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A participação popular no desenvolvimento da democracia

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Agenda 25/06/2016 às 10:57

Da democracia ateniense, ao paradigma moderno, passando por teorias recentes da democracia, o presente trabalho investiga as alterações na relação entre participação e democracia, analisando o caminho trilhado até agora e perspectivas para o futuro.

INTRODUÇÃO

Em evento para apresentar o livro "Ensaio sobre a Lucidez" em Madri, José Saramago proferiu o seguinte discurso:

Tudo se discute neste mundo, menos uma única coisa: não se discute a democracia. A democracia está aí como uma espécie de santa no altar, de quem já não se esperam milagres mas que está aí como uma referência, uma referência: a democracia! E não se repara que a democracia em que vivemos está sequestrada, condicionada, amputada, porque o poder do cidadão, o poder de cada um de nós, limita-se, na esfera política a tirar um governo de que não se gosta e a pôr um outro de que talvez se venha a gostar. Nada mais.

Independentemente do que se possa pensar sobre a filiação política de José Saramago, sua fala aborda algo interessante. O raciocínio parece ser simples, a democracia estaria intimamente ligada ao sistema eleitoral, que constituiria, por meio do direito ao voto, a forma de participação por excelência dos cidadãos nas democracias contemporâneas. É majoritário o entendimento de que nas condições atuais em que se desenvolve a atividade política, a representação democrática se apresenta como imprescindível, no entanto, se seria necessário restringir a participação da população na tomada de decisões ao ato de votar, constitui-se como questão com respostas das mais variadas. Qual seria a ligação entre participação popular e democracia? Estaria essa ligação perdida nas democracias contemporâneas? Essas questões evocam a necessidade de um estudo sobre o desenvolvimento de participação popular na história das sociedades.

Estudar o desenvolvimento da democracia, portanto, se faz necessário em todo trabalho que deseje entender melhor como a noção de participação popular se desenvolveu no tempo, afinal foram as diversas configurações de democracia que ajudaram a modelar a forma com a qual a participação popular se apresentava, institucionalizada ou não. No entanto, desenvolver detalhadamente dois milênios de história sobre um conceito representa tarefa que foge ao objetivo do presente trabalho. Tendo isso em vista, dividimos está pesquisa da seguinte forma, inicia-se com a democracia ateniense, passando para a modernidade com a discussão sobre a primazia da representação e das eleições, constituindo a democracia moderna para ao final se estabelecer como a era moderna moldou a relação entre a democracia representativa e a participação popular. Essa “grande aventura humana”[1], uma jornada longa e não necessariamente linear, será o ponto de partida do nosso trabalho.

1 A DEMOCRACIA ANTIGA: O PARADIGMA ATENIENSE

A análise do que pode ser chamado de democracia antiga inicia-se, comumente, com a experiência ateniense dos séculos V e IV a.c. Mesmo marcado pela exclusão de diversos seguimentos da sociedade (mulheres, escravos e metecos) o sistema democrático ateniense foi responsável pelo desenvolvimento de diversas noções que continuam a permear tanto discussões teóricas quanto o senso comum, notadamente o princípio segundo o qual a soberania pertence ao povo[2] e pode, em uma análise atenta, oferecer uma visão inovadora a respeito dos problemas que as democracias contemporâneas enfrentam. Como bem coloca Simone Goyard-Fabre, é sob um signo de ambivalência que a democracia ateniense irá se desenvolver, impulsionado por um ideal de participação popular que irá ser ao mesmo tempo seu motivo de excelência e sua ruína[3].

Para entender um pouco o sistema que vigorava em Atenas é necessário ter em mente a noção de que a atividade política na cidade era vista como algo inserido na experiência diária do cidadão. Mesmo para figuras tão distintas quanto Protágoras e Aristóteles em relação ao valor dado à democracia, pertencer a cidade era participar da escolha de seu destino, o homem, ou pelo menos os homens livres, eram vistos como seres políticos por excelência[4] e por meio dos diversos cargos disponíveis, desde a coordenação dos diversos demes e unidades administrativas, até a presença no Conselho dos 500, somando-se a isso o princípio da isagoria vigente dentro da eclesia, através do qual todo cidadão tinha direito de falar e ser escutado relativamente as decisões a serem tomadas[5], pode-se afirmar que era uma expectativa real de todo cidadão ao nascer, participar, de alguma forma, da decisão sobre os rumos da cidade[6]. Os locais principais de decisão eram a eclesia, uma assembleia onde todo cidadão que tivesse interesse poderia participar e que se reunia, no mínimo, quarenta vezes por ano[7]; a bulé, o conselho de 500 pessoas pertencentes a todas as classes de cidadãos; os estrategas, como poder executivo e a helieia, um tribunal composto por seis mil cidadãos[8]

O uso do sorteio como forma de preencher os cargos limitados favorecia a possibilidade real de assumir um cargo, o que, a seu turno, fazia com que a prática democrática fosse mais intensa para os cidadãos, era um princípio de rotatividade[9]. Estima-se que, no processo de distribuição de cargos por sorteio estivessem envolvidos mais 600 cargos[10]. Alguns desses cargos eletivos, notadamente os que envolvessem relação com as funções militares e do tesouro, outros eram preenchidos pelo já referido sorteio, mas, independentemente da forma de escolha, esses membros não possuíam o poder de decidir sobre os assuntos apresentados, uma vez que essa prerrogativa permanecia vinculada às assembleias[11], além da existência de uma vigilância constante sobre esses cargos, inclusive com a possibilidade de que cidadãos dessem voto de desconfiança aos magistrados eleitos[12].

Não foi sem críticas, no entanto, que a democracia se desenvolveu em Atenas, Heródoto, Aristóteles, Platão, Aristófanes, muitos dos grandes nomes da filosofia, teatro e outras áreas criticavam a democracia, oferecendo uma visão mais moderada e muitas vezes escarnecedora, pautada na percepção dos perigos que a democracia poderia suscitar, expuseram a ambivalência que viria a marcar esse regime nos anos que se seguiriam. Platão a condenava, com base em sua metafísica, a incompetência e o descontrole do demos que se deixava levar pelos discursos dos sofistas e estava perdido em uma liberdade que mais parecia com licença para que se fizesse o que as paixões ordenavam[13]. Aristóteles, mais moderado que Platão, salientava que, uma vez que é para o bem comum que o governo deve ser voltado, a democracia, ou governo dos pobres como ele o coloca, caso voltado para o bem comum poderia produzir um bom governo, o receio de Aristóteles era de que o povo ao dar lugar as suas paixões passasse a governar apenas para seus próprios interesses[14]. Não se pode afastar do discurso dos filósofos a natureza aristocrática, aqui no sentido literal da palavra, acreditando que os melhores devem governar, seja o rei-filosofo de Platão ou a classe aristocrática de Aristóteles[15].

A democracia ateniense não era perfeita, com suas contradições internas produziu um regime que perduraria nos séculos, recebido com encantamento e com receios. O que é certo é que está longe de ser tão somente um artigo de antiquário, como alguns dos teóricos querem encara-la, como também a salvação do nosso sistema atual, mas deve, sem dúvidas ser estudada com seriedade.  É com esse legado misto que a ideia de democracia chegou à era moderna.

2 A DEMOCRACIA MODERNA

O ressurgimento da democracia no debate político da era moderna não foi glorioso. Se tomarmos por base a experiência dos três países que viriam a se tornar modelo de sistema político no ocidente e que foram responsáveis por três das mais notórias revoluções da história, Inglaterra, Estados Unidos e França, encontra-se que, durante muitos anos, o termo democracia, em boa parte das vezes, quando não completamente esquecido em meio a referências centradas meramente na sua dimensão histórica, enquanto experiência das sociedades ateniense e romana, será tomado como algo pejorativo e inadequado para a sociedade que se desejava construir[16]. Nesse sentido, destaca-se que a compreensão da consolidação do sistema que hoje está presente na maioria dos países e da forma com a qual concebemos a participação popular dentro desse sistema, passa por algumas noções básicas. A primeira delas é a que cuida do triunfo da representação como forma de exercício do poder pelo povo. A segunda é a escolha das eleições como método para operacionalizar o sistema representativo.

2.1 A vitória da representação

Iniciando com o contexto inglês, tem-se que a contribuição de James Mill seria responsável, juntamente com a de Jeremy Bentham, por inaugurar o pensamento da democracia liberal[17], tendo como um do princípios a representação como forma de exercício do poder. No Essay On Government(1820), James Mill inicia a discussão sobre a melhor forma de governo com a definição da finalidade para qual os governos existem, relacionado a definição dessa finalidade com a sua definição de natureza humana, que é definida como sendo a de maximizar felicidade e evitar a dor[18], sempre buscando quando possível obter os objetos que deseja de outros homens mais fracos[19]. Assim, a finalidade do governo é a distribuição dos meios escassos de garantia da felicidade da maior parte dos membros de uma comunidade e impedir que qualquer indivíduo ou grupo prejudique essa divisão otimizada[20]. Após essa definição, Mill parte para a análise das formas de garantir o cumprimento dessa finalidade com base em quantos serão aqueles responsáveis por perseguir este objetivo, para isso, ele utiliza a tradicional divisão grega das formas de governo em Democracia, Aristocracia e Monarquia[21]. Na democracia, de acordo com Mill, toda a comunidade deve garantir a proteção uns dos outros, no entanto isso envolveria dois grandes problemas, o primeiro é que tendo em vista que tudo deve ser decidido em assembleia, demandaria uma quantidade enorme de tempo do indivíduo participar dessas decisões, prejudicando a necessidade do trabalho e por sua vez a aquisição de propriedade privada e a estabilidade da comunidade em si mesma. O segundo problema seria que toda assembleia numerosa seria incapaz de administrar algo, pois facilmente seria presa da violência e dos arroubos dos sentimentos, fazendo com que a calma necessária para as decisões fosse impossível[22].

Após a análise da constatação de que, em face da natureza humana acima descrita, nem a aristocracia, nem a monarquia e nem uma combinação qualquer dos governos seriam suficientes para garantir a proteção dos indivíduos nem a maximização de sua felicidade, a saída apontada por Mill é a representação[23]. Por meio da representação, seria possível a comunidade escolher os representantes, sendo apenas necessário manter controle sobre as ações dos mesmos para evitar que a natureza humana de priorizar a própria felicidade prejudique os interesses da comunidade[24]. Para ele, esse controle se daria prioritariamente sobre o tempo de mandato dos representantes, por meio de eleições periódicas, fazendo com que os representantes, nunca estando tempo demais longe da comunidade da qual saíram, agissem sempre lembrando que suas decisões também terão consequências sobre ele enquanto membro da comunidade, dessa forma, no cálculo das vantagens, não valeria a pena abusar do poder enquanto representante temporário, se ele poderia sofrer como membro da comunidade as consequências negativas de suas próprias decisões[25].

     Na França, Montesquieu foi um dos autores essenciais para a construção da definição de democracia que seria responsável pela supressão do termo nos debates da revolução. Montesquieu inicia o Livro II do seu O Espirito das Leis com a distinção entre três espécies de governo. A primeira espécie é a Republica, na qual a soberania está concentrada na totalidade ou em uma parcela do povo. A segunda espécie é a monarquia, onde uma pessoa governa por meio de leis estabelecidas. A terceira espécie é o governo despótico, no qual uma pessoa governa de acordo com sua vontade[26]. Montesquieu esclarece, posteriormente, que o primeiro tipo de republica é o que se chama de democracia, nessa espécie de república é o povo que possui o poder supremo. O autor estabelece de imediato que, apesar de excepcionais em escolher aqueles que tem mérito para governar, o povo não sabe governar a si próprio, faltando-lhe a parcimônia necessária para gerir a coisa pública, sendo ou muito omisso ou muito violento[27]. Posteriormente afirma, ao analisar o governo inglês, que os representantes são bem mais aptos a discutir sobre os negócios públicos, sendo a falta dessa habilidade do povo, um dos maiores inconvenientes da democracia, para Montesquieu, a única função do povo em um governo representativo era a de escolher os seu representantes[28]. É, no entanto, ao dissertar sobre a degeneração da forma democrática de governo que ele deixa uma de suas maiores marcas, ao afirmar que os princípios democráticos podem padecer tanto pela falta de igualdade, quanto pelo excesso da mesma, momento no qual o povo tentaria controlar todas as funções do governo[29].

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Joseph Sieyes era categórico ao defender que o que se devia instalar na França era um governo republicano, com base na representação. A noção por ele defendida de soberania nacional, que englobava todos do terceiro estado, coincidia com a necessidade de que essa nação, que promovia a equivalência entre cidadania e nacionalidade, fosse representada[30], afinal, “o povo não pode ter outra voz senão aquela de seus representantes, não pode falar, não pode agir senão por intermédio deles”[31]. Sieyes também possuía o interesse de romper com o passado, inaugurando novas instituições que será lugar comum nos discursos da Revolução Francesa, afirmando que não se pode pensar as instituições do futuro apenas olhando para o passado[32].

Na realidade da França do Século XIX, houveram diversos movimentos políticos e uma das maiores revoluções da história, mas boa parte deles estava carregada do desdém pela democracia e pela participação popular ativa apresentado pelos teóricos da política. A pesquisa de Pierre Rosanvallon sobre o significado do termo “democracia” na era moderna é esclarecedora. A análise dos dicionários de política da época demonstraram que além de somente aparecer enquanto verbete em um dos dez dicionário produzidos entre 1789 a 1801[33]. O termo “democracia” era invariavelmente identificado, como já nos referimos com uma forma de governo antiga, exótica e com tons de anarquia[34]. Esse interesse em romper, nas novas instituições, com as referências antigas era dividido por boa parte dos teóricos.  De outro lado, mesmo os críticos do modelo representativo, não o faziam no interesse de substitui-lo pela democracia e sim para adequar problemas da representação, como a distância dos representantes e dos representados. Era a soberania popular que eles desejavam garantir e não a democracia como entendida na época[35].

Nas colônias norte americanas, a predileção teórica pela representação também era notória, ainda que na prática a realidade dos colonos fosse muito mais participativa com os town meetings da Nova Inglaterra, por exemplo. No famoso comentário aos Artigos da Confederação, denominado O Federalista, temos, sob autoria de James Madison, uma defesa singular do governo republicano, com base na representação. Diferentemente de outros autores que apontavam a representação como solução para a impossibilidade de uma democracia direta, ou seja, apenas como uma alternativa, Madison considerava a representação uma forma diferente e superior de governar[36]. Madison inicia O Federalista nº 10, cujo objetivo principal era mostrar como a união dos estados auxiliaria na obtenção de estabilidade política, apontando os inconvenientes dos governos populares, como injustiça, instabilidade e confusão, tudo isso com o apoio de uma maioria que não decidiria com base nas regras da justiça, mas com base em sua superioridade numérica e interesses pessoais[37]. As facções, entendidas por Madison como um número de cidadãos unidos por um impulso comum ou interesse distinto dos da comunidade, seriam o grande perigo de um governo popular[38]. Ao mesmo tempo, eram inevitáveis uma vez que fruto da mesma liberdade que os governos teriam o dever de proteger e da própria natureza humana, muito mais propensa ao desentendimento que à busca do bem-comum[39].

Contra esse perigo então, restaria, para Madison, o controle de seus efeitos e é nesse ponto que o governo republicano, entendido como aquele no qual o poder é exercido por meio de representação, apresenta-se como solução, uma vez que permite, por meio da intermediação dos representantes, que as opiniões e interesses públicos possam ser refinados e ampliados[40]. A representação também permitiria, e seria favorecida, pela ampliação da sua extensão no território, de forma que quanto maior fosse a república, melhor desempenho ela teria. Isso ocorreria pelo fato de que dado que o representante seria eleito por um número grande de eleitores as chances da formação de facções seriam menores[41]. Na compreensão de Madison, as democracias puras estariam fadada a perecer pela ausência dessas salvaguardas contra a formação de facções[42].

Ainda que houvesse uma clara polarização do debate entre os Federalistas e os Anti-Federalistas durante o período de aprovação da proposta de constituição elaborada na Filadélfia, o objeto dessa discordância não era a forma representativa de governo e sim a compreensão de ambos os grupos do que significava a representação[43]. Enquanto os Anti-Federalistas compreendiam a representação por meio de um caráter descritivo, entendendo que a os representantes deveriam se identificar com os representados, de forma que a assembleia dos representantes fossem como uma cópia das disposições daqueles que os elegeram[44], os Federalistas tratavam a representação com base no princípio da distinção, que determinava que era desejável que representantes e representados não guardassem identidade, haja vista que uma das funções das eleições era escolher aqueles mais virtuosos para governar e que seriam as eleições periódicas o que manteria a fidelidade do governante com o governado através da necessidade de reeleição[45].

Dessa forma, fica claro que o triunfo da representação sobre as formas diretas de democracia se deve não só a impossibilidade material de uma democracia direta, como muitas vezes alegado, seja por conta das dimensões dos Estados seja por conta da complexidade de questões a serem tratadas, mas também e ,até certo ponto, principalmente, ao receio do que a participação popular pudesse trazer para os novos governos que se formavam, em um contexto no qual a democracia era inicialmente ligada à ideia de anarquia e  desorganização. Com o tempo, a democracia ganhou novamente ares positivos, principalmente após o movimento de identificação da mesma com o sistema representativo estabelecido e com a estabilidade que ela havia trazido.

2.2 As eleições como instrumento prioritário para o preenchimento dos cargos.

Bernard Manin dedicou um capitulo em sua obra The Principles of Representative Government para entender como se deu o processo de triunfo das eleições como método de escolha de representantes. É curioso notar que o histórico do uso do sorteio não se restringia apenas à democracia ateniense, haja vista que cidades referência para o pensamento republicano usavam ou usaram essa espécie de forma de preenchimento de cargos. Veneza, pelo menos até 1797, utilizava o sorteio, enquanto em Florença, a escolha de magistrados por sorteio era parte importante do sistema republicano lá vigente[46]. A defesa da representação não excluiria, necessariamente, o uso do sorteio como método de escolha dos representantes ou mesmo de um modelo misto de escolha, parte através de eleição e parte através de sorteio.

     O maior paradoxo se apresenta quando localizamos nos movimentos de estabelecimento dos governos representativos estudados a necessidade de igualdade, quando, contrastando com esse sentimento de igualdade estava a constatação feita por diversos filósofos da natureza aristocrática das eleições. Essa compreensão de que enquanto o sorteio seria vinculado a ideia de democracia as eleições seriam vinculadas a critérios aristocráticos é defendida por nomes como Montesquieu e Rousseau. Montesquieu reconhecia que as eleições pertenciam a um sistema aristocrático de governo, enquanto o sorteio pertencia a uma noção mais democrática[47], e Rousseau que deixava claro que uma das diferenças entre o governo democrático e o aristocrático era forma de escolha, pertencendo o sorteio a democracia e a eleição à aristocracia[48]. O que teria levado então à escolha pelas eleições e não pelo sorteio?

A chave para a compreensão desse aparente paradoxo é a ideia de consenso. Tendo como um dos principais teóricos John Locke, a ideia de que o consenso dos governados era essencial para legitimar os governos permeia boa parte do debate dos três países escolhidos[49]. Não à toa as três principais revoluções que marcaram a história da Inglaterra, dos Estados Unidos e da França, tem como uma das bases a necessidade de estabelecer o consentimento pelos governados. No debates de Putney(1647) na Inglaterra, entre as alas conservadora e radical do exército de Cromwell, a alegação da necessidade de consentimento impulsionava o discurso dos Levellers. Na constituição norte americana, logo no preambulo, se lê a referência à necessidade de que o consentimento do povo esteja presente para legitimar o governo. Na Revolução Francesa, em 1789, um projeto de declaração dos direitos do homem e do cidadão publicado por Thouret, apresentava a noção de que os cidadãos tinham o direito de submeter apenas àqueles a quem tivessem dado consentimento.[50] O dito princípio se eleva contra a hereditariedade das funções públicas, o que coloca em segundo plano as preocupações sobre distribuição equânime de cargos públicos e centraliza o debate na forma com a qual os cargos seriam preenchidos, para os mais conservadores era uma ótima ideia a eleição, pois ele poderiam ver restrito o acesso de todos ao poder de fato e para os radicais, a defesa do princípio do consentimento não permitia optar pelo sorteio[51]. Dessa forma, o paradigma por meio do qual se postulava que o cidadão era aquele que poderia preencher os cargos e ter voz ativa nas decisões da cidade é alterado para um paradigma no qual o cidadão passa a ser a fonte de legitimidade política através do direito de consentir ao governo[52].

2.3 A discussão sobre a natureza do mandato dos representantes

Como devem decidir os representantes é a terceira pergunta que se faz no presente trabalho relativamente à constituição do que se pode chamar de democracia moderna. Afinal, qual a natureza dessa espécie de mandato? Uma das noções vigentes sobre o assunto era a de que, em respeito ao princípio do consentimento, o representante deveria decidir como o representado o faria, é a teoria do mandato imperativo. Essa percepção, no entanto, é difícil de defender, quando colocamos a perspectiva de centenas ou de milhares de pessoas com interesses e compreensões de mundo distintas que possam ter eleito alguém. Estaria esse representante obrigado a pensar, discutir, transigir e decidir como se fosse todas essas pessoas, uma espécie de imitação? E se uma situação demandar um posicionamento que nenhum dos representados teria a coragem de tomar, o que fazer?[53] Em função disso, a outra vertente defende que o representante deve ter liberdade para escolher o que fazer em benefício dos representados, não estando adstrito a promessas, nem a orientações dos que o elegeram, é a teoria do mandato livre[54].  Dentro de cada vertente teórica existem diversas gradações, por exemplo, alguns defendem que o representante deve estar vinculado apenas a promessas de campanha, outros que o representante deve consultar os representados apenas em função decisões novas ou controversas[55], a inclusão dos partidos políticos dentro dessa discussão traz uma nova compreensão, havendo defensores de que o representante deve fidelidade ao programa do partido, não sendo nem completamente livre, nem completamente vinculado e outros que defendem que o representante deve perseguir livremente os interesses da comunidade e que o partido é uma interferência parcial dentro do contexto político, não representando os reais interesses nacionais[56].  Entre defensores do mandato imperativo temos, por exemplo Rousseau, que em sua analisa da constituição da Polônia, afirmou que uma das formas de manter a identidade entre o representante e representado era a que os representantes deveriam manter o estrito cumprimento das instruções dos cidadãos[57]. Entre defensores do mandato livre, estão autores como Edmund Burke que, no seu famoso Discurso aos Eleitores de Bristol, defendeu a independência do mandato dos representantes, com o fundamento de que eles deveriam representar toda a nação e não apenas os desejos daqueles que os elegeram.

Todas essas teorias tem por distinção principal de representação adotada. Os defensores da independência dos representantes, percebem que se o representante não decide nada, não há representação e ele é uma simples marionete, eles defendem uma concepção ativa de representação. Aqueles que advogam a imperatividade do mandato, não concebem como se pode chamar de representação uma situação na qual os interesses e desejos do representado são desrespeitados ou nem mesmo levados em consideração, nesses casos o representante só obedece a um critério formal de representação, afinal, ele foi eleito por alguém.[58] Esse paradoxo é posto de maneira exemplar por Hanna Pitkin ao afirmar que “the seemingly paradoxical meaning of  representation is perpetuated in our requirements for the activity of representing: the represented mus be both present and not present.[59]” O mandato imperativo não prosperou na prática, via de regra, os representantes decidem as questões em interesse do seus representados sem nenhuma consulta direta a eles, ainda que não totalmente independentes, haja vista o peso da opinião pública, da mídia e da necessidade de reeleição. Isso não significa no entanto, que a questão resta encerrada, um movimento recente no Brasil com a expressão “não me representa” deixa claro que essa ausência do representado está sendo sentida por alguns dos cidadãos do país.

3 PARTICIPAÇÃO E REPRESENTAÇÃO: ANTAGONISMO, COEXISTÊNCIA E COMPLEMENTARIEDADE

Com o triunfo da democracia representativa e das eleições, ainda que inicialmente restritas a segmentos da população, a participação popular também ganhou um redimensionamento nas teorias políticas. Com a ascensão do ideal representativo nos referidos países, a participação torna-se mediada pelos representantes e concentrou-se em um único momento, a eleição. Esse movimento no entanto despertou em alguns teóricos da vertente liberal a necessidade resignificar a participação popular no cenário da democracia. Nesse sentido, John Stuart Mill foi uma das mentes que vislumbrou algo além do esquema tradicional de representação como algo ideal. Incomodado, também, com a concepção do ser humano como egoísta e mero maximizador de utilidade que a noção de representação defendida por seus antecessores, entre eles o pai dele James Mill, tinha por pressuposto, J.S. Mill via algo mais no ser humano[60]. J.S. Mill inicia o seu On Representative Government com uma definição distinta do objetivo governo, para ele “the most important point of excellence which any form of government can possess is to promote the virtue and intelligence of the people themselves.”[61]. Essa visão de objetivo para governo carrega uma diferente carga axiológica para o debate democrático, ao estabelecer que o governo tem o dever não de maximizar felicidade, mas de promover virtude e inteligência. Posteriormente, J.S. Mill conclui como melhor forma de governo aquela na qual a soberania está concentrada em todos os membros da comunidade, tendo, cada cidadão oportunidade de participar da vida política, ainda que periodicamente[62].  Com J.S. Mill, a participação passa a ter um papel pedagógico, ao participar, o cidadão se torna cada vez mais imerso nas questões políticas, passando a compreender algo além da próprias necessidades individuais e se integrando melhor à comunidade da qual faz parte, sem isso, pontua J.S. Mill, o cidadão ficará fadado apenas a obedecer leis e se submeter ao governo, sendo dever do estado permitir a participação do cidadão adequada a suas capacidades na maior medida possível[63]. J.S. Mill, no entanto, sabia que não poderia colocar todas as suas esperanças no processo democrático sem alterar algumas estruturas da sociedade, nesse sentido ele acreditava também que as cooperativas de trabalhadores e a educação da classe trabalhadora poderiam auxiliar nas mudanças estruturais necessárias para diminuir a desigualdade que ameaçava sua teoria de democracia. 

Da teoria estabelecida por J.S. Mill surgiu durante o início do Século XX o que C.B. MacPherson denominou de Democracia Desenvolvimentista, que trabalhava justamente com a noção de que o governo deve trabalhar no sentido de desenvolver as aptidões e capacidades do seus cidadãos, notadamente por meio da participação política em diversas frentes e não apena por meio de eleições[64]. Esse modelo de democracia no entanto, não prosperou, em partes pela incapacidade dos autores que seguiram J.S. Mill de questionar a distância entre suas teorias para uma democracia desenvolvimentista e a realidade do processo democrático que permanecia presa nas noções inicias da representação acima esboçadas, a democracia representativa havia sobrevivido através de um processo de redução de “responsividade” dos representantes perante os representados[65].

Em 1942, Joseph Schumpeter estabeleceu uma crítica fundamental, quer se discorde ou concorde com sua teoria[66], tanto ao modelo elaborado por J.S. Mill, como aos elaborados por seus antecessores. Schumpeter inicia o capitulo XXI de seu livro Capitalism, Socialism and Democracy(1942) estabelecendo o objeto de sua crítica i.e. a chamada “teoria clássica da democracia”. Tal teoria tomaria por base que o método democrático seria aquele por meio do qual decisões políticas visando o bem comum seriam tomadas por cidadãos através dos representantes eleitos para realizar a vontade geral[67]. A primeira crítica de Schumpeer é endereçada a suposta existência de um “bem comum”, para o autor, dado que para cada grupo e para cada indivíduo envolvido no processo democrático o bem comum tem um significado, sendo impossível a determinação dessa categoria e, ainda que determinado minimamente o “bem comum”, ter-se-ia o problema dos meios necessário para atingir esse bem determinado, assunto que poderia gerar diferenças irreconciliáveis, sem um “bem comum” não haveria, logicamente, uma “vontade geral”, já que não haveria o que identificar com ela, em poucas linhas, toda teoria que se fundasse nesses princípios, para Schumpeter, estaria arrasada[68].

A impossibilidade real de que os indivíduos agreguem as informações de forma independente de propaganda e da mídia para formar argumentos racionais sobre todos os assuntos públicos, só sedimentaria essa compreensão[69]. Após esse momento, Schumpeter propõe uma inversão na tradicional noção de que “o povo decide as questões políticas através de representantes”, para uma noção na qual “o povo elege representantes para decidirem questões políticas”, ou seja, quem decide mesmo, é o representante. Essa inversão permite a elaboração da sua famosa definição de democracia como sendo “o arranjo institucional para chegar a decisões políticas, nas quais indivíduos adquirem o poder para decidir por meio de uma luta competitiva por votos”[70]. Para Schumpeter, o que movimenta o processo democrático é essa competição de uma liderança política por votos e, dada a impossibilidade e os perigos de se fundamentar um modelo em uma suposta vontade do povo, é em função dessa competição que ele decide construir sua teoria.

No modelo elaborado por Schumpeter, a participação deve ser restrita as eleições, ao ponto do autor estabelecer como a quarta condição para o funcionamento da democracia, o “autocontrole democrático”, definido, em relação aos eleitores, como o respeito pela divisão do trabalho político, de forma que após a eleição dos governantes, os governados devem se abster de intromissões na função política, tanto formalmente, como materialmente[71]. Esse respeito veda, por exemplo, o comportamento de “bombardear” o representante com cartas solicitando posicionamentos determinados sobre assuntos a serem decididos[72]. Com Schumpeter, a participação é reduzida novamente, ainda que por motivos diversos dos seus antecessores, às eleições, o cidadão é identificado unicamente com o eleitor/consumidor e a democracia é reconhecida unicamente como instrumento para escolha dos governantes pelos governados.

O desenvolvimento desse modelo foi realizado principalmente por Robert Alan Dahl definindo o que ficou conhecido como teoria liberal-pluralista da democracia. Nessa teoria, a democracia permanece como horizonte normativo, ainda que inatingível, o que existe de fato é a Poliarquia, uma competição de múltiplas minorias e grupos, com recursos e interesses diversos, por determinação política[73]. O poder não seria hierárquico e sim divido entre essas diversas minorias sempre em competição, ao contrário da noção de Schumpeter focada no cidadão atomizado.  A importância dada as eleições e a competição eleitoral para o pluralismo é fruto da noção de que eles aumentam em número, tamanho e variedade as minorias cujas preferencias devem ser levadas em conta pelos líderes políticos[74]. A participação na teoria liberal-pluralista, continua focada nas eleições.

Os anos 60 foram palco de diversas lutas e viriam a fomentar a primeira crítica ao modelo apresentado por Joseph Schumpeter. A população negra lutava por direitos civis, as mulheres por mais autonomia e igualdade, o movimento universitário por democratização, lutas especificas, mas que dividiam, entre outros aspectos, a necessidade destes grupos de participar da sociedade de modo a se sentirem cidadãos autônomos, iguais e livres. É nesse contexto social que surgirá, como crítica ao modelo apresentado, a demanda por maior participação democrática em uma teoria da democracia participativa.  Carole Pateman será responsável por uma das críticas mais contundentes ao modelo inaugurado por Schumpeter. Em sua obra Participação e Teoria Democrática ela argumentará que a” teoria clássica” da democracia foi um arremedo criado por Schumpeter para unificar percepções de diversos autores em um objeto de crítica único[75]. De fato, como se demonstrou, as concepções anteriores de democracia não podem ser reunidas todas em um grupo, ainda que dividam algumas características.   Pateman irá sugerir a expansão da participação em espaços variados da vida cotidiana, seu foco será, no entanto, na participação na indústria, uma vez que a igualdade econômica se apresenta como necessidade para uma efetiva participação e serviram de base empírica para lançar sua teoria[76]. Nesse ponto, Pateman irá retomar parte do raciocínio desenvolvido por John Stuart Mill e Rousseau em relação a necessidade de diversificação das formas de participação a nível local, de forma a naturalizar a participação e permitir que o cidadão tenha maior autonomia sobre a experiência política na qual está inserido, o cidadão volta a ser mais que o eleitor. Nas palavras da própria autora:

A principal função da participação na teoria da democracia participativa é, portanto, educativa: educativa no mais amplo sentido da palavra, tanto no aspecto psicológico, quanto no de aquisição de prática de habilidades e procedimentos democráticos. Por isso não há nenhum problema especial quanto à estabilidade de um sistema participativo; ele se auto-sustenta por meio do impacto educativo do processo participativo.[77]

A discussão sobre participação não se encerrou com Carole Pateman e os teóricos da democracia participativa da época. Ainda que se coloque que, dada a grande responsabilidade imputada ao cidadão para que alterasse através da participação o sistema político em que está inserido e ao declínio da empolgação sobre as formas de participação direta com base em dados que contestam esse desenvolvimento[78], o que se viu nos últimos cinquenta anos foi um crescente interesse por maior ingerência dos cidadãos na tomada de decisões e maior procura dos mesmos por informação. A obra “Democratizar a democracia” é importante exemplo desse interesse crescente, reunindo experiências de diversos países no desenvolvimento de políticas mais participativas. As condições determinadas pelo debate teórico, notadamente pela corrente majoritária liberal-pluralista, foram questionadas no final do Séc. XX com os diversos processos de democratização, tanto dos países da américa latina quanto dos países do leste europeu após o fim da União Soviética[79]. Somado a isso os países centrais da democracia liberal passavam por uma crise dupla, de um lado a crise na participação, centrada na grande abstenção eleitoral e por outro lado a crise na representação, centrada na distância cada vez mais crescente entre as ações dos representantes e os interesses dos representados[80].

A análise de Pierre Rosanvallon acaba por fortalecer esse entendimento, ao afirmar que a legitimidade dada pelas eleições sofreu um processo “dessacralização”, advindo da percepção de que as eleições não eram suficientes para garantir o cumprimento das promessas pelos candidatos e de que tinham se tornado simplesmente um processo para a escolha de quem irá governar, não estando mais vinculada a expectativas de legitimidade de políticas a serem cumpridas[81]. Percepção que constitui uma das premissas da teoria schumpteriana de democracia, mas passou a ser vista como problemática principalmente, diante do crescente espaço entre representantes e representados.  A desconfiança cada vez mais generalizada na representação democrática e no exercício do poder fortaleceu o que Rosanvallon denomina de contra-democracia, uma democracia com base em um estado de observação e controle sobre o poder, fragmentada em três expressões principais a vigilância, a denúncia e a avaliação[82]. Favoreceu também a busca por alcançar o ideal das promessas originais da democracia, nesse cenário, a proliferação de mecanismos de participação foi uma das respostas[83] objetivando compensar o enfraquecimento da legitimidade conferida pelas eleições, a desconfiança no exercício do poder e as recorrentes necessidades de democratização de instituições diversas[84].

Nesse sentido, duas soluções apontadas por Boaventura de Sousa Santos e Leonardo Avritzer para uma relação entre a participação e a representação são a coexistência e a complementariedade. A coexistência significa a convivência, nos diversos níveis de atuação, das estruturas burocráticas e de desenhos institucionais tanto da representação (nível nacional), quanto da participação (nível local)[85], representa uma noção de “cada um no seu lugar”. A complementariedade, defendida pelos autores, se apresenta como solução mais sofisticada ao necessitar da construção de novos arranjos institucionais que adaptem a uma nova noção de participação e representação, numa verdadeira integração de ambos voltada para pluralidade cultural e inclusão social[86]. Uma complementariedade possível é a que deriva do fortalecimento da participação através de mecanismos de democracia direta. Envolvendo desde o uso de plebiscitos até a revogação popular de mandatos. Outra, é a que relaciona a participação na administração pública, tanto por meio de conselhos de políticas públicas, quanto por outras formas de interação dos cidadãos com a destinação dos recursos públicos.

4 CONCLUSÃO

A mudança de paradigma da democracia ateniense para a democracia moderna, redimensionou a questão da participação popular. Antes vinculada ao conceito de cidadãos ateniense e relacionada a uma exercício possível do poder nas tomadas de decisão, a participação enquanto fim em si mesmo, passou a compor o intrincado mecanismo da representação política como um instrumento para escolher quem tomaria as decisões. Esse caráter aparentemente contraditório da participação e da representação democrática, no entanto, não se apresenta como o fim da discussão. A experiência democrática é extremamente criativa e novos mecanismos de integração entre a participação e a representação foram criados promovendo uma integração entre a representação necessária e a participação desejável e possível.

As novas formas de organização da sociedade civil também cooperaram para reproduzir uma perspectiva diferenciada de participação na tomada de decisões. É certo que com maior ou menor preponderância nas discussões sobre democracia, o tema da participação popular continua a ecoar nas discussões populares, de forma que a discussão sobre participação popular poder se expressar ou ser escamoteada, mas não há formula retorica que a faça ser superada[87].

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