Qual é a finalidade do processo? Por mais simples que seja a pergunta, a resposta traz consigo uma infinidade de consequências e uma boa carga ideológica, que influenciará o modo segundo o qual o juiz deve conduzir o processo e, por conseguinte, prolatar sua decisão final.
É comum dizer-se que o processo visa à pacificação social através da solução da lide. Athos Gusmão, citando Carnelutti, afirma que “o processo é um meio de que o Estado se vale para a justa composição da lide, ou seja, a atividade jurisdicional visa à composição, nos termos da lei, do conflito de interesses submetido à sua apreciação”. Mas não é só.
Para responder adequadamente à pergunta, primeiramente é preciso identificar que modelo processual se está analisando: o modelo adversarial ou inquisitorial. Em termos gerais, os modelos se referem, como assinalou Daniel Ambrosi, “à atuação das partes na condução da marcha processual, tratando-se de verdadeiros subsistemas processuais, na medida em que regulam os critérios que determinam a forma com que o processo se desenvolve”.
De fato, para Alexandre Zilli, o modelo adversarial “caracteriza-se por uma disputa travada entre duas partes processuais perante uma autoridade imparcial que, além de deter o poder decisório, examina, de forma inerte, todo o material probatório que é apresentado por aquelas”. Trata-se, portanto, de um processo guiado pelo Princípio Dispositivo, em que há uma presunção de igualdade formal entre as partes (paridade de armas), a marcha processual é conduzida pelas partes e o juízo é mera autoridade que decidirá o processo.
Segundo Michele Taruffo, a concepção adversarial do processo funda-se na ideia de que o melhor modo para se resolver qualquer problema jurídico consiste em abrir livre espaço para a competição entre os advogados. Ao juiz não caberia interferir no resultado final: vence quem prevalecer sobre o adversário.
É a ideologia que marcou a cultura jurídica europeia do Século XIX, em que se diz que o valor prioritário do processo civil é a realização da plena liberdade e da autonomia das partes na condução do processo e no desenvolvimento de suas defesas.
Já o modelo inquisitorial “organiza-se como uma pesquisa oficial, sendo o órgão jurisdicional o grande protagonista do processo”, como destacou Didier Jr. Neste modelo, o processo não é conduzido pelas partes, mas pelo juiz, num “desenvolvimento (ou impulso) oficial”. Assim, o juiz pode determinar a produção de provas se entender que as apresentadas pelas partes são insuficientes, já que considerado seu destinatário, ou mesmo indeferi-las, se julgar desnecessárias. Inclusive, o juiz pode inverter o ônus da prova, se vislumbrar a hipossuficiência (em sentido mais amplo) de uma das partes.
Tal modelo é guiado, nos dizeres de Taruffo, pelo Princípio da Legalidade Estrita, onde a jurisdição não tem como escopo apenas a resolução de uma controvérsia, mas também a apuração da existência de uma situação juridicamente qualificada (compreende a dimensão jurídica e fática).
Para que a decisão seja formulada em conformidade ao direito é necessário introduzir um requisito de qualidade da decisão, que, portanto, passa a ser objeto de valoração também em si mesma. Somente as decisões boas, isto é, em conformidade com o direito, serão aceitáveis. Para que haja correção jurídica na decisão é imprescindível que essa se funde em uma apuração verdadeira dos fatos da causa.
A veracidade da apuração dos fatos é um requisito essencial da legalidade da decisão, ao contrário do que ocorre no modelo adversarial, já que nada assegura que corresponda à verdade a versão dos fatos propostas pela parte que prevaleceu na competição.
O conceito de “justa composição da lide”, assim, varia de acordo com o modelo adotado. No sistema adversarial, “é considerada justa a decisão que deriva de um procedimento qualificável como justo, com base em critérios procedimentais de valoração. Em consequência, a veracidade dos fatos da controvérsia é irrelevante”.
O modelo adversarial prevaleceu ideologicamente no século XIX, uma vez que “na ciência jurídica do século XIX, a autonomia de vontade era a pedra angular do direito”, mas desde então houve mudanças estruturais no modo de se pensar a atuação do Estado. Basta pensar nas alterações que se passaram com o contrato.
O direito contratual, embora seja um dos ramos menos afetados pelas mudanças sociais, sofreu, no final do século XX, uma grande revolução paradigmática ao ver revisto e inovado seus princípios estruturais, posto instrumentalizarem apenas a função individual do contrato, sobremaneira liberalista.
Deveras, Paulo Lôbo afirma que os princípios contratuais clássicos, herdados dos Romanos, vêm sendo postos em xeque em virtude das transformações sociais ocorridas principalmente no final do século XX, com a massificação dos contratos e sua padronização.
Dentre os princípios clássicos, despontam-se a Autonomia Privada, a Força Obrigatória do Contrato e a Relatividade Subjetiva, que exprimiam o pensamento liberal segundo o qual a celebração de contratos representava o exercício do direito à propriedade e, por isso, não poderia ser objeto de intervenção estatal. Neste sentido, posicionou-se Haroldo Camargo Barbosa.
Ocorre que a concepção tradicional do contrato sofreu grande embate com o modo de produção decorrente da Revolução Industrial, tendo em vista o aumento exponencial no fluxo de bens e serviços, gerando a necessidade de uma nova forma de contratação: padronizada, estandardizados. Esta nova técnica de elaboração dos contratos pôs em xeque os princípios clássicos do contrato, pois, como atentou Cláudia Lima Marques, “o acordo de vontades era mais aparente do que real (...) desmentindo a ideia de que assegurando-se a liberdade contratual”.
Soma-se a isto o contexto histórico em que tal crise se passa: o surgimento do Estado Social, marcado pelo assistencialismo e pela intervenção na ordem econômica, com vistas a satisfazer os anseios da população e a minimizar as desigualdades sociais. Por via das consequências, o Estado passa a intervir nos contratos não apenas para proteger a parte economicamente mais fraca, mas para imprimir-lhe um sentido ético, uma função social, como acentua José Guilherme Vasi Werner.
Esta forma de Estado recém consolidada no Brasil inspirou um releitura do direito contratual, agora concebido como instrumento de interesse social, pautado em princípios fomentadores da dignidade da pessoa humana, da solidariedade social. Surge, com isso, uma nova concepção do contrato, como instrumento dos inte\resses sociais, valorizando a confiança e as expectativas depositadas no vínculo contratual e a boa-fé dos contratantes, culminando na chamada nova teoria contratual.
A analogia ao contrato não serviu apenas para apresentar a evolução dos institutos ao longo dos últimos séculos, mas para apresentar as características do processo, pois este era considerado, no direito romano, como um contrato e, no século XIX, foi considerado por Arnault de Guényvau como um quase-contrato, sem perder sua natureza privada.
Tal como o contrato, o processo foi sendo cada vez mais objeto de intervenção judicial e interesse social. Da mesma forma que o contrato não é considerado justo, atualmente, pelo simples fato de se conceber a livre manifestação da vontade, o processo tampouco o é apenas pela observância da forma prescrita em lei e da simbologia aplicada (juízes de toga e peruca, sala de audiência, atuação dos advogados).
Num Estado cuja função é, entre tantas outras, promover o bem-estar social, o instrumento jurídico que é posto à disposição dos cidadãos como garantia de seus direitos (o processo) não pode se limitar à teatralidade dos ritos, mas deve buscar a efetividade de seus provimentos e a conformidade das decisões com os direitos dos cidadãos. Desta feita, Michele Taruffo sustenta que a justiça da decisão não deriva exclusivamente da correção do procedimento, dependendo, também, da subsistência de condições específicas que podem ser colocadas da seguinte maneira: 1 – que seja oriunda de um processo justo; 2 – que tenha sido corretamente interpretada e aplicada a norma utilizada como critério de decisão; 3 – que se funde em uma apuração verdadeira dos fatos da causa.
Assim, o autor italiano verifica que o processo tem (ou deveria ter) uma função epistêmica de busca da verdade, independente das histórias narradas pelas partes, pois, como afirmado anteriormente, para que haja correção jurídica na decisão é necessário que essa se funde em uma apuração verdadeira dos fatos da causa. No ordenamento jurídico brasileiro, tal função é derivada dos art. 370 e 371 do nCPC.
No entanto, o processo não tem apenas uma função epistêmica, devendo também encerrar juridicamente a controvérsia estabelecida entre as partes, o que significa dizer que na apuração dos fatos o juiz deve lançar mão de alguns recursos de simplificação da controvérsia. Para exemplificar a afirmação anterior, podemos citar o teor do artigo 405 do Código de Processo Civil, que é uma norma de prova legal: “O documento público faz prova não só́ da sua formação, mas também dos fatos que o escrivão, o chefe de secretaria, o tabelião ou o servidor declarar que ocorreram em sua presença”. Outro mecanismo são as normas que fazem o valor da prova depender do comportamento das partes, como aquela que reconhece que o instrumento particular faz prova plena se a parte contra quem é produzida reconhece sua assinatura (art. 408 do CPC).
No que tange à norma do art. 344 do CPC (“Se o réu não contestar a ação, será considerado revel e presumir-se-ão verdadeiras as alegações de fato formuladas pelo autor.”), a ausência de impugnação de um fato, segundo a literalidade do dispositivo, implica a veracidade daquele, o que garante a simplificação do procedimento, mas ao mesmo tempo pode se desviar do escopo do processo, qual seja a apresentação de uma justa solução para a controvérsia. Taruffo critica a essência de normas deste espeque, argumentando que a não contestação de um fato pode ser definida como a ausência de negação explícita a respeito da veracidade de um enunciado objeto de alegação, mas pode torná-lo, por si só, verdadeiro, o que apenas pode ser resolvido com base no êxito das provas. Isso porque quando apresenta sua história, o advogado assume para si o ônus da prova referente aos fatos que relata.
Seguindo essa postura epistêmica, os aplicadores do direito têm afastado a interpretação literal do dispositivo acima transcrito argumentando que “a revelia não importa em procedência automática dos pedidos, porquanto a presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor é relativa, cabendo ao magistrado a análise conjunta das alegações e das provas produzidas" de modo que a incidência desse artigo fica condicionada à prova, pelo autor, dos fatos constitutivos de seu direito, tal como determina o art. 373, inciso I, do CPC.
Se, como se viu, dentre as finalidades do processo estão a busca da verdade e a resolução do conflito apresentado pelas partes, outro questionamento vem à tona: como o juiz, através de sua decisão final, pode conciliar tais finalidades, quase sempre dissonantes? Parece-se nos mais acertado que o juiz decida somente depois de afastar as incertezas sobre os fatos, pois a obtenção da verdade é muitas vezes (se não sempre) inalcançável. Trata-se, inexoravelmente, de uma apreciação subjetiva, mas que pode ser objetivamente aferível, porque o juiz é obrigado a motivar suas decisões, explicitando o motivo pelo qual considerou tal fato verdadeiro.
Segundo Dimoulis e Lunardi, “de acordo com o sistema de convencimento (ou persuasão) racional à luz do autos, o julgador deve basear sua convicção nas provas produzidas, realizando ponderações sobre a qualidade e o valor probatório de cada uma. A convicção está na consciência do julgador e deve ser explicitada na fundamentação da sentença de acordo com regras de lógica e máximas de experiência”.
O juiz, para decidir o caso, deve estar ciente de que há uma verdade a ser esclarecida, ao que deve envidar seus esforços no sentido de encontrá-la, mas também tem que estar ciente de que há limitações probatórias e cognoscitivas sobre o alcance da verdade. De acordo com Taruffo, “a verdade da apuração dos fatos é relativa no sentido de que é relativo o conhecimento sobre essa, isso porque a verdade se funda em provas que justificam o convencimento do juiz. A mesma verdade é objetiva, já que não é fruto das preferências subjetivas e individuais do juiz, fundando-se em dados cognoscitivos resultante das provas”.
No mesmo sentido, é o posicionamento de Daniel Amorim Assumpção Neves: “O que se deve buscar é a melhor verdade possível dentro do processo, levando-se em conta as limitações existentes e com a consciência de que a busca da verdade não é um fim em si mesmo, apenas funcionando como um dos fatores para a efetiva realização da justiça, por meio de uma prestação jurisdicional de boa qualidade. Ainda que se respeitem os limites impostos à busca da verdade, justificáveis à luz de valores e garantias previstos na Constituição Federal, o que se procurará, no processo, é a obtenção da verdade possível. Por verdade possível entende-se a verdade alcançável no processo, que coloque o juiz o mais próximo possível do que efetivamente ocorreu no mundo dos fatos, o que se dará pela ampla produção de provas, com respeito às limitações legais”.
Assim, apurados os fatos que necessitam ser provados (afastando, portanto, os fatos em que há presunção legal de veracidade) e determinada a produção das provas necessárias para justificar os enunciados fáticos, o juiz decidirá com base no acervo probatório de que dispõe.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bibliografia Primária
TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. Trad. Vitor de Paula Ramos. Madrid: Marcial Pons. 2012.
Bibliografia Secundária
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil, Vol. 1. 20. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e competência: exposição didática: área do direito processual civil. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípios contratuais. In: LÔBO, Paulo Luiz Netto e LYRA JÚNIOR, Eduardo Messias Gonçalves de. (Coord.) A teoria do contrato e o novo código civil. Recife: Nossa Livraria, 2003.
LUNARDI, Soraya Gasparetto e DIMOULIS, Dimitri. A verdade e a justiça constituem finalidades do processo judicial? Revista Seqüência, no 55, p. 175-194, dez. 2007.
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das relações contratuais. 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil Comentado. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016.
WERNER, José Guilherme Vasi. A formação, o controle e a extinção dos contratos de consumo. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.
ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
Referências da Internet
AMBROSI, Daniel. Sistemas processuais penais. Disponível no site: www.odireito.com. Acesso em 05 de fev de 2014.
BARBOSA, Haroldo Camargo Barbosa. Princípios contratuais na teoria clássica e na pós-modernidade. In: Revista do Direito Privado da UEL – Volume 1 – Número 2 – disponível no site www.uel.br/revistas/direitoprivado. Acesso em 05 de fev de 2014.
DIDIER JR., Fredie. Os três modelos de direito processual: inquisitivo,dispositivo e cooperativo. Disponível no site: www.academia.edu. Acesso em 05 de fev de 2014.
STJ. AgRg no REsp 590.532/SC, Rel. Min. MARIA ISABEL GALLOTTI, Quarta Turma, DJe 22.9.2011.