerrogativa de foro, em decorrência de sua função, pois os membros do Congresso Nacional gozam também de imunidade absoluta e relativa, conforme dispõe o art. 53 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988).

Quanto à competência penal, a imunidade relativa é representada pelo art. 53, § 2º, da CRFB/ 1988 que dispõe: “Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável.” Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.

Verifica-se, então, que além do julgamento por um órgão colegiado, agentes detentores do foro de prerrogativa de função, se forem membros do Congresso Nacional, em cometimento de ilícito penal, somente serão presos em flagrante de crimes inafiançáveis.

A delimitação jurisdicional em matéria penal encontra-se cristalizada no art. 69 do Código de Processo Penal (CPP), e a previsão do foro no mesmo artigo, inciso VII, a saber: Art. 69 - Determinará a competência jurisdicional: [...] VII - a prerrogativa de função.

Há parte da doutrina que diferencia os conceitos de foro por prerrogativa de função e foro privilegiado ou foro especial, mas há quem assevera que se trata de uma mesma conceituação, porém em termos diferentes, como meio de despistar a proibição ao privilégio, conforme reza o art. 5º, XXXVII da CRFB/1988: “não haverá juízo ou tribunal de exceção”.

Na esteira de parcela da doutrina, Fernando Costa Tourinho Filho[1] preceitua que o privilégio decorre de benefício à pessoa, de atributo pessoal, ao passo que a prerrogativa envolve a função, possuindo caráter transitório, sendo concedida em atenção à importância ou relevância do cargo ou função que o agente exerça.

A indagação que se faz é se esta permissão especial, a competência ratione personae, seria ou não um privilégio, vedado pela CRFB/1988 em consonância ao Princípio da Igualdade [2], nos moldes do art. 5º, caput, da CRFB/1988 e da forma de Governo Republicano.

Tourinho Filho[3] elucida de forma salutar essa inquietude conceitual acerca do foro privilegiado:

Quando a Constituição proíbe o ‘foro privilegiado’, ela está vedando o privilégio em razão das qualidades pessoas, atributos de nascimento... Não é pelo fato de alguém ser filho ou neto de barão que deva ser julgado por juiz especial, como acontece na Espanha, em que leva em conta, muitas vezes, a posição social do agente.

 

De acordo com a doutrina majoritária[4], o foro de prerrogativa de função não fere o Princípio da Isonomia, nem o Princípio Constitucional que veda o Foro Privilegiado, bem como não fere a forma de Governo Republicano[5], haja vista que não há um tratamento diferenciado aos ocupantes de cargos que se beneficiam dessa prerrogativa, não se podendo concluir que é uma competência em razão de sua pessoa, dos atributos pessoais, mas sim em razão da importância de seu cargo e pelo interesse público na função que desempenha.

Em sentido diverso, Guilherme de Souza Nucci [6] esclarece:

É incompreensível que o foro privilegiado mantenha-se no Brasil. Porque não haveria sentido, como muitos afirmam que um juiz julgasse um Ministro do Supremo Tribunal Federal? Não está julgando o cargo, mas sim a pessoa que cometeu um delito. Garantir que haja o foro especial é conduzir justamente o julgamento para o contexto do cargo e não do autor da infração penal.

 

Logo, para Nucci essa garantia não protege o cargo em detrimento do interesse público, mas sim a pessoa, sendo o foro especial ou por prerrogativa de função um privilégio àqueles que o ocupam.

Como forma de justificar o tratamento diferenciado a essas autoridades detentoras de foro especial, muitos doutrinadores citam a frase célere de Rui Barbosa[7] acerca da igualdade:

A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. (Grifo nosso)

 

A competência quanto ao julgamento e processamento de crimes comuns e de responsabilidades para agentes detentores de foro especial se dá devido ao interesse público no cargo que ocupam.

  1. Finalidade

A finalidade do foro de prerrogativa de função é a de proteger o cargo público ocupado, e evitar manipulações políticas, ideológicas e a corrupção dos agentes detentores de foro para com os juízes singulares, bem assim evitar a subversão da hierarquia.

Eugênio Pacelli de Oliveira[8] justifica a fixação da competência ratione persoane não somente pelas implicações políticas e pressões externas, mas em atenção à formação profissional dos integrantes:

Optou-se, então, pela eleição de órgãos colegiados do Poder Judiciário, mais afastados, em tese, do alcance das pressões externas que frequentemente ocorrem em tais situações, e em atenção também à formação profissional de seus integrantes, quase sempre portadores de mais alargada experiência judiciante, adquirida ao longo do tempo de exercício na carreira.

 

Arnald Ward e Gilmar Mendes[9], em editorial publicado em O Estado de São Paulo no ano de 1997, sobre a “Subversão da Hierarquia Judiciária”, no caso de um Ministro de Estado que possui prerrogativa de foro, ser julgado por um juiz de primeira instância, asseveram:

  Convém anotar que tal prerrogativa de foro é assegurada não em razão de qualquer suspicácia contra o juiz de primeiro grau, mas fundamentalmente, em decorrência do significado da decisão no quadro politico co-institucional. Pretende-se não só evitar a utilização política no processo como também assegurar absoluta isenção no julgamento de questões que possam afetar o pleno exercício das funções públicas e a própria estabilidade do regime.

 

Para Nucci[10], a existência da competência ratione personae não se justifica, seja para dar especial relevo ao cargo, seja para evitar a subversão da hierarquia:

Não vemos motivo suficiente para que o Prefeito seja julgado na Capital do Estado, nem para que o juiz somente possa sê-lo pelo Tribunal de Justiça ou o desembargador pelo Superior Tribunal de Justiça e assim por diante. Se à Justiça Cível todos prestam contas igualmente, sem qualquer distinção, natural seria que a regra valesse também para a Justiça Criminal. O fato de se dizer que não teria cabimento um juiz de primeiro grau julgar um Ministro de Estado que cometa um delito, pois seria uma ‘subversão de hierarquia’ não é convincente, visto que os magistrados são todos independentes e no exercício de suas funções jurisdicionais, não se submetem a ninguém, nem há hierarquia para controlar o mérito de suas decisões. Logo, julgar um Ministro de Estado ou um cidadão qualquer exige do juiz a mesma imparcialidade e dedicação, devendo-se clamar o mesmo foro, levando em conta o lugar do crime e não a função do réu.  (Grifo nosso)

 

O julgamento por um órgão colegiado, de fato, evita a parcialidade, o erro na decisão, mas não significa que os juízes que compõem o tribunal não estão sujeitos a manipulações, pressões e exposição tanto quanto os juízes de primeiro grau, motivo pelo qual essa justificativa é um tanto quanto desarrazoada.

O posicionamento quanto à finalidade do foro por prerrogativa de função está ligado à prevenção de manipulações políticas, ideológicas e pressões quanto aos juízes de primeiro grau, mas não atenta ao fato de que os acusados, detentores do foro especial, indicam os julgadores, os ministros dos Tribunais Superiores, conforme previsão dos arts. 101 e 102 da CRFB/1988[11].

No ano de 2012, data prevista para o julgamento do mensalão, muito se questionou acerca da participação do Ministro José Antonio Dias Toffoli (Toffoli), por haver indícios de suspeição, haja vista que o ministro no ano de 1995 foi assessor parlamentar do Partido dos Trabalhadores (PT), partido envolvido no esquema de corrupção da Ação Penal 470, posteriormente, advogado do partido político, assessor do ex-deputado José Dirceu, conhecido como chefe do mensalão, e ter como sua companheira a advogada de três réus que participaram do esquema de corrupção. Informações estas extraídas do requerimento de suspeição do Ministro José Antonio Dias Toffoli, feito pelo advogado Paulo Magalhães de Araújo[12].

O Procurador Geral da República, à época, Roberto Gurgel, decidiu por não pedir a suspeição do Ministro Toffoli no julgamento da Ação Penal 470, conforme explica Rafael Baliardo, no sítio do Consultor Jurídico[13]:

O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, anunciou que não pedirá a suspeição do ministro Dias Toffoli no julgamento da Ação Penal 470. Gurgel disse, logo após o fim do primeiro dia do julgamento, nesta quinta-feira (2/8), que não irá trazer mais o assunto ao Pleno do Supremo Tribunal Federal — depois que a sessão plenária foi toda ocupada pelo debate em torno de uma Questão de Ordem.

 

O Ministro Toffoli não foi considerado suspeito, participando do julgamento do mensalão, e em seu voto decidiu por não condenar José Dirceu, alegando não possuir provas concretas da participação do ex-deputado[14].

Se houve por parte do Ministro Toffoli parcialidade no julgamento, não há como comprovar, mas casos como estes, de vinculação entre o acusado e o julgador, no mínimo, levantam suspeitas, provocando em desprestígio ao Poder Judiciário.

Conforme assevera Jose Gabriel dos Santos [15], em seu artigo virtual sobre o foro privilegiado e a (In) constitucionalidade:

Eticamente, tem-se uma situação em que os ministros do STF são indicados pelo presidente da República e aprovados pelo Senado. O absurdo da situação é visível: potenciais ‘acusados’ são os responsáveis pela nomeação de seus julgadores! Mais ainda: esse mesmo roteiro é seguido para a nomeação do procurador geral da república, responsável pela acusação perante o STF.

Isso mesmo, os potenciais ‘acusados’ são também os responsáveis pela nomeação de seu acusador! “Por mais que o acusador e os julgadores contem com garantias constitucionais para sua independência, há, no mínimo, um grande risco de vinculação política e ideológica com os políticos responsáveis por sua nomeação.

 

Em entrevista ao Poder e Política, programa da Folha e do UOL [16], na data de 10/04/2013, o ex- Ministro José Dirceu alegou ter sido assediado moralmente pelo atual Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, ex Ministro do Superior Tribunal de Justiça, para troca de favores: uma nomeação em troca da absolvição de José Dirceu no esquema do mensalão[17]. Vejamos:

Folha/UOL – Como foi o encontro do sr. com o ministro, que depois foi muito rigoroso no julgamento, Luiz Fux [do STF]?

José Dirceu - Com relação à minha reunião com o então ministro do STJ Luiz Fux, que eu não conhecia, eu fui assediado moralmente por ele durante mais de seis meses para recebê-lo.

Ele disse para o sr.: “Eu vou te absolver”?

…Disse textualmente…

E qual foi a frase?

Que ia me absolver.

Foi assim: “Eu vou absolver o sr.”?

Eu disse assim: eu não quero que o sr. me absolva. Eu quero que o sr. vote nos autos, porque eu sou inocente. Não é porque não tem prova não. Eu fiz contraprova, porque eu sou inocente. ( Grifo nosso)

 

As alegações de José Dirceu contra o Ministro do STF Luiz Fux não foram comprovadas, e este ministro proferiu voto de condenação para o mensaleiro. Se há influências políticas, dogmáticas, ideológicas quanto aos julgadores, ministros de Tribunais Superiores, e aos acusados, estes detentores de foro especial, ainda não foram comprovados, mas existe, no mínimo, um temor de que isso aconteça. Note-se que é um assunto tão delicado que nenhuma das hipóteses apontadas de julgamento oferece segurança jurídica quanto à parcialidade.

 

  1. Evolução Histórica

O foro de prerrogativa de função não é uma previsão contemporânea, uma vez que é possível perceber sua existência em tempos remotos.

Orlando Carlos Neves Belém [18] em dissertação de mestrado debruça-se acerca do foro de prerrogativa de função e, citando Marilena Chauí, assevera que o seu surgimento se deu contemporaneamente ao da política:

Assim sendo, a criação da política e, obviamente, a inclusão dos privilégios ou prerrogativas na esfera pública já se achava firmada na Grécia e em Roma porque a política nasceu ou foi inventada quando o poder público, por meio da invenção do direito e da lei (isto é, a instituição dos tribunais) e da criação de instituições públicas de deliberação e decisão (isto é, as assembléias e os senados), foi separado das três autoridades tradicionais: a do poder privado ou econômico do chefe de família, a do chefe militar e a do chefe religioso (figuras que, nos impérios antigos, estavam unificadas numa chefia única, a do rei ou imperador).

 

A Constituição Política do Império do Brasil de 1824 (CPIB/1824) estabelecia em seu art. 47 a atribuição exclusiva do Senado para o conhecimento dos delitos cometidos pelos membros da Família Imperial, Ministros de Estado, Conselheiros de Estado e Senadores; e dos delitos dos Deputados, durante o período da Legislatura, bem como reconhecer a responsabilidade dos Secretários e Conselheiros de Estado.

Já no art. 99 da CPIB/1824 percebe-se o poder concentrado nas mãos do Imperador, não estando ele sujeito a lei alguma: Art. 99. “A Pessoa do Imperador é inviolável, e Sagrada: ‘Elle não está sujeito a responsabilidade alguma.”’

Por sua vez, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891 (CREUB/1891), rezava que os deputados e senadores só seriam processados com a licença da Câmara, ao passo que o Presidente dos Estados Unidos do Brasil seria submetido a processo e a julgamento depois de a Câmara declarar procedente a acusação, perante o STF, nos crimes comuns, e nos de responsabilidade perante o Senado.

As Constituições da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934 e 1937 também estabeleciam foro diferenciado para o processamento e julgamento de determinadas autoridades. Somente na Constituição de 1946 é que a vedação quanto ao foro privilegiado foi prevista, a saber: art. 141, § 26: “Não haverá foro privilegiado nem Juízes e Tribunais de exceção.”

A base ideológica de que aquele que detém o poder não está sujeito à observância dele, vem desde a era do Absolutismo [19]. Na época, vários escritores como Niccolò Di Bernardo Machievelli, Jean Bodin, Thomas Hobbes, eram adeptos à monarquia como forma de governo.

Noberto Bobbio[20], em seu livro “O Futuro da Democracia” faz referência ao princípio romano, que se volta à proteção aos detentores de poder, e adverte que é uma consequência histórica não apenas do Brasil, mas em toda humanidade, que se viu submissa à forma de governo monárquico:

A máxima de Ulpiano, ‘princeps legibus solutus est’, enunciada para o principado romano, foi interpretada pelos juristas medievais no sentido de que o soberano está livre das leis positivas que ele mesmo produz e dos costumes que valem até quando são tolerados... (Grifo nosso)

 

“Princeps legibus solutus” significa que o Príncipe está desobrigado de todas as leis, ou seja, aquele que detém o poder nas mãos não está condicionado ao cumprimento de regras.

Convém salientar que o entendimento de privilégios, bem como o tratamento diferenciado para aqueles que possuem um cargo elevado na sociedade, vem desde a época da idade média e se estende até os dias atuais. A CRFB/1988 disciplinou a competência ratione personae, por foro de prerrogativa de função em cinco artigos[21].

A competência por foro de prerrogativa de função não se delimita apenas em disciplina emanada do constituinte originário, pois também se encontra lineada nas Constituições dos Estados, conforme dispõe o caput do art. 29 da CRFB/1988.  

 

 

 

 

  1. Análise do instituto à luz do Direito Comparado

O foro por prerrogativa de função surgiu com a política e é encontrado desde a idade média, estendendo-se até os dias atuais, não sendo exclusivo do Brasil, porque é consagrado em outros países no mundo.

O Brasil foi colonizado por Portugal, que introduziu em nosso país a monarquia, delimitando o poder nas mãos do imperador, conforme se verifica na CPIB/1824.

 Orlando Belém, em dissertação de mestrado[22], faz menção aos países que possuem foro privativo: França, Portugal, Itália, Espanha são exemplos de países que delimitam uma segurança aos eleitos do poder, como forma de blindar de pressões o julgamento dos detentores do foro especial.

A Itália possui previsão de foro privativo ao Presidente e Ministros de Estado, estes somente em razão de suas funções, que ao serem afastados do cargo, cessa a competência especial[23].  

Outrossim, vaticina Orlando Belém  que a Constituição Portuguesa[24] conferiu o foro por prerrogativa de função ao Presidente e aos membros do governo.

Andrey Borges de Mendonça[25], em estudo ao foro de prerrogativa de função na Espanha, elenca as autoridades que possuem foro especial na Constituição Espanhola, a saber: Presidente do Governo, Ministros de Estado, Deputados e Senadores, Presidente e os vogais do Conselho Geral do Poder Judiciário.

Estados Unidos, Suíça, Holanda e Alemanha não possuem previsão de foro especial; esta última, possui apenas a previsão do impeachment[26].

Em entrevista à Folha de São Paulo[27], o Ministro Celso de Mello faz menção ao foro especial em outros países e critica a posição do foro em nosso país, vejamos:

Algumas cortes constitucionais europeias detêm competência penal originária. A Corte Constitucional italiana, por exemplo, mas para hipóteses muito limitadas, quatro ou cinco, e nada mais. Na França, o Conselho Constitucional detém competência penal originária em relação a pouquíssimas autoridades, cinco, se tanto. Ou seja, são constituições republicanas, mas que refletem a mesma parcimônia que se registrara na carta monárquica brasileira de 1824. No modelo norte-americano, já ao contrário, não há prerrogativa de foro. Temos algumas constituições que se aproximam do modelo brasileiro, mas este é quase insuperável, quase invencível. Vale a pena pegar algumas constituições estaduais do Brasil para ver as autoridades com foro junto ao Tribunal de Justiça. Começa com o vice-governador e vai embora. Entra Deus e todo mundo.

 

É inequívoco que no Brasil a competência penal originária é muita extensa, não possuindo semelhanças no Direito Comparado.

O foro por prerrogativa de função nada mais é que um triste legado do Brasil Império, uma marca que não foi apagada, mesmo diante das inúmeras tentativas que vem sendo feitas para a sua abolição ou alteração, na finalidade de garantir efetividade nos julgamentos e nas acusações.

 

 

2 O FORO DE PRERROGATIVA DE FUNÇÃO NA REALIDADE BRASILEIRA

Em atenção ao conteúdo da presente pesquisa científica, necessário se faz reconhecer a competência penal originária ratione personae, ou seja, a previsão do foro por prerrogativa de função no âmbito da realidade brasileira.

Será abordado o foro por prerrogativa de função de acordo com a previsão constitucional e infraconstitucional, bem como os institutos de prorrogação de jurisdição, como conexão e continência.

Ademais, este capítulo abordará a competência penal originária ratione personae após o término do exercício funcional que proporcionava ao agente, devido ao cargo exercido, a prerrogativa de função. Também serão objeto de análise as propostas de extinção e alteração do foro por prerrogativa de função.

 

2.1 O Foro de Prerrogativa de Função e sua Disciplina Constitucional

Antes de iniciar análise da matéria, importante elucidar que a competência ratione persoane é delimitada na CRFB/1988, nas Constituições Estaduais e em legislações esparsas brasileiras.

Como mencionado em capítulo anterior, o foro por prerrogativa de função é competência penal originária, ou seja, os agentes que possuem foro especial somente serão julgados em cometimento de infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade por Tribunais Superiores, conforme reza o art. 102, I, “c” da CRFB/1988:

Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I - processar e julgar, originariamente: as infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha [...] (Grifo nosso)

 

Renato Brasileiro de Lima [28] explica a dicotomia adotada pela CRFB/1988 e esclarece o que são infrações penais comuns e crimes de responsabilidade. Para ele, infrações penais comuns abrangem qualquer infração penal, sejam crimes eleitorais, dolosos contra a vida, militares e até mesmo contravenções penais. Já crimes de responsabilidade são aqueles sujeitos à jurisdição política. Vejamos:

 Em sede de competência por prerrogativa de função, é importante perceber que a Constituição Federal adota uma dicotomia entre crimes comuns e crimes de responsabilidade. Assim, para fins de foro por prerrogativa de função, a expressão crimes comuns abrange todas as infrações penais que não constituam crimes de responsabilidade, sujeitos que estão estes à denominada Jurisdição política. Por isso, quando o art. 102, inc. I, ‘'b", da Magna Carta, estabelece que ao Supremo compete o processo e julgamento dos membros do Congresso Nacional nas infrações penais comuns, tem-se que o parlamentar deve ser processado perante a suprema Corte em relação a qualquer infração penal, quer se trate de crime eleitoral, crime doloso contra a vida, crime militar, quer se trate de uma simples contravenção penal. (Grifo nosso)

 

Pacelli[29] expõe de forma inequívoca a conceituação de “crimes de responsabilidade”, sendo estes, segundo o autor, submetidos à jurisdição política, cuja sanção prevista é a perda de cargo ou função pública e a vedação de futuro exercício:

 Os chamados crimes de responsabilidade não configuram verdadeiramente infrações penais. Constituem, ao contrário, infrações de natureza eminentemente política, com tratamento bastante distinto daquele reservado às infrações abrangidas pelo Direito Penal. Estão submetidas a processo e julgamento perante a jurisdição política.

[...]

Enquanto o Direito Penal, ainda atualmente, é centrado na aplicação de pena privativa de liberdade, pautando-se, por isso mesmo, em rígidos princípios aplicados à definição da conduta punível, o crime de responsabilidade tem como sanção a perda de cargo ou função pública e a vedação ao exercício futuro, em decorrência do mau desempenho de atividade pública. (Grifo nosso)

 

Importante frisar que as decisões proferidas em Tribunais Superiores quanto à competência ratione personae, ocorrem em uma única e última instância, tornando-se, pois, impassíveis de reexame integral, excluindo-se da competência penal originária o duplo grau de jurisdição[30].

Renato Brasileiro[31] ensina:

Acusados com foro por prerrogativa de função não têm direito ao duplo grau de jurisdição, aí entendido como a possibilidade de reexame integral da sentença primeiro grau a ser confiado a órgão diverso do que a proferiu e de hierarquia superior na ordem judiciária. Não obstante a previsão expressa do duplo grau de jurisdição na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), entendeu o Supremo Tribunal Federal que, como a Constituição Federal silenciou acerca do cabimento de recursos ordinários nos casos de competência originária dos Tribunais, não poderia o direito infraconstitucional instituí-los.

 

Quanto às investigações policiais, a qualquer pessoa pode-se atribuir uma infração penal, ou seja, indiciá-lo, havendo justa causa[32], mediante investigação pela autoridade policial.

Conforme esclarece Rodrigo Carneiro Gomes[33], a autorização para processar criminalmente agentes detentores de competência penal originária, não abrangia a fase de investigação policial. A autorização da respectiva casa que o agente compõe era exigida apenas antes do STF receber a denúncia:

A ‘autorização’ para processar criminalmente autoridades detentoras de prerrogativa de função, mesmo antes da alteração promovida pela Emenda Constitucional (EC) nº. 35/2001, não abrangia a fase da investigação policial por meio de Inquérito policial. A prévia licença da respectiva Casa era exigida antes de o Supremo Tribunal Federal (STF) receber a denúncia do Procurador-Geral da República (PGR), ou seja, só depois de encerrado o Inquérito Policial com oferecimento de uma peça chamada ‘relatório’ pelo Delegado de Polícia. A EC nº. 35/2001 não alterou o rito do Inquérito Policial ou de investigação de autoridades detentoras de prerrogativa de função: independe de autorização do STF ou da respectiva Casa (prevista antes da EC nº. 35/01) para que ocorra o procedimento preliminar ou pré-processual de investigação, para lamúria de muitos investigados.

 

O art. 41,§ único, da Lei 8.625/1993 possui a previsão de que os membros do Ministério Público não poderão ser indiciados em inquérito policial quando houver indícios da prática de infração penal em exercício de função, devendo a autoridade policial, imediatamente, remeter os autos do Procurador Geral de Justiça, ao qual competirá o prosseguimento da apuração[34].

Havendo indicação da prática de crime por parte de magistrado, deverão os autos investigatórios serem remetidos ao Tribunal ou órgão competente ao julgamento para dar continuidade nas investigações, conforme reza o art. 33,§ único da LC nº 35/1979[35].

Os demais agentes detentores do foro por prerrogativa de função, deverão ser submetidos à jurisdição e supervisão do STF, conforme reconhecido no Inquérito 2.441 STF (Inq-QO 2411 MT)[36].

Portanto, hodiernamente, tem-se o entendimento que para o indiciamento de parlamentares, é necessária autorização prévia do ministro-relator, para dar início às investigações. A propósito, trago à baila os ensinamentos de Renato Brasileiro[37]:

Entendeu o Supremo que a Polícia Federal não está autorizada a abrir de oficio inquérito policial para apurar conduta de parlamentares federais ou do próprio Presidente da República (no caso do STF). Nos casos de competência originária dos Tribunais, a atividade de supervisão judicial deve ser desempenhada durante toda a tramitação das investigações, desde a abertura dos procedimentos investigatórios até o eventual oferecimento, ou não, de denúncia pelo titular da ação. Daí por que foi anulado o ato de indiciamento promovido pela autoridade policial em face de parlamentar federal sem prévia autorização do Ministro Relator.

Portanto, a partir do momento em que determinado titular de foro por prerrogativa de função passe a figurar como suspeito em procedimento investigatório, impõe-se a autorização do Tribunal (por meio do Relator) para prosseguimento das investigações.

 

O foro por prerrogativa de função na CRFB/1988 encontra-se firmado nos arts. 29, inciso X; 96, inciso III; 102, inciso I, alíenas “b” e “c”; 105, inciso I, alíena “a”; 108, inciso I, alíena “a”.

Conforme reza o art.102, I, “a” da CRFB/1988 compete ao STF processar e julgar nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado Federal), seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República.

A acusação contra Presidente da República só será admitida por aprovação de dois terços da Câmara dos Deputados nos crimes comuns para julgamento e processo no STF. Em casos de crimes de responsabilidade, o processo e julgamento ficam a cargo do Senado Federal, conforme dispõe o art. 86,caput, da CRFB/1988.

Sendo admitida a acusação, o Presidente será afastado de suas funções pelo prazo decorrido de 180 dias, prazo no qual deverá estar concluído o julgamento. Decorrido o prazo de afastamento e não estiver concluído, cessa o afastamento do Presidente, nos termos do art. 86, § 2º, da CRFB/1988.

Confirma-se o julgamento de Deputados e Senadores perante o STF com o entendimento firmado no art. 53,§ 1º da CRFB/1988: “Os Deputados e Senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal.”

O art.102, I, “c” da CRFB/1988 prevê a competência do STF para processo e julgamento das infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade cometidos pelos Ministros de Estado, Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente.

Os crimes de responsabilidade cometidos pelo Presidente da República, Ministros de Estado, Ministros do STF, e o Procurador Geral da República, são definidos em lei específica: Lei 1.079/1950 e conforme estabelece o art. 89 parágrafo único, da CRFB/1988, crimes de responsabilidade são definidos em lei especial e esta estabelecerá as normas de processamento e julgamento.

A Lei 1.079/1950 prevê o que são crimes de responsabilidade para cada autoridade. A instauração de processo contra Presidente e o Vice-Presidente da República e os Ministros de Estado dependem de prévia autorização de dois terços da Câmara dos Deputados, conforme estabelece o art. 51, I da CRFB/1988.

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O processo e julgamento dos crimes de responsabilidade cometidos pelo Presidente e o Vice-Presidente da República, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aquelas autoridades e os cometidos pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União são de competência do Senado Federal, conforme dispõe o art. 52, I e II da CRFB/1988.

Como vimos anteriormente, compete ao STF o processo e julgamento das infrações penais comuns cometidos por Ministros de Estado, ao passo que nos crimes de responsabilidade a competência passa a ser do Senado Federal. Importante salientar que aqueles que gozam de status de Ministro de Estado são elencados na Lei 10.683/2003, no artigo 25, parágrafo único[38].

A competência para o processo e julgamento dos crimes comuns dos Governadores dos Estados e do Distrito Federal é do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Compete ao mesmo Tribunal o processamentos de julgamento dos crimes comuns e de responsabilidade cometidos pelos os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais, conforme art. 105, I , “a”, da CRFB/1988.

O art. 108, I, “a” da CRFB/1988 dispõe que é da competência dos Tribunais Regionais Federais o processo e julgamento dos juízes federais, estes da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, nos crimes comuns e de responsabilidade, bem como e os membros do Ministério Público da União. Já o art. 96, III, da CRFB/1988 disciplina a competência dos Tribunais de Justiça para julgamento de juízes estaduais e do Distrito Federal e Territórios, bem como os membros do Ministério Público, nos crimes comuns e de responsabilidade.

Quanto à justiça eleitoral, esta é competente no julgamento de infrações eleitorais cometidos por juízes e promotores eleitorais, bem como Deputados estaduais e prefeitos.

Nos ensinamentos de Pacelli[39], os Tribunais de Justiça são competentes para o julgamento dos crimes comuns praticados por deputados estaduais, sendo estes julgados pelo Tribunal Estadual da Unidade Federativa que o compõe, conforme dispositivo do art. 27,§ 1º da CRFB/1988, inclusive os que concernem os crimes dolosos contra a vida.

Com relação aos prefeitos, o art. 29, X, da CRFB/1988 dispõe ser competência do Tribunal de Justiça quanto aos crimes comuns, quanto aos crimes de responsabilidade são reservados à Câmara Municipal. Havendo desvio de verba municipal sujeita a prestação de contas em órgão federal, compete à Justiça Federal, conforme a Súmula 208 do STJ: “Compete à Justiça Federal processar e julgar prefeito municipal por desvio de verba sujeita a prestação de contas perante órgão federal.” Sendo a verba transferida e incorporado ao patrimônio do município, o julgamento de prefeito será realizado na Justiça Estadual, no entendimento sumulado nº 209 do STJ: “Compete à Justiça Estadual processar e julgar prefeito por desvio de verba transferida e incorporada ao patrimônio municipal.”

Ainda acerca da competência para o julgamento de prefeito, tem-se previsto a Súmula 702 do STF: “A competência do Tribunal de Justiça para julgar Prefeitos restringe-se aos crimes de competência da Justiça comum estadual; nos demais casos, a competência originária caberá ao respectivo tribunal de segundo grau.”

O foro por prerrogativa de função previsto fora da Carta Magna de nosso país é tema controvertido na doutrina, pois para alguns críticos da matéria a competência penal originária somente pode ser tema delineado na Constituição Federal.

Como meio de facilitar o entendimento das autoridades que detém foro de prerrogativa de função e os órgãos que as julgam, com a devida vênia, ilustra-se o quadro sinóptico de competência por prerrogativa de função do Ilustríssimo Renato Brasileiro[40]:

Função

Espécie de infração

Órgão jurisdicional competente

Presidente da República

Crime comum

Crime de responsabilidade

STF (CF, art. 102, inc. I, “b”)

Senado Federal (CF, art. 52, inc. I)

Vice Presidente

Crime comum

Crime de responsabilidade

STF (CF, art. 102, inc. I, “b”)

Senado Federal (CF, art. 52, inc. I)

Deputados Federais e Senadores

Crime comum

Crime de responsabilidade

 

STF (CF, art. 102, inc. I, “b”)

Casa correspondente ( CF, art. 55, § 2º) 

Ministros do STF

Crime comum

Crime de responsabilidade

STF (CF, art. 102, inc. I, “b”)

Senado Federal (CF, art. 52, inc. II)

Procurador-Geral da República

Crime comum

Crime de responsabilidade

STF (CF, art. 102, inc. I, “b”)

Senado Federal (CF, art. 52, inc. II)

Membros do Conselho

Nacional de Justiça e do

Conselho Nacional do MP

Crime comum

Crime de responsabilidade

Depende do cargo

Senado Federal (CF, art. 52, inc. II)

Ministros de Estado e Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica

Crime comum

Crime de responsabilidade

Crimes conexos com o Presidente da República

STF (CF, art. 102, inc. I, “c”)

STF (CF, art. 102, inc. I, “c”)

Senado Federal (CF, art.52, inc. I)

Advogado-Geral da União

Crime comum

Crime de responsabilidade

 

STF (CF, art. 102, inc. I, “b”)

Senado Federal (CF, art. 52, inc. II)

Membros dos Tribunais Superiores (STJ/TSE/STM/ TST), do Tribunal de Contas da União e chefes de missão diplomática de caráter permanente

Crime comum / Crime de responsabilidade

 

 

STF (CF, art. 102, inc. I, “c”)

 

Governador de Estado

Crime comum

Crime de responsabilidade

STJ (CF, art. 105, inc. I, “a”)

Tribunal Especial ( Lei nº 1.079/1950, art. 78)

Vice-Governador de Estado

Crime comum / Crime de responsabilidade

 

Depende da Constituição Estadual ( em regra, TJ)

Desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do DF

Crime comum / Crime de responsabilidade

 

STJ (CF, art. 105, inc. I, “a”)

 

Desembargadores Federais (membros dos TRFs), membros dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho

Crime comum / Crime de responsabilidade

 

STJ (CF, art. 105, inc. I, “a”)

 

Membros dos Tribunais de Contas dos Estados, do Distrito Federal e dos conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios

Crime comum / Crime de responsabilidade

 

STJ (CF, art. 105, inc. I, “a”)

 

Membros do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais

Crime comum / Crime de responsabilidade

 

STJ (CF, art. 105, inc. I, “a”)

 

Deputados Estaduais

Crime comum

 

Crime de responsabilidade

 

Crime federal

Crime eleitoral

Depende da Constituição Estadual ( em regra, TJ)

Assembléia Legislativa do Estado

Tribunal Regional Federal

Tribunal Regional Eleitoral

Juízes Federais, incluídos

os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho

Crime comum / Crime de responsabilidade

Crime eleitoral

TRF (CF, art. 108, inc. I, ”a” )

 

TER

Membros do Ministério Público da União(MPM/ MPT/ MPDFT/ MPF) que atuam na 1º instância

Crime comum / Crime de responsabilidade

 

Crime eleitoral

TRF ( CF, art. 108, inc. I, “a”)

 

 

TER

Juízes Estaduais e do Distrito Federal (inclusive Juízes de Direito do Juízo Militar e membros dos Tribunais de Justiça Militar)

Crime comum / Crime de responsabilidade

 

Crime eleitoral

TJ (CF, art. 96, inc. III)

 

 

TER

Procurador-Geral de Justiça

Crime comum

 

Crime de responsabilidade

TJ (CF, art. 96, inc. III)

 

Poder Legislativo Estadual ou Distrital (CF, art. 124, § 4º)

Membros do Ministério Público Estadual (Promotores e Procuradores de Justiça)

Crime comum / Crime de responsabilidade

 

Crime eleitoral

TJ (CF, art. 96, inc. III)

 

 

TER

Prefeitos

Crime comum

Crime de responsabilidade

 

Crime federal

Crime eleitoral

TJ (CF, art. 29, X)

Câmara dos Vereadores (CF, art. 31)

TRF

TRE

 

2.1.1 O Foro de Prerrogativa de Função e sua Disciplina Infraconstitucional

O Princípio da Simetria Constitucional, nos ensinamentos de Francisco Mafra,  exige uma correlação simétrica entre a Constituição Federal e as Constituições dos Estados[41]:

É o princípio federativo que exige uma relação simétrica entre os institutos jurídicos da Constituição Federal e as Constituições dos Estados-Membros.

 

Por força do art. 22, I, da CRFB/1988[42], caberá privativamente à União, legislar matéria penal e processual penal, mas com a previsibilidade do princípio da simetria, estabelecido no art. 125, caput, da CRFB/1988, confere-se uma certa autonomia aos Estados na elaboração de suas constituições, desde que respeitados os limites constitucionais: “Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.”

Mesmo que constitucionalmente prevista, a autonomia para organização das Constituições Estatais, os Estados não podem elaborá-las em desacordo com a Constituição Federal. Inobstante a previsão de limitação aos princípios estabelecidos na CRFB/1988, as Constituições estatais incorporam, estabelecem prerrogativas que não lhe foram impostas, como, por exemplo, estendem o foro especial à autoridades não previstas na Constituição Federal,  legislando em matéria que não é de sua competência.

 Renato Brasileiro[43] alude que a discursão crucial no que se refere à previsão de foro especial em Constituições Estaduais seria exceção à regra do princípio da isonomia e do juiz natural, podendo as Constituições dos Estados somente atribuir as mesmas prerrogativas dadas pela CRFB/1988:

O ponto crucial nessa discussão, todavia, diz respeito à existência (ou não) de limitação material ao poder constituinte estadual no que tange à possibilidade de outorgar foro por prerrogativa de função aos agentes estaduais, criando-se, por conseguinte, exceções às regras da garantia da isonomia e do juiz natural. De acordo com o princípio da -simetria ou do paralelismo, previsto no art. 125, caput, da Constituição Federal (observados os princípios estabelecidos nesta (Constituição), e considerando que os Estados não podem legislar sobre matéria penal ou mesmo processual, reservada à competência privativa da União (CF, inc. I), as Constituições Estaduais só podem atribuir aos seus agentes  políticos as mesmas prerrogativas que a Constituição Federal concede às autoridades que lhes sejam correspondentes, ressalvando-se apenas os crimes que não estejam submetidos à jurisdição do Estado. Em outras palavras, o art. 125 da Constituição Federal não outorgou às Constituições Estaduais uma carta em branco para assegurar o privilégio a quem bem entenderem, conferindo ao Tribunal de Justiça competências que não encontrem paralelo na Carta Política. Acerca da limitação material ao poder constituinte estadual, é importante considerar que a Constituição Federal sempre ressalvou que as Constituições Estaduais deveriam necessariamente observar as balizas definidas pela primeira, e assim dispôs expressamente no art. 25 da Constituição Federal (‘Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição’) e no art. 11 do ADCT (‘Cada Assembleia Legislativa , com poderes constituintes, elaborará a Constituição do Estado, no prazo de um ano, contado da promulgação da Constituição Federal, obedecidos os princípios desta’). Por força do princípio da simetria, portanto, as hipóteses de foro diferenciado são as exaustivamente definidas pela Constituição Federal, ficando ao alvedrio do constituinte estadual tão somente a sua aplicação nos casos de correlação entre os cargos públicos federais assim contemplados e seu correspondente no Estado. (Grifo nosso)

 

No mesmo sentido, Pacelli [44] ensina que somente a Constituição Federal é competente à previsibilidade do foro privativo:

A nosso aviso, cabe à Constituição da República e somente ela o juízo de relevância da função pública merecedora de foro privativo nos tribunais. Note-se que ela também se referiu a inúmeras autoridades locais (prefeitos, deputados estaduais, membros de tribunais de contas dos municípios), silenciando-se deliberada e propositalmente sobre os demais. Não vemos razão alguma, sobretudo em um Federalismo de fachada como o nosso – afinal, quais são as liberdades políticas e normativas dos Estados membros??? – para a permissão da eleição de novas autoridades locais para foros privativos. E, pior, para órgão da jurisdição federal e da eleitoral, que compõem o Poder Judiciário da União e não dos Estados.   

 

Como a Constituição Federal outorgou às Constituições dos Estados-Membros a previsibilidade de organização da justiça, estes somente poderiam fazê-lo em consonância com a CRFB/1988. Porém, o STF, no julgamento da ADIN 2587 do Estado de Goiás, julgou improcedente o foro privativo aos delegados de polícia, mas reconheceu a constitucionalidade do foro especial em relação os defensores públicos, procuradores de Estado e dos membros da Assembleia Legislativa, reconhecendo-se as funções exercidas por estes como essenciais ao Estado Democrático[45].

No julgamento da referida ADIN, o STF outorgou o foro privativo a autoridades não reconhecidas na CRFB/1988, estendendo-se, ainda mais, o foro por prerrogativa de função, reconhecendo as atividades desempenhadas pelos agentes como essenciais ao Estado Democrático de Direito.

 

2.2 O Foro de Prerrogativa de Função após a cessação do exercício funcional

O foro especial por proteger o cargo ou função pública ocupados, não se estende quando o agente público não se encontra mais investido no cargo. Porém, existe a previsibilidade do envio de ação penal iniciada em primeira instância para tribunais superiores, como pode ocorrer a situação inversa. Em primeira hipótese, basta o agente se revestir em cargo que possui prerrogativa de função, quando então, sua ação deve ser iniciada em tribunal competente, por ser ação penal originária ratione personae. Outrossim, se o agente for destituído do cargo ou função, perderá, então, a prerrogativa de foro, porque que não mais ocupará um cargo ou função pública de proteção do Estado.

Não somente a existência do foro por prerrogativa de função causa inquietude quanto a sua aplicabilidade, constitucionalidade, isonomia, pois seu momento de encerramento já foi bastante questionado. Muito se discutiu acerca da prerrogativa de função após a cessação do exercício funcional, matéria já consolidada em nosso ordenamento, apesar das inúmeras tentativas de mudanças por meio de projetos de lei.

Até o ano de 1999, prevalecia o entendimento, consagrado na Súmula 394 do STF[46], de que as infrações cometidas durante o exercício funcional, ainda que o inquérito e a ação penal sejam iniciados após a cessação da função, permaneceria sob a competência especial por foro de prerrogativa de função.

A referida súmula foi cancelada no ano de 1999, entendendo o Pretório Excelso que, uma vez terminado o mandato, extinguia-se o foro especial por prerrogativa de função, remetendo-se, pois, os autos ao juiz singular para o julgamento. Nesse sentido, leciona Renato Brasileiro [47]:

Ocorre que, em julgamento ocorrido em 25 de agosto de 1999 relativo a ex deputado federal, deliberou a Suprema Corte pelo cancelamento da referida súmula.  Acabou prevalecendo o entendimento de que, como a Constituição não é explícita em atribuir a prerrogativa de foro às autoridades e mandatários, que, por qualquer razão deixaram o exercício do cargo ou do mandato, e considerando que as normas que versam sobre o assunto não devem ser interpretadas ampliativamente, não se pode permitir que a prerrogativa de foro continue a incidir em relação àqueles que deixaram de exercer cargos ou mandatos.

 

Como forma de represtinação da Súmula 394 do STF, o legislador, intencionalmente, com o advento da Lei 10.628/2002 trouxe o mesmo entendimento do enunciado no art. 84 do CPP, acrescentando, ainda, o foro especial aos agentes que incorressem em improbidade administrativa[48]. A propósito, Renato Brasileiro[49] assevera:

Fica evidente que a intenção do legislador ordinário, ao acrescentar o § 1º ao art. 84 do CPP, foi exatamente a de ressuscitar a Súmula nº 394 do STF, possibilitando que, em relação aos crimes funcionais, mantivesse o agente o direito ao foro por prerrogativa de função mesmo após a cessação do exercício funcional.

 

Porém, essas alterações no CPP foram objeto de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade, a saber: ADIN´S 2.797-2 e 2.860-0, as quais foram apreciadas, considerando-se inconstitucionais as alterações feitas pela Lei 10.628/2002 nos §§ 1º e 2º do art. 84 do CPP.

Deste modo, passou a prevalecer o entendimento de que, uma vez encerrado o cargo ou função, cessa-se o foro por prerrogativa de função. Não podendo também se falar em foro especial para as ações de improbidade administrativa.

Verifica-se, então, que o foro por prerrogativa de função não é um privilégio como alguns doutrinadores aduzem, mas uma prerrogativa em decorrência do elevado cargo e/ou função exercida, haja vista que se privilégio fosse, este não cessaria com o término do mandato.

Por outro lado, era comum a renúncia ao mandato como forma de se esquivar do julgamento ao Tribunal competente, remetendo-se os autos ao juízo de primeira instância.

Tal ocorrência foi julgada pelo Pretório Excelso na Ação Penal 396/RO, repelindo-se a renúncia ao cargo ou mandato como fraude processual, não possuindo, assim, a renúncia força para o afastamento da competência.

A renúncia ao mandato é uma prática bastante contumaz. Por um lado, existe por parte do legislador a busca pela manutenção do foro especial. Em sentido diverso, alguns agentes detentores do foro por prerrogativa de função praticam atos como meio de esquivar-se da competência ratione personae.

No dia 27 de março de 2014, o Pretório Excelso decidiu por declinar a competência da Ação Penal 536, ajuizada contra o ex-deputado federal Eduardo, para a primeira instância, sob a alegação de que na data de 1999 a Suprema Corte tinha o entendimento de que a renúncia ao mandato afastava a competência do Tribunal, mesmo que somente tenha sido requerida a renúncia em 2014.

O tema é tão divergente e indigesto e nem mesmo entre os próprios “privilegiados” há consenso.

 

2.3 Propostas de extinção e alteração do foro de prerrogativa de função

A discursão cerca do foro de prerrogativa de função, seja ele visto como privilégio ou uma segurança nos julgamentos dos agentes detentores, reflete diretamente na legislação de um país.

Inconformados com a revogação do art. 84, §§ 1º e 2º do CPP, o legislador não se cansou e propôs o Projeto de Emenda Constitucional nº 358/2005, a qual tramita no Senado Federal e prevê a inclusão do art. 97-A[50].

A PEC 358/2005 nada mais é que outra tentativa legislativa de represtinação do entendimento cristalizado na Súmula 394 do STF já cancelada, ou seja, de manutenção do foro especial, mesmo após o término do mandato.  

Já a PEC 81/2007 que tramita no Senado Federal tem como objetivo a supressão do foro por prerrogativa de função em processos criminais, sendo de competência dos Tribunais Superiores o julgamento apenas dos crimes de responsabilidade, remetendo ao juízo comum os crimes comuns e de improbidade administrativa das devidas autoridades:

Chefes do Poder Executivo e respectivos Vices, Os Ministros de Estado e os Secretários de Governo estadual, municipal e do Distrito Federal, os membros do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, dos Tribunais de Contas e do Ministério Público, o Advogado-Geral da União e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica.

 

De autoria do deputado Rubens Bueno, a PEC 142/2012, tem como proposta a extinção do foro especial por prerrogativa de função para qualquer autoridade, incluindo Presidente da República, mantendo-se somente o foro especial quanto aos crimes de responsabilidade, sendo encaminhada a denúncia ou a queixa-crime, quanto aos crimes comuns, aos órgãos competentes. A referida emenda à Constituição foi apensada 470/2005, que prevê a extinção do foro para Deputado Federal e Senador, encontrando-se pronta para pauta na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania no Senado Federal.

Hodiernamente, podemos observar duas esferas de pensamentos acerca da competência para processo e julgamento dos agentes detentores do foro especial. De um lado, temos desde o cancelamento da Súmula 394 STF, as tentativas legislativas de continuação do foro mesmo após a cessação do exercício funcional. Por outro lado, tem-se a existência de propostas de extinção do foro.

 

 

 

 

 

 

2.4 O Foro por prerrogativa de função e a competência do Tribunal do Júri

A CRFB/1988 estabelece no art. 5º, XXXVII, “d” da competência do Tribunal do Júri para crimes dolosos contra a vida: “É reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: [...] d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

Em contrapartida, a mesma CRFB/1988 prevê o foro por prerrogativa de função a algumas autoridades, incluindo crimes comuns e de responsabilidade.

Entendendo-se crimes dolosos contra a vida como crimes comuns, sempre que praticados por agentes detentores de foro especial, haveria, então, conflito aparente de normas relativas à competência para o processo e julgamento.

Muito se questionou acerca do foro por prerrogativa de função de deputados estaduais e a competência do Tribunal do Júri, haja vista que conforme o art. 27, § 1º da CRFB/1988, os deputados estaduais possuem as mesmas regras sobre sistema eleitoral, inviolabilidade, imunidades, remuneração, perda de mandato, licença, impedimentos e incorporação às Forças Armadas que os deputados federais. Logo, estariam condicionados às regras do art. 102, “b” da CFRB/1988, que prevê a competência do STF para o julgamento de crimes comuns.

 Com relação ao tema, data vênia, os ensinamentos de Nucci[51] asseveram:

Quanto ao deputado estadual, num primeiro momento, pode-se imaginar que o foro privilegiado que possui está assegurado pela Constituição Federal, por conta do art. 27, § 1º, o que é realidade. Essa norma garante a parlamentares estaduais as mesmas regras da Constituição Federal sobre ‘ sistema eleitoral, inviolabilidade, imunidades, remuneração, perda de mandato, licença, impedimentos e incorporação às Forças Armadas’, mas nada menciona quanto ao foro por prerrogativa de função. Este é, em última análise, concedido por normas previstas nas Constituições dos Estados (no caso de São Paulo, art. 74, I, e art. 14 § 1º). Logo, caso cometa um crime doloso contra a vida, deve ser julgado pelo Tribunal do Júri. (Grifo nosso)

 

A propósito, o STF, na edição da súmula 721, consolidou o entendimento: “A competência constitucional do Tribunal do Júri prevalece sobre o foro por prerrogativa de função estabelecido exclusivamente pela Constituição estadual.”

A contrário sensu, a competência do Tribunal do Júri só prosperará quando o foro que o agente possui for estabelecido em Constituição Estadual, de forma que se estiver previsto na Carta Magna deverá prevalecer sobre a competência material do júri.

 

2.5 Conexão e Continência

Para Nucci[52] competência é a delimitação da jurisdição em que determinada autoridade judiciária aplica os direitos aos litígios que lhe foram apresentados, compondo-os.

Conexão e Continência são regras de determinação de competência, conforme art. 69, V, do CPP: “Determinará a competência jurisdicional: [...] V- a conexão ou continência. Estes estão disciplinados respectivamente nos art. 76 e 77 do CPP.

Conforme assevera Tourinho Filho[53] haverá conexão quando o vínculo existente entre as infrações aconselha a junção dos processos. Havendo a continência quando existir concurso de crimes e de pessoas

A conexão existe quando duas ou mais infrações estiverem entrelaçadas por um vinculo que aconselha a junção dos processos, propiciando, assim, ao julgador perfeita visão do quadro probatório e, de consequência, melhor conhecimento dos fatos, de todos os fatos, de molde a poder entregar a prestação jurisdicional com firmeza e justiça.

[...]

Podemos afirmar que a continência esta em função da identidade da causa petendi ou da unidade da conduta. Havendo concurso entre agentes que possuem foro por prerrogativa de função, a competência para o processo e julgamento se fixará com base na simetria funcional.

 

Por oportuno, vejamos os ensinamentos de Pacelli [54], o qual vaticina que havendo concurso de crimes ou de pessoas, e os agentes possuírem foro especial em jurisdições diversas, prevalecerá a jurisdição de maior graduação em decorrência da simetria funcional:

Pode ocorrer, por exemplo, que um deputado federal e um Governador de Estado, em concurso, pratiquem determinado crime. Como ambos têm foro privativo nas instâncias superiores, Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, saber a natureza da infração praticada é irrelevante, pois o foro, em princípio, permanecerá inalterado.

[...]

Como ambos os tribunais detêm de jurisdição nacional e um deles está situado no plano superior de hierarquia jurisdicional, deverá prevalecer a competência do Supremo Tribunal Federal, da mesma maneira que ocorreria se os autores do fato fossem um deputado federal e uma pessoa sem qualquer prerrogativa de função. Aplica-se, portanto, o dispositivo no art. 78, III, do CPP.

De fato, a regra do dispositivo do foro em razão da função tem em vista a relevância da parcela do Poder Público exercida, daí por que se fixa o foro privativo com base em uma simetria funcional, elaborada a partir de critérios de uma fictícia equivalência de poder.

 

Em caso de conexão e continência nos crimes dolosos contra a vida, possuindo somente um dos agentes foro especial, ocorrerá a separação dos processos, haja vista que ambas as competências decorrem de previsão constitucional. Tourinho Filho explica [55]:

E se uma pessoa com foro pela prerrogativa de função e outra sem tal regalia cometerem um crime da alçada do Tribunal do Júri? A competência deste vem fixada na CF. Assim, devem os processos ser separados: um será julgado pelo órgão jurisdicional superior, e o outro pelo Tribunal do Júri Pouco importa seja a prerrogativa de função fixada na Magna Carta ou nas Constituições estaduais. Assim, se um membro do Ministério Publico cometer homicídio, será julgado pelo Tribunal de Justiça. Se o crime foi praticado por ele e um terceiro sem foro privativo, separam-se os processos. Por que? Pela simples razão de o Tribunal leigo ter a sua competência fixada na Lei das Leis, e, por isso mesmo, não pode a lei ordinária, infraconstitucional portanto, alterar regra de competência fixada na Magna Carta.

 

O mensalão é um exemplo de atração do foro por prerrogativa de função em decorrência da conexão, haja vista que a Suprema Corte se julgou competente para o processo e julgamento dos trinta e oito réus da Ação Penal 470, in verbis:

QUESTÃO DE ORDEM. INQUÉRITO. DESMEMBRAMENTO. ARTIGO 80 DO CPP. CRITÉRIO SUBJETIVO AFASTADO. CRITÉRIO OBJETIVO. INADEQUAÇÃO AO CASO CONCRETO. MANUTENÇÃO INTEGRAL DO INQUÉRITO SOB JULGAMENTO DA CORTE. Rejeitada a proposta de adoção do critério subjetivo para o desmembramento do inquérito, nos termos do artigo 80 do CPP, resta o critério objetivo, que, por sua vez, é desprovido de utilidade no caso concreto, em face da complexidade do feito. Inquérito não desmembrado. Questão de ordem resolvida no sentido da permanência, sob a jurisdição do Supremo Tribunal Federal, de todas as pessoas denunciadas.

(STF - Inq-QO-QO: 2245 MG , Relator: JOAQUIM BARBOSA, Data de Julgamento: 06/12/2006, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-139 DIVULG 08-11-2007 PUBLIC 09-11-2007 DJ 09-11-2007 PP-00043 EMENT VOL-02298-02 PP-01287).(Grifo nosso)

 

Rodrigo Lago, em artigo publicado acerca do mensalão e a prerrogativa de foro por conexão, elucida ser incompatível com o ordenamento constitucional a prorrogação de competência penal em decorrência de conexão e continência, conforme entendimento da Súmula 704 do STF[56]:

Considerados os argumentos lançados neste artigo, seja pela evolução histórica e jurídica, a partir da Emenda Constitucional n° 35/2001, seja mesmo pelo equívoco na interpretação constitucional que formou o precedente da Petição n° 760 e de outros precedentes, tem-se que é incompatível com o ordenamento constitucional a prorrogação da competência penal originária do Supremo Tribunal Federal por motivo de conexão ou continência. Assim, só podem ser julgados naquela instância as altas autoridades da República expressamente contempladas pelo artigo 102, I, “b” e “c” da Constituição de 1988.

Por esta nova leitura, propõe-se seja admitida a mutação constitucional, com a superação dos precedentes, revogando-se a Súmula STF n° 704, não se admitindo a aplicação do artigo 76 do Código de Processo Penal aos casos de competência penal originária do Supremo Tribunal Federal. (Grifo nosso)

 

Inobstante o entendimento do STF para o julgamento de todos os réus na Ação Penal 470, mesmo que alguns dos agentes não possuam foro por prerrogativa de função, na Ação Penal 3515/SP o entendimento do Pretório Excelso mudou, considerando a corte não ser de sua alçada, mesmo com a conexão e continência, inquéritos e ações penais de cidadãos comuns, ou seja, aqueles que não possuem foro especial originário:

RECURSO – PRAZO – TERMO INICIAL – MINISTÉRIO PÚBLICO. A contagem do prazo para o Ministério Público começa a fluir no dia seguinte ao do recebimento do processo no Órgão. COMPETÊNCIA – PRERROGATIVA DE FORO – NATUREZA DA DISCIPLINA. A competência por prerrogativa de foro é de Direito estrito, não se podendo, considerada conexão ou continência, estendê-la a ponto de alcançar inquérito ou ação penal relativos a cidadão comum.

(STF - Inq: 3515 SP, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 13/02/2014, Tribunal Pleno, Data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-050 DIVULG 13-03-2014 PUBLIC 14-03-2014).  (Grifo nosso)

 

Pacelli[57] ensina que mesmo que preponderante a argumentação que a atração por conexão e continência em que um dos réus não possua foro por prerrogativa de função implicaria no afastamento do duplo grau de jurisdição àquele que não detém, não merece prosperar, haja vista que o STF possui entendimento pacífico de que a atração por continência ou conexão do processo do corréu não viola as garantias do juiz natural, nos termos da Súmula 704 do STF:

Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados.

 

 

Nucci esclarece as regras de conexão e continência, demonstrando não se tratar de um critério casuístico, mas sim objetivo, não sendo possível ferir o princípio constitucional do juiz natural[58]:

A conexão e continência são institutos que visam, como regra, à alteração da competência e não à sua fixação inicial. Abstraídas ambas, o feito poderia ser julgado por determinado juiz, escolhido pelas regras expostas nos incisos anteriores. Entretanto, quando houver alguma razão particular, de forma a facilitar a colheita de prova e fomentar a economia processual, bem como para evitar decisões contraditórias, permite a lei que a competência seja modificada. Não é por isso que se fere o princípio constitucional do juiz natural, uma vez que as regras de alteração estão previstas claramente em lei e valem para todos os jurisdicionados e acusados, de modo que se torna um critério objetivo e não puramente casuístico. (Grifo nosso)

 

Por força do art. 80 do CPP, é faculdade do juiz a verificação, conforme conveniência, da separação dos processos. Logo, não há uma regra rígida que imponha a separação ou junção dos processos, mesmo sendo eles passíveis de conexão e continência, cabendo tão somente ao julgador, de acordo com seus fundamentos, determinar a separação ou escolher pela junção dos processos.

 

 

3 IMPLICAÇÕES DO FORO DE PRERROGATIVA DE FUNÇÃO NO QUE CONSERNE À IMPUNIDADE NA REALIDADE BRASILEIRA

Este capítulo abordará a estrutura dos Tribunais Superiores para o julgamento das autoridades detentores do foro por prerrogativa de função, os dados estatísticos, o número de ações contra os detentores de foro, a mora do judiciário, o que provoca, muitas vezes, a prescrição da pretensão punitiva estatal, haja vista a falta de estrutura dos Tribunais Superiores para o julgamento dessas autoridades. O número de autoridades com prerrogativa de foro é extenso e não se correlaciona com o número de Ministro que compõe os Tribunais Superiores, tendo-se inúmeros processos para análise, supervisão de inquéritos e julgamentos, os quais ficam vários meses nas mesas dos julgadores, empoeirando. E essa “poeira” mancha a visão de eficácia e justiça do Poder Judiciário, gerando a sensação de impunidade dos agentes detentores do foro por prerrogativa de função.

 

3.1 A Estrutura Organizacional dos Tribunais Superiores e o Foro por Prerrogativa de Função

Antes de tratar da estrutura organizacional dos Tribunais Superiores que possuem a competência ratione personae, importante esclarecer como se deu o surgimento de alguns deles.

Conforme explica Pedro Lenza[59], com a colonização de Portugal no Brasil, a família real trouxe de Lisboa para cá, em 1808, a Casa da Suplicação do Brasil, que atuava na interpretação das ordenações, e das leis por meio de assentos de força obrigatória. Criou-se no Brasil, assim, a Casa da Suplicação, como primeiro órgão de cúpula da justiça. O sítio do STF[60], explica em que atuava a Casa de Suplicação:

I – A Relação desta cidade se denominará Casa da Suplicação do Brasil, e será considerada como Superior Tribunal de Justiça para se findarem ali todos os pleitos em última instância, por maior que seja o seu valor, sem que das últimas sentenças proferidas em qualquer das Mesas da sobredita Casa se possa interpor outro recurso, que não seja o das Revistas, nos termos restritos do que se acha disposto nas Minhas Ordenações, Leis e mais Disposições. E terão os Ministros a mesma alçada que têm os da Casa da Suplicação de Lisboa.

 

Noutro giro, nos ensinamentos de Lenza[61], durante o regime monárquico de 1828, criou-se o Supremo Tribunal de Justiça, que perdurou até o ano de 1891, data em que foi instalado o Supremo Tribunal Federal.

A CREUB/1891, no art. 56, dispunha: “O Supremo Tribunal Federal compor-se-á de quinze Juízes, nomeados na forma do art. 48, nº 12, dentre os cidadãos de notável saber e reputação, elegíveis para o Senado.” Já o art. 59 da mesma constituição, elencava as hipóteses de competência do STF[62].

Nota-se que a competência atribuída ao STF em 1891, limitava-se aos crimes comuns do Presidente da República e Ministros de Estado, bem como à competência para o processo e julgamento dos Ministros diplomáticos nos crimes comuns e de responsabilidade. Possível verificar que desde a primeira Constituição que disciplinou o STF até a atual, estendeu-se o número de autoridades processadas e julgadas por órgãos superiores.  

Segundo Lenza[63], a CRFB/1988 instituiu o STJ e entregou ao STF a posição de órgão de cúpula de todo o judiciário, especialmente de guardião da Constituição.

A CRFB/1988, no art. 101, estabelece a composição do STF[64], que é formado por onze ministros, nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria do Senado Federal.

 

A competência do STF encontra-se delineada nos arts. 102 e 103 da CRFB/1988, seja ela originária ou recursal, de modo que esta última é exercida através de recursos ordinários ou extraordinários.

Alexandre de Morais[65] preceitua que a função precípua do STF é de corte de Constitucionalidade, com a incumbência de realizar o controle concentrado de constitucionalidade:

A função precípua do Supremo Tribunal Federal é de Corte de Constitucionalidade, com a finalidade de realizar o controle concentrado de constitucionalidade do Direito Brasileiro, ou seja, somente o Supremo Tribunal Federal compete julgar as ações diretas de inconstitucionalidade, genéricas ou interventivas, as ações de inconstitucionalidade por omissão e as ações declaratórias de constitucionalidade, com o intuito de garantir a prevalência da normas constitucionais no ordenamento jurídico.

 

Quanto ao STJ, este fundado pela atual carta magna, leciona Moraes[66]: “Também podemos fazê-lo no sentido de ser o STJ o guardião do ordenamento jurídico federal.” Incube à corte a pacificação da jurisprudência dos tribunais e, ainda, a interpretação da legislação infraconstitucional.

O art. 104 da CRFB/1988, dispõe sobre a estrutura do STJ[67], o qual compõe-se de, no mínimo, trinta e três ministros, sendo estes nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha por maioria absoluta do Senado Federal, dentre os cidadãos com notável saber jurídico e reputação ilibada.

O STJ também possui competência originária, ou seja, que se inicia no tribunal, e competência recursal, através de recursos ordinários ou especiais.

No portal do sítio eletrônico do STJ é possível verificar que o tribunal se intitula de “O Tribunal da Cidadania” e faz referências às suas atribuições [68]:

É a corte responsável por uniformizar a interpretação da lei federal em todo o Brasil, seguindo os princípios constitucionais e a garantia e defesa do Estado de Direito. O STJ é a última instância da Justiça brasileira para as causas infraconstitucionais, não relacionadas diretamente à Constituição. Como órgão de convergência da Justiça comum, aprecia causas oriundas de todo o território nacional, em todas as vertentes jurisdicionais não-especializadas. Sua competência está prevista no art. 105 da Constituição Federal, que estabelece os 
processos que têm início no STJ (originários) e os casos em que o Tribunal age como órgão de revisão, inclusive nos julgamentos de recursos especiais. O STJ julga crimes comuns praticados por governadores dos estados e do Distrito Federal, crimes comuns e de responsabilidade de desembargadores dos tribunais de justiça e de conselheiros dos tribunais de contas estaduais, dos membros dos tribunais regionais federais, eleitorais e do Trabalho. Julga também habeas-corpus que envolvam essas autoridades ou ministros de Estado, exceto em casos relativos à Justiça eleitoral. Pode apreciar ainda recursos contra habeas-corpus concedidos ou negados por tribunais regionais federais ou dos estados, bem como causas decididas nessas instâncias, sempre que envolverem lei federal. Em 2005, como parte da reforma do Judiciário, o STJ assumiu também a competência para analisar a concessão de cartas rogatórias e processar e julgar a homologação de sentenças estrangeiras. Até então, a apreciação desses pedidos era feita no Supremo Tribunal Federal (STF).

 

O Superior Tribunal Militar (STM), compõe os Tribunais Superiores do Poder Judiciário, e conforme esclarece o art. 123 da CRFB/1988, compõe-se de 15 Ministros, sendo 10 militares e 5 civis. Quanto à competência, o art. 124 da CRFB/1988 define que compete à justiça militar, processar e julgar crimes militares definidos em lei[69]

Tourinho Filho[70] esclarece que compete ao STM processar e julgar, nos termos da Lei. 8.457/1993, os oficiais generais das Forças Armadas, não sendo possível julgar seus comandantes, haja vista que compete ao STF nos termos do art. 102, I, “c”. Vejamos:

Ao Superior Tribunal Militar compete, nos crimes militares definidos em lei (art. 124 da CF), processar e julgar, nos termos do art. 6, I, a, da Lei n. 8.457, de 4-9-1992 (Lei de Organização Judiciária Militar),com a redação dada pela Lei n„ 8.719, de 19-10-1993, os Oficiais Generais das Três Armas, exceto seus Comandantes, uma vez que a EC n . 23/99 reservou ao STF competência para processá-los e julgá-los nos crimes comuns e de responsabilidade. Quanto a estes últimos, se conexos com os do Presidente ou Vice-Presidente, o processo e julgamento ficam afetos ao Senado, na dicção do art.52,I da CF.

 

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), órgão superior da justiça eleitoral, compõe-se de, no mínimo, sete membros, dentre eles, ministros do STF e do STJ, bem como dois juízes dentre seis advogados, nomeados pelo Presidente da República, conforme redação do art. 119 da CRFB/1988[71]. A competência do TSE reserva-se à lei específica nº 4.737/1965,  conforme reza o art. 121 da CRFB/1988.

Quanto à competência do processo e julgamento dos membros dos Tribunais Superiores, incluindo-se o TSE, nos crimes comuns e de responsabilidade, reserva-se ao STF, conforme o enunciado do art. 102, I, “C” da CRFB/1988. Já quanto aos crimes comuns praticados por membros dos Tribunais Regionais Eleitorais, é competente para processo e julgamento o STJ.

Nos ensinamentos de Tourinho Filho, quanto à competência do TSE ser deslocada ao STF e ao STJ, elucida:

O Código Eleitoral conferia, no art. 22 ,I, d, ao Tribunal Superior Eleitoral competência para processai e julgar os seus próprios Ministros e os membros dos Tribunais Regionais Eleitorais nos crimes eleitorais e nos comuns que lhes fossem conexos. A Constituição Federal de 1988, entretanto, dizendo competir ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar, nos crimes comuns e de responsabilidade, os membros dos Tribunais Superiores da Republica (e o TSE e um deles), por obvio revogou aquela disposição do Código Eleitoral que conferia ao TSE o processo e julgamento dos seus próprios Ministros. Quanto a competência para processar e julgar os membros dos Tribunais Regionais Eleitorais, em quaisquer infrações, nos termos do art.105,I, a, da Magna Carta, foi deslocada do TSE para o Superior Tribunal de Justiça. Assim, em face de expressa disposição constitucional, o Tribunal Superior Eleitoral perdeu sua competência funcional vertical originária ratione personae vel maneris.

 

Dentre os Tribunais Superiores elencados acima, uma das fragilidades  que se pode observar é a ausência de estrutura para o julgamentos de autoridades que possuem foro por prerrogativa de função, haja vista que criados inicialmente com competência fixada em razão da matéria, e não para apreciação de crimes, mediação de investigações, inquirição de testemunhas.

Atualmente, tem-se um número extenso de autoridades que gozam de foro especial para processo e julgamento nos tribunais superiores, porém o número de processos não se correlaciona com o número de membros que compõe as Cortes Superiores, tendo-se inúmeros processos e poucos julgadores.

Vladimir Passos de Freitas[72], em artigo sobre o foro privilegiado e a ineficiência do sistema, aduz:

Entretanto, apesar da mudança e do acréscimo de ações penais originárias nos Tribunais, a estrutura destes continua a mesma, preparada apenas para receber recursos. O único Tribunal brasileiro que se adaptou ao novo modelo foi o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que criou uma Câmara especializada no julgamento de Prefeitos (4ª. Câmara Criminal). Os demais continuaram como antes, sem providência alguma, com funcionários que não tinham - e ainda não têm - a prática de processar uma ação penal, sem salas próprias para audiências e com dificuldades para as medidas mais corriqueiras, como o recolhimento de fiança. Da mesma forma, Ministros e Desembargadores não estão habituados a interrogar réus, ouvir testemunhas e conduzir a prova. A complementar a ineficiência, a maioria das provas são produzidas por cartas de ordem, em locais distantes do julgamento. A própria investigação do crime é feita com maior dificuldade. No caso dos Juízes, por força da LC 35/79, art. 33, par. único, aquilo que deveria ser apenas uma apuração preliminar, tal qual um inquérito policial, torna-se um procedimento com contraditório, ora mais, ora menos, conforme entender o Relator. Quando a autoridade investigada é um parlamentar ou um chefe do Poder Executivo, simplesmente não há previsão para a condução das investigações, como e quem deve fazê-las. Os Regimentos Internos dos Tribunais não costumam disciplinar o assunto. Mas, depois de concluída a apuração, a denúncia só pode ser recebida por órgão colegiado (Lei 8.038/90, art. 6º), o que motiva pedidos de vista que podem retardar o ato em meses ou anos. E uma vez instaurada a ação penal, entra-se em um emaranhado burocrático de delegação de colheita de provas, já que um Ministro ou Desembargador não costuma viajar e ouvir testemunhas em ouras cidades e, se o fizer, seus processos no Tribunal ficarão parados. (Grifo nosso)

 

A falta de estrutura dos Tribunais Superiores pode propiciar a mora no processamento e julgamento, resultando, muitas vezes, em prescrição, não só quanto aos processos referentes aos agentes detentores do foro especial, mas quanto à competência recursal.

Tramita no Senado Federal a PEC 15/2011, apelidada como PEC dos recursos, que visa a alteração dos arts. 102 e 105 da CRFB/1988, para transformar os recursos extraordinário e especial em ações rescisórias, em decorrência dos elevados números de processos, sejam eles de matéria originária ou recursal, haja vista que as Cortes Superiores não julgam apenas matéria penal, mas julgam recursos que versam de diversos ramos do direito, seja constitucional, cível, administrativo, basta incorrer em afronta aos preceitos da CRFB/1988 ou às leis infraconstitucionais.

Foi sancionada a Lei 12.019/2009 que prevê a possibilidade de o relator das ações penais originárias de competência do STF e STJ delegar a juízes de primeiro grau a realização de atos de instrução[73]. A referida lei, ao delegar atos instrutórios para os juízes de primeiro grau, pretende acelerar a instrução, o processo e julgamento das ações penais originárias. No portal de notícias do STF[74], em matéria  acerca da Atuação de magistrados instrutores que agilizam a tramitação de processos penais no STF, a lei é considerada positiva, tendo em vista a agilidade com que estão caminhando os feitos.

Destaca-se a avaliação do Juiz de Direito do Tribunal de Justiça de São Paulo Carlos Vieira Von Adamek, que é magistrado instrutor em atuação no gabinete do ministro Dias Toffoli. Aquele afirma que com a agilidade no andamento dos processos é possível afastar a prescrição[75]:

Estamos conseguindo avançar com rapidez no que diz respeito a prazos, evitando que venha a ocorrer prescrição nos processos. A orientação do ministro Dias Toffoli é esquecermos que existe a palavra ‘prescrição’. Se a ação penal foi instaurada, ela tem que chegar ao final, seja com um decreto de procedência, seja com um decreto de absolvição. É preciso dar uma resposta, para o próprio réu e também para sociedade, para que todos saibam que a questão foi analisada em seu mérito pelo Supremo.

 

A medida de delegar a função dos atos instrutórios aos juízes de primeiro grau, que são chamados de juízes instrutores, não é uma unanimidade entre os Ministros. Em entrevista à revista Folha de São Paulo, Celso de Mello critica a convocação de juízes-auxiliares[76]:

Alguns ministros têm o chamados juízes instrutores, que nem eu nem [o ministro] Marco Aurélio [temos]. Em primeiro lugar, porque acho que o estudo [que embasará a decisão] tem que ser meu. Por isso é que acabo trabalhando 14 horas por dia. É um ato pessoal. Mas, respeito a posição dos outros juízes, cada um tem seu estilo de trabalho. Em segundo lugar, entendo que o magistrado, ou ele exerce suas funções jurisdicionais, podendo acumulá-las com um cargo docente, como permite a Constituição, ou não se lhe oferece qualquer outra alternativa. Acho que não tem sentido convocar um juiz para atuar como um assessor de ministro. A mim, não parece que a Constituição autorizaria isso. (Grifo nosso)

 

O princípio da identidade física do juiz, este se encontra disciplinado no art. 399, § 2º do Código de Processo Penal[77],  prevê que o magistrado que conduziu os atos de instrução deve ser o mesmo a proferir a sentença.

Pois bem, com o advento da Lei 12.019/2009 que instituiu a presença dos juízes instrutores ou chamados de juízes-auxiliares nas ações penais originárias no STF e STJ, mitigou-se o Princípio da Identidade Física do Juiz.

Neste caso, a lei tem papel relevante nos Tribunais Superiores, pois possibilita a celeridade no andamento das ações penais, tendo em vista a falta de estrutura destes.

É utopia esperar que todos os processos em andamento nos Tribunais Superiores observem os prazos legais, tendo em vista a quantidade de processos, o número de julgadores, a falta de estrutura para o julgamento e a dificuldade na instrução.

A apreciação do mérito das ações penais nos Tribunais Superiores se dá de forma colegiada, ou seja, os ministros de compõem as turmas de julgamento, sendo estas compostas de cinco ministros cada, conforme art. 4º do Regimento Interno do STF e art. 2º § 4º do Regimento Interno do STJ. Devem as turmas acompanhar o processo, analisá-lo, para, então, proferir o veredito. Requerendo um dos ministros vistas na íntegra ou em parte do processo, este será remetido a ele, o que pode contribuir para que esse procedimento demore ainda mais.

Toda essa burocracia para o julgamento das ações penais originárias nos Tribunais Superiores concorre para a demora e nos traz uma sensação de impunidade.

Conforme assevera Vanderson Roberto Vieira[78] o Direito Penal possui duas funções: a função de proteção de bens jurídicos essenciais e a função garantidora.

Já a função simbólica do Direito Penal, nas lições Cleber Rogério Masson[79]:

A função simbólica  é inerente a todas as leis, não dizendo respeito somente às de cunho penal. Não produz efeitos externos, mas somente na mente dos governantes e dos cidadãos. Em relação aos primeiros, acarreta a  sensação de terem feito algo para a proteção da paz pública. No tocante aos últimos, proporciona a falsa impressão de que o problema da criminalidade se encontra sob o controle das autoridades, buscando transmitir à opinião pública a impressão tranquilizadora de um legislador atento e decidido. Manifesta-se, comumente, no direito penal do terror, que se verifica com a inflação legislativa, criando-se exageradamente figuras penais desnecessárias, ou então com o aumento desproporcional e injustificado das penas para os casos pontuais (hipertrofia do Direito Penal). A função simbólica deve ser afastada, pois, em curto prazo, cumpre funções educativas e promocionais dos programas de governo, tarefa que não pode ser atribuída ao Direito Penal. Além disso, em longo prazo resulta na perda de credibilidade do ordenamento jurídico, bloqueando as suas funções instrumentais.

 

Nota-se que a função simbólica do direito penal atribuiu à aplicação da pena com o objetivo de gerar uma sensação de punição, de efetividade de normas. Mas, na prática, não raro deixar de ocorrer a aplicação da norma ao caso concreto, devido a diversos motivos, seja a prescrição, a renúncia, a desqualificação do crime. A percepção da sociedade é que existe uma má aplicação da norma, ou que sequer existe norma ou justiça, gerando a sensação de impunidade, de insegurança jurídica e desprestígio do poder judiciário.

No dia 27/02/2014 o STF preparava-se para o julgamento dos recursos da Ação Penal 470, na qual foram apreciados os embargos infringentes, absolvendo-se, na ocasião, oito réus que haviam sido condenados por formação de quadrilha. O resultado do julgamento alterou-se devido à entrada de dois ministros no STF, a saber: Teori Zavascki e Luís Roberto Barroso.

De acordo com o Ministro Joaquim Barbosa, a mudança no julgamento se deu pela maioria circunstancial. Vejamos a publicação de notícias no sítio da Globo.com [80]:

Temos uma maioria formada sob medida para lançar por terra o trabalho primoroso desta Corte no segundo semestre de 2012. Isso que acabamos de assistir. Inventou-se um recurso regimental totalmente à margem da lei com o objetivo específico de anular a reduzir a nada um trabalho que fora feito. Sinto-me autorizado a alertar a nação brasileira de que esse é apenas o primeiro passo. É uma maioria de circunstância que tem todo o tempo a seu favor para continuar sua sanha reformadora.

 

A maioria de circunstância criticada pelo Ministro Joaquim Barbosa decorre do fato de que a indicação dos novos ministros foi feita pela Presidente da República, conforme previsão constitucional. A indicação, a mudança e a reversão do julgamento da Ação Penal 470 deixa a margem à conclusão de que existe alguma influência política por detrás da indicação. Porém, nada foi comprovado, não sendo possível confirmar que a indicação dos novos ministros do STF pela atual presidente do país, que compõe o partido dos trabalhadores (PT), tenha sido circunstância motivadora da reversão do julgamento do mensalão do PT.

Tramitam na Câmara dos Deputados e no Senado Federal projetos de emendas constitucionais, que determinam a mudança do sistema de  indicação dos ministros do STF, a saber: PEC 92-A/95; PEC 473/01 PEC 566/02; PEC 68/05 e a PEC 30/08. Outrossim, Antônio Álvares da Silva[81] propõe eleições direitas para os juízes dos tribunais superiores, que coibiria a ascensão ao STF, e respeitaria os princípios da transparência e da publicidade:

O que se passa no silêncio dessas negociações ninguém sabe nem nunca saberá. Onde fica o princípio da transparência e da publicidade, tão propalados em arroubos retóricos por todos.

[..]

Num regime democrático, esse caminho não é dos melhores. Transparência e abertura são virtudes solenes e irrenunciáveis para qualquer escolha de significado para o povo, que tem o direito de saber quem vai julgar em seu nome.

 

A deficiência na estrutura dos Tribunais Superiores representa uma imagem deturpada do Poder Judiciário, com relação a sua credibilidade, haja vista que a demora para processo e julgamento, devido a várias peculiaridades apontadas nesta subseção, provoca na sociedade uma impressão de impunidade, o que é pior, sugere que os agentes detentores do foro por prerrogativa de função são, na verdade, privilegiados pelas cortes. Infelizmente, a falha estrutural acarreta a demora, gerando a sensação de impunidade aos mais “favorecidos”, os detentores de foro especial.

 

3.1.1 Dados estatísticos acerca do julgamento pelos Tribunais Superiores dos detentores do foro por prerrogativa de função

Esta subseção se reveste de dados estáticos das ações penais originárias nos Tribunais Superiores, acerca dos procedimentos e julgamentos, a fim de demonstrar que a ausência de estrutura sólida nos tribunais implica na mora do judiciário.

No ano de 2007, a Associação dos Magistrados do Brasil (AMB)[82] lançou uma campanha chamada “Juízes contra a corrupção”, na qual a associação levantou dados estatísticos acerca dos julgamentos dos agentes detentores de foro por prerrogativa de função dos anos de 1988 até 2007 das ações penais originárias de apreciação do STF e STJ.

A AMB concluiu que até junho de 2007 o STF possuía 130 ações penais originárias, dentre elas, 52 processos em tramitação, 46 foram remetidos a instâncias inferiores, 13 com extinção da punibilidade do agente em decorrência da prescrição, 6 foram absolvidos e até junho daquele ano não havia nenhuma condenação.

Quanto ao STJ, até junho de 2007, ingressaram no tribunal 483 ações penais originárias, estando 30% dos processos com duração de dois a seis anos. Dentre as ações, 126 foram remetidas a instâncias inferiores, 81 em tramitação, 71 processos com extinção da punibilidade do agente em decorrência da prescrição e/ou decadência, 74 tiveram rejeitadas a denúncia ou queixa, 11 agentes foram absolvidos, 10 ações remetidas ao STF, 9 aguardando autorização da assembleia, 5 extintos a punibilidade do agente por morte, 91 possivelmente arquivados ou sem indicativo de razão e, por fim, 5 condenações.

A Campanha “Juízes contra a Corrupção” realizada pela AMB produziu um documento ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), requerendo a elaboração e implementação de uma Política Judiciária Nacional de Combate à Corrupção, bem como apontou possíveis soluções defendidas, a saber: a) Elaboração de uma política Judiciária Nacional de Combate à Corrupção, que seja implementada, executada e fiscalizada pelo CNJ, no exercício de sua função de gestão e planejamento estratégico do Poder Judiciário; b) extinção imediata do foro privilegiado; c) utilização, pelo STF e pelos Tribunais, dos mecanismos que permitam a delegação de atos instrutórios de processos criminais que envolvam autoridades de foro privilegiado; d) ampliação da possibilidade de delegação de atos instrutórios ao juiz da localidade do fato e criação de “salas de instrução” junto ao STF, STJ e Tribunais Brasileiros; e) aprovação de projetos de lei com o objetivo de aprimorar o sistema processual brasileiro e agilizar a instrução e julgamento de processos; f) criação e difusão de varas e câmaras especializadas para o julgamento de crimes relacionados a corrupção, foro privilegiado e defesa do patrimônio público.[83]

 

Zeno Veloso[84], após a pesquisa da AMB, publicou artigo no sítio desta associação, clamando pela abolição ao foro privilegiado, asseverando ser ele carta de alforria aos piores bandidos do país:

A Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) acaba de fazer um levantamento que bem demonstra o absurdo em que vivemos, o descrédito das instituições, a falência do Direito, a morte da Justiça: em 18 anos e meio, o Supremo Tribunal Federal (STF) abriu 130 processos criminais contra autoridades que têm foro privilegiado, e ninguém foi condenado (130 a 0). No Superior Tribunal de Justiça (STJ), criado em 1989, foram abertas 483 ações penais, mas só cinco pessoas foram condenadas (483 a 5).

    Os ministros dos tribunais superiores, tentando justificar a demora crônica de suas decisões, alegam excesso de trabalho, número enormíssimo de demandas, parafernália de normas recursais. Já se vê que não têm meios, treinamento, estrutura, nem tempo para promover os processos criminais. E tudo fica como dantes no quartel de Abrantes.

[...]

O foro privilegiado é perverso, caviloso, aristocrático, tem de ser banido, em nome da igualdade, em nome da democracia. O foro privilegiado é o foro da impunidade, é o foro que alforria alguns dos piores bandidos do país. O foro privilegiado - como o nome indica - é um atraso, é uma vergonha.

 

Já no ano de 2012, o jornal Folha de São Paulo, no caderno denominado Folha Transparência[85], analisou durante quatro meses 258 processos envolvendo políticos no STF. Concluiu-se que os inquéritos relativos a agentes detentores de foro especial demoraram mais tempo que o normal, bem como os processos abertos contra os agentes no STF arrastam cerca de dez anos sem definição:

Inquéritos que tiveram políticos brasileiros como alvo nos últimos anos demoraram mais tempo do que o normal para chegar a uma conclusão, e processos abertos pelo Supremo Tribunal Federal contra eles se arrastam há mais de dez anos sem definição, de acordo com o levantamento feito pela Folha.

Em média, a Polícia Federal leva pouco mais de um ano para concluir uma investigação. Inquéritos analisados pela Folha que foram encerrados consumiram o dobro de tempo. O levantamento mostra que deficiências do aparelho judiciário do país e falhas cometidas por juízes, procuradores e policiais estão na raiz da impunidade dos políticos brasileiros, provocando atrasos nas investigações e em outros procedimentos necessários para o julgamento dos acusados.

Durante quatro meses, a Folha analisou 258 processos que envolvem políticos e estão em andamento no STF ou foram arquivados pela corte recentemente, incluindo inquéritos ainda sem desfecho e ações penais à espera de julgamento. Os processos envolvem 166 políticos que só podem ser investigados e processados no Supremo, um privilégio garantido pela Constituição ao presidente da República e seu vice, a deputados federais, senadores e outras autoridades.

O senso comum sugere que esse tipo de coisa acontece porque os políticos têm condições de pagar bons advogados para defendê-los na Justiça, mas a análise dos processos mostra que em muitos casos as investigações simplesmente não andam, ou são arquivadas sem aprofundamento.

 

A referida pesquisa elaborada pela Folha em 2012 demostrou que a demora nos processos envolvendo políticos, detentores de foro por prerrogativa de função, são cheios de falhas, a começar dos requerimentos de investigações até o julgamento. A pesquisa concluiu que as investigações relativas ao Senador Jader Barbalho duravam mais de quatorze anos, sem qualquer definição; o inquérito que investigava o deputado Zé Vieira ficou cinco anos no departamento da polícia federal sem requerimento de diligências. A aceitação da denúncia pelo STF, envolvendo o senador Valdir Raupp, levou cerca de seis anos para acontecer. Dentre outras falhas e demoras ocorridas, estas foram as que mais chamaram atenção.

Segundo a Folha, em 2012 havia 146 ações penais contra políticos em andamento e 436 inquéritos abertos para investigações destas autoridades.

O Ilustríssimo Ministro Celso de Mello, em entrevista concedida à Folha de São Paulo[86],  defendeu o fim do foro por prerrogativa de função com a supressão de todas as hipóteses constitucionais de prerrogativa de foro em matéria criminal, prevalecendo o foro especial apenas em favor do Presidente da República, Presidentes do Senado, Câmara dos Deputados e do Supremo. Para ele, há número elevado de varas criminais de primeira instância, na mesma proporção do número de processos criminais que vão ao Supremo Tribunal Federal, que ficam aguardando julgamento, tendo em vista, este órgão possuir apenas 11 juízes.

No mesmo jornal, relativamente à mesma matéria questionada, o Professor-doutor em Direito Penal, Pierpaolo Botini, descreve a falta de vocação dos tribunais superiores, paralisa as ações penais:

Para além das discussões teóricas, o problema é prático: os processos penais em andamento nos tribunais contra autoridades são poucos julgados. [...] Uma das razões é a absoluta falta de vocação dos tribunais para conduzir esses processos penais. Os tribunais foram criados para analisar teses jurídicas, discutir a vigência de normas e unificar sua interpretação. O trabalho de ouvir testemunhas, determinar perícias, gravações telefônicas, busca e apreensão, dentre outras ações para reunir evidências sobre a prática de um crime, é tarefa do juiz de primeiro grau. Os tribunais não têm experiência para organizar a colheita de provas. [...] A prerrogativa não é um mal em si, mas essa falta de vocação dos tribunais dificulta o andamento das ações penais, problema que pode ser superado com medidas de gestão que tornem mais ágil a tramitação dos processos e evitem a impunidade. (Grifo nosso)

 

O primeiro semestre de 2014 foi marcado por grandes acontecimentos no âmbito político. Em fevereiro, mês em que aconteceu o julgamento do último recurso no caso do mensalão, dois juízes da Vara de Execuções Penais de Brasília, pediram o afastamento do cargo, sob a alegação de que o governo do Distrito Federal deveria investigar as denúncias quanto as regalias feitas aos condenados do mensalão, em cumprimento de pena na papuda. Notícia vinculada no sítio do Jornal o Estado de São Paulo[87]. Mas, segundo a Ordem dos Advogados do Brasil, após vistorias feitas no estabelecimento prisional, os mensaleiros não possuem privilégios dentro do presídio, apenas são tratados como os demais presos. As alegações surgiram devido diretor do estabelecimento prisional, ser petista.

O mensaleiro Delúbio Soares lançou sítio eletrônico chamado Solidariedade a Delúbio. O sítio fora lançado para arrecadação de recursos para o pagamento da multa imposta pelo STF em decorrência dos crimes praticados na Ação Penal 470. O valor da multa revestia-se na quantia de R$ 466.888,90 (quatrocentos e sessenta e seis mil oitocentos e oitenta e oito reais e noventa centavos). Ocorre que, a campanha em solidariedade ao mensaleiro, fez tanto sucesso, que foi possível arrecadar a quantia de R$ 1.013.657,26 (mil milhão treze mil reais seiscentos e cinquenta e sete reais e vinte e seis centavos), valor este nem um pouco aproximado do valor que fora desviado dos cofres públicos. Vejamos nota da advogada de Delúbio ao sítio eletrônico[88]:

1) 1.668 companheiras e companheiros doaram recursos em favor de Delúbio Soares, visando o pagamento da injusta e exorbitante multa que lhe foi imposta;

2) O fizeram por livre e espontânea vontade, doando as mais diversas quantias dentro de suas possibilidades pessoais;

3) Conforme nossa solicitação, os doadores são identificados com seus RG e CPF, e depositaram em conta da Caixa Econômica Federal, especificamente aberta para tal campanha solidária;

4) Todos as doações foram feitas com pleno amparo legal, revestindo-se da característica de ato de vontade pessoal, solidariedade humana, amizade ou afinidade política e ideológica;

5) Absoluta transparência norteou nosso trabalho, 
e o êxito desta campanha representa uma resposta pública de protesto pelas arbitrariedades praticadas na AP 470. Assim, o valor excedente ao pagamento da multa será doado para atender a mesma penalidade imposta aos demais companheiros;

6) Estamos realizando os cálculos para o recolhimento dos tributos devidos, dentro do prazo legal, e iremos publicar o recibo do pagamento a ser efetuado;

7) Reafirmamos nossa gratidão e respeito aos que nos apoiaram, de todas as classes sociais e regiões do país, demonstrando inconformismo diante do julgamento de exceção, midiático e arbitrário, que condenou sem provas os nossos companheiros.São Paulo, 5 de fevereiro de 2014.Maria Leonor Poço Jakobsen OAB nº 170.083/SP Coordenadora. (Grifo nosso)

 

Esses são os indícios que a corrupção vale a pena, além da fundada suspeita de que cumprem pena em celas especiais, estão prestes a responderem em liberdade pelos crimes que cometeram. Além do mais, saíram mais ricos, devido arrecadações que os petistas alcançaram para uma grande causa nobre, o crime.

É possível auferir dos dados estatísticos que as ações penais originárias ratione persoane possuem número bastante elevado hodiernamente, o que pode ser o resultado do grande número de autoridades que possuem o foro por prerrogativa de função, além da falta de estrutura das cortes superiores fazendo com que os tribunais superiores fiquem cada vez mais abarrotados de processos, concorrendo, consideravelmente para a mora do judiciário.

A deficiência no julgamento das ações penais de agentes detentores de foro especial não se encontra apenas nas cortes especiais. É possível perceber que a deficiência decorre de todo o sistema, seja nas investigações feitas pela polícia federal, seja no requerimento de diligências, na aceitação e rejeição de denúncias, bem como noutras falhas decorrentes da instrução probatória.

A ausência de estrutura na sistemática no processo e julgamento das ações penais de competência originária faz com que as ações se prologue por anos, desprestigiando todo o sistema jurídico penal, bem como o Poder Judiciário.

 

3.2     A sensação de impunidade gerada pela mora do judiciário no julgamento de autoridades detentoras de prerrogativa de função

O descrédito do poder judiciário adveio dos poucos julgamentos e condenações dos agentes detentores do foro por prerrogativa de função, fazendo com que manchasse a imagem das cortes superiores. Na visão geral, o foro especial é um privilégio concedido aos poderosos, que ficam impunes.

A vinculação de notícias na mídia, nos meios de comunicação a respeito da dificuldade das cortes superiores no julgamento dessas autoridades, fez com que a população desacreditasse na justiça, quanto aos detentores do foro.

Campanhas já mencionadas, como “Juízes contra a Corrupção”, “Abaixo ao foro privilegiado”, bem como os projetos de emendas constitucionais a fim de suprimir e/ou diminuir o número de autoridades detentoras do foro de prerrogativa de função é um caminho paralelo no cenário atual, mas é necessário um olhar crítico sobre essas autoridades e sobre a deficiência, a ausência de estrutura das cortes superiores, como meio de diminuir a sensação de impunidade e ver essas autoridades sendo julgadas e condenadas de acordo com o devido processo legal.

 

4 (In) viabilidade da abolição do foro de prerrogativa de função

O foro de prerrogativa de função encontra-se delineado na CRFB/1988 nos moldes dos arts. 29, X; 96, III; 102, I, “b” e “c”; 105, I, “a”; 108, I, “a”. Logo, não há como afirmar ser uma norma inconstitucional ou de afronta aos princípios tutelados na CRFB/1988.

Para que possa existir uma alteração constitucional, necessário se faz, aprovação de emenda constitucional, conforme dos ditames do art. 60 da CRFB/1988[89].

Conforme dispositivo do art. 60, § 4º, da CRFB/1988, o projeto de emenda constitucional não pode tentar abolir a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais, as quais são chamadas de cláusulas pétreas constitucionais, que não podem ser objeto de deliberação do Estado.

A alteração constitucional relativa à previsão de foro por prerrogativa de função não fere as cláusulas pétreas. Logo, pode ser, objeto de emenda constitucional, seja no sentido de abolição do foro especial, seja na previsibilidade de abreviação, restringindo a algumas autoridades.

Abolir o foro por prerrogativa de função não é a melhor arma de batalha contra a corrupção, contra os “privilegiados”, quanto a mora e deficiência nos processos e julgamento dessas autoridades, haja vista que, algumas autoridades, devido ao alto cargo ou função pública ocupados, necessitam de todo um respaldo, para que não fiquem à mercê de manipulações políticas e ideológicas.

Sendo então, inviável a supressão total do foro por prerrogativa de função, haja vista que não é o foro em si, que traz a sensação de impunidade, o descrédito do poder judiciário, mas a condução das formas com que se é processado e julgado.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CONCLUSÃO

 

O foro por prerrogativa de função, previsto na CRFB/1988, não é apenas exclusivo do Brasil e o seu surgimento se deu em tempos remotos, contemporaneamente ao da política na idade média, emergindo como uma conquista histórica de toda uma humanidade que buscava conter o absolutismo monárquico, de modo a responsabilizar o soberano.

No Brasil, país colonizado por Portugal, em que a forma de governo era a monarquia, centralizava-se o poder nas mãos do imperador, obtendo, este, regalias advindas deste poder. O foro por prerrogativa de função é um resquício desta colonização, tendo traço forte no Brasil Império, mas que perdura até hoje.

No Direito Comparado, o foro por prerrogativa de função possui previsão em alguns países. Já em outros sequer existe previsão nesse sentido. Países como França, Portugal, Itália e Espanha possuem foro por prerrogativa de função, mas que não se assemelha à previsão no Brasil, que é ampla, ao passo que naqueles países a previsão é bastante restrita.

A ideia de privilegio que se tem do foro por prerrogativa de função é fundada na aparente impunidade detentores do poder. Em verdade, o foro por prerrogativa não é um privilégio aos agentes detentores, e sim uma forma de acautelar a função e o cargo público ocupados, por serem estes de grande relevância ao Estado. No Brasil, após o término do mandato do exercício funcional cessa-se o foro por prerrogativa de função, fortalecendo o entendimento que a proteção é o cargo, e não à pessoa. O agente que não é revestido em cargo público não pode ser revestido no foro privativo.

O legislador, por meio de inúmeras tentativas, defendeu a extensão do foro por prerrogativa de função a ex-ocupantes de cargos públicos, porém, até o momento, não houve êxito, já que a investidura no cargo remete o agente ao julgamento nas cortes superiores, a sua desocupação arreda a competência especial, salvo se a renúncia for disfarçada fraude processual.

A sensação de impunidade que se tem a respeito do foro por prerrogativa de função decorre da má estrutura das cortes especiais no processo e julgamento, haja vista que não são elas especializadas em processos e julgamentos relativos às competências originárias ratione personae, uma vez que julgam inúmeras matérias, constitucionais e infraconstitucionais, mas, fundamentalmente, cuidam de matérias legais, seja referente à legislação infraconstitucional, seja à legislação constitucional, e não de matérias fático-probatórias.

O número de autoridades detentores do foro por prerrogativa de função é bastante extenso no Brasil, como também os números de processos, seja de competência originária ou recursal, é elevado, mas pouco julgadores.

Como meio de driblar o empilhamento de processos parados nas cortes superiores, o sistema jurídico foi moldando-se às novas necessidades, instituindo-se a Lei 12.019/2009, que prevê a possibilidade de o relator das ações penais originárias delegar suas funções a juízes de primeiro grau, para a realização dos atos instrutórios.

Inobstante a adaptação do legislador aos novos obstáculos, como meio de agilizar os processos e julgamentos, não foi possível reverter com propriedade a falta de estrutura das cortes e as deficiências advindas do sistema processual quanto ao foro por prerrogativa de função.

Como meio para suprimir a sensação de impunidade aos agentes detentores do foro por prerrogativa de função, talvez não seja interessante simplesmente a abolição de sua provisão, uma vez que altos cargos e funções públicas necessitam de uma proteção estatal, mas sim uma limitação e criação de critérios específicos para as autoridades que gozam de foro por prerrogativa de função, como ocorre em outros países que possuem foro e têm sua matéria limitada.

Ademais, seria importante abolir o foro por prerrogativa de função nas Constituições dos Estados, como meio de frear as extensões de foro especial a autoridades que não possuem cargo e função públicas relevantes ao Estado Democrático de Direito.

Como as cortes especiais não possuem estrutura suficiente para o julgamento e processamento das autoridades detentoras de foro especial, necessária se faz a criação de leis para aprimorar o sistema processual, bem como agilizar a instrução e julgamento de processos relativos a agentes com foro por prerrogativa de função.

Uma proposta de muita valida, feita pela AMB, é a criação de varas e câmaras especializadas para o julgamento de crimes relacionados à corrupção, foro privilegiado e defesa do patrimônio público.

A limitação da competência penal originária ratione personae além de diminuir o empilhamento das ações penais nas cortes superiores, destinando o foro por prerrogativa de função a agentes que exercem verdadeiramente uma função ou cargo públicos relevantes ao Estado, agilizaria o encaminhamento dos processos, bem como minoraria a sensação de impunidade decorrente da mora do judiciário nas ações penais de agentes detentores de foro por prerrogativa de função.

 

REFERÊNCIAS

 

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Sobre a autora
Rafaella Nobrega

Advogada, Pós graduada em Direito Público pela Faculdade AVM. <br>Assessora legislativa

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