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A defesa como garantia constitucional

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Agenda 24/04/2004 às 00:00

COLIDÊNCIA DE DEFESAS

Diante da necessidade já exposta de uma defesa efetiva, não se admite, em nossos tribunais, [28] a colidência de defesas, ou seja, um mesmo advogado patrocinando, em juízo, a defesa de dois acusados valendo-se de teses antagônicas. De fato, não poderá o causídico sustentar duas defesas colidentes, sendo certo que um dos acusados restará prejudicado, compromentendo seu amplo direito de defesa. Nesse sentido, Grinover, Scarance e Gomes Filho alertam que "a nomeação de um só defensor para réus que apresentem versões antagônicas para os fatos apontados como delituosos sacrifica irremediamente o direito de defesa". [29]

Não raro, pode ocorrer de as linhas de defesa técnica e autodefesa apresentarem, entre si, argumentação divergente, alternativa, cumulável ou até mesmo excludente. Trata-se, no particular, de caso diverso da verdadeira colidência de defesas, pois, nesta, o mesmo advogado assume a tarefa de defender dois réus cujas defesas são inconciliáveis por haver conflito de interesses, no caso em testilha, contudo, tem-se uma aparente colidência, em regra plenamente conciliável, entre a defesa técnica e a autodefesa relativas ao mesmo acusado. Grinover, Scarance e Gomes Filho asseveram que a apreciação sucessiva das linhas de defesa apresentadas é a solução acertada para dirimir o aparente conflito que, na verdade, consubstancia-se em mera incompatibilidade lógica. [30]

Alerta-nos, os eminentes doutrinadores, que pode acontecer, porém, que a defesa técnica ignore os argumentos defensivos apresentados pelo réu em sua autodefesa. Neste caso, deverá o juiz proceder às seguintes análises: primeiramente, verificar se, no caso em apreciação, o comportamento do defensor significou deixar o réu indefeso, circunstância que, se constatada, implicará em nulidade absoluta do processo tendo em vista a incompatibilidade ter afetado a defesa como um todo. Caso o resultado seja negativo, então deverá o juiz apreciar as diversas teses de defesa, também sob pena de nulidade. [31] Já entenderam nossos tribunais que, numa situação de total disparidade entre a autodefesa e a defesa técnica, sendo a apresentada pelo defensor a mais benéfica, deverá esta prevalecer sobre aquela. (32)


DIREITO AO SILÊNCIO

O direito a não se auto-incriminar foi concebido, num primeiro momento, a partir da interpretação sistemática de consagradas garantias constitucionais, notadamente, os princípios da ampla defesa, da presunção de inocência e, como não poderia deixar de ser, do devido processo legal. Concluiu-se, portanto, que ninguém seria obrigado a se auto-incriminar, não podendo o acusado ou suspeito ser coagido a produzir prova contra si mesmo.

A Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, ratificada pelo governo brasileiro por meio do Decreto n° 678, de 06/11/1992, inseriu expressamente, no contexto jurídico-positivo de nosso país, o princípio de que a pessoa não está obrigada a produzir prova contra si mesma, prevendo em seu artigo 8°, n.2, "g", que "toda pessoa tem direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada". [33]

Do amplo princípio que veda a forçosa auto-incriminação, decorre o direito ao silêncio, manifestamente previsto no artigo 5°, inciso LXIII, da Constituição Federal de 1988, quando assegura que "o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado".

Muito embora o texto constitucional tenha se referido apenas ao preso, entendem a doutrina [34] e a jurisprudência [35] que a interpretação da regra constitucional, face ao princípio da presunção de inocência, deve ser no sentido de que a garantia ao silêncio seja assegurada a toda e qualquer pessoa que sofra investigações penais ou que esteja sendo acusada em juízo criminal, devendo o ônus da culpabilidade ser imputado à acusação.

Nesse contexto, face ao reconhecimento constitucional da prerrogativa de permanecerem em silêncio, o investigado, o indiciado e o réu têm o direito subjetivo de, se assim desejarem, não responderem às perguntas que lhes forem formuladas por qualquer autoridade ou agente do Estado, porquanto, escolhendo permanecerem calados - exercitando, assim, legitimamente a prerrogativa que têm - não podem sofrer qualquer restrição ou prejuízo de ordem jurídica no plano da persecução penal.

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José Carlos Gobbis Pagliuca esclarece que a cláusula legitimadora do direito ao silêncio consagrou, no âmbito do sistema normativo constitucional brasileiro, diretriz proclamada em 1971, pela Quinta Emenda que compõe o Bill of Rights norte-americano. [36] Acrescenta o ilustre autor que o direito de ficar em silêncio "insere-se no alcance concreto da cláusula constitucional do devido processo legal. E esse direito ao silêncio inclui, até mesmo de forma implícita, a prerrogativa processual de o indiciado ou réu negar, ainda que falsamente, perante a autoridade policial ou judiciária, a prática da infração penal que lhe foi imputada." [37]

Rogério Tucci também ressalta que o direito de permanecer calado "não pode importar desfavorecimento do imputado, até mesmo porque consistiria inominado absurdo entender-se que o exercício de um direito, expresso na Lei das Leis como fundamental ao indivíduo, possa acarretar-lhe qualquer desvantagem". [38]

Sobre esta questão, pronuncionou-se o Pleno do Supremo Tribunal Federal assegurando que "o réu, ainda negando falsamente a prática do delito, não pode, em virtude do princípio constitucional que protege qualquer acusado ou indiciado contra a auto-incriminação, sofrer, em função do legítimo exercício desse direito, restrição que afete o seu estatus poenalis" (HC 68.742-DF, Rel. Ministro Ilmar Galvão – DJU 02.04.93).

À luz do explanado, o direito ao silêncio há de ser exercido de maneira plena, sem pressões – sejam elas diretas ou indiretas – destinadas a forçar o depoimento do acusado. Na esteira desses pensamentos, os artigos 186 e 198 do Código de Processo Penal perdem sua eficácia quando em cotejo com a Constituição Federal, não tendo sido recepcionados pela Lei Maior de 1988, uma vez que aludem a prejuízos ao interrogado face ao legítimo exercício do direito constitucional de permanecer em silêncio.

Grinover, Scarance e Gomes Filho alertam, entretanto, que o Superior Tribunal de Justiça já entendeu "não constituir nulidade a advertência feita ao interrogado, nos termos do art. 186 do CPP, de que seu silêncio poderia prejudicá-lo, quando não provado qualquer prejuízo para a defesa" (STJ, RHC 6524-SP, DJU 30.06.97, Boletim IBCCrim 58/204). [39] Continuam os insígnes autores assertando que, de fato, a nulidade poderá ser absoluta ou relativa, dependendo do exame concreto das circunstâncias, porquanto, se implicar em comprometimento da defesa como um todo, será irremediável, caso contrário, será parcial. [40]

É importante notar que apenas o denominado interrogatório de mérito, enquanto autodefesa, está acobertado pelo direito ao silêncio, devendo as perguntas sobre a qualificação do interrogado (artigo 188, caput, CPP) serem prontamente respondidas, visto que suas respostas não ensejam atos defensivos.

Por fim, ainda sobre o interrogatório, cumpre frisar que um vício grave que este ato pode apresentar é a falta de informação sobre o direito de o indiciado ou acusado permanecer calado. Seguindo a mesma linha de pensamento já explicitada, Grinover, Fernandes e Gomes Filho instruem que a ausência de tal informação resulta nulidade do interrogatório sob duas dimensões:

"a mais grave, consubstanciada na nulidade de todo o processo, a partir do interrogatório, se, no caso, o ato viciado redundou no sacrifício da autodefesa e, conseqüentemente, da defesa como um todo. Ou, na dimensão mais moderada, pela invalidade do interrogatório, com sua necessária repetição, mas sem que os atos sucessivos fiquem contaminados, se se verificar que o conteúdo das declarações não prejudicou a defesa como um todo e os atos sucessivos". [41]

Insta-se observar, contudo que, em regra, um interrogatório viciado invalida as provas dele decorrentes, ainda mais se essencial para a validade de outro ato processual. Neste caso específico, a nulidade do interrogatório comunicar-se-á com os atos processuais embasados no mesmo, conforme já se pronunciou a 1ª Turma do STF no julgamento do HC 78.708-SP (RTJ 168/977), in verbis: "em princípio, ao invés de constituir desprezível irregularidade, a omissão do dever de informação ao preso dos seus direitos, no momento adequado, gera efetivamente a nulidade e impõe a desconsideração de todas as informações incriminatórias dele anteriormente obtidas, assim com as provas derivadas". Frise-se, entretanto, que a posição do Supremo Tribunal Federal, conforme restou evidenciado no bojo do sobredito julgado, é a de que deve ser ponderada a orientação da defesa do réu no processo: se a de realmente permanecer silente, fazendo o ônus da prova recair sobre a acusação; ou se de intervenção ativa no processo, situação na qual, segundo nosso Excelso Pretório, o réu abdica do direito de manter-se calado e das conseqüências da falta de informação oportuna a respeito.

Por último, resta analisar o caso em que o réu não é cientificado de seu direito de permanecer calado, mas, mesmo assim, deixa de responder às perguntas feitas pela autoridade interrogante ou, se respondendo, nega as acusações que lhe são imputadas. Percebe-se que, neste caso particular, não há prejuízo à autodefesa e nem à defesa como um todo, um vez que do interrogatório não resultaram informações incriminatórias que pudessem influenciar no convencimento do juiz da causa. Por essa razão, não há por que se declarar a nulidade do ato.


NOTAS

1 Nesse sentido: TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. Vol 1. São Paulo: Saraiva, 25ª ed., 2003. p. 306; FERNANDES SCARANCE, Antônio. Processo penal constitucional. São Paulo: RT, 3ª ed., 2002. p. 177; MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. São Paulo: Atlas, 10ª ed., 2000. p. 104.

2 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. Cit. p. 308.

3 FERNANDES SCARANCE, Antônio. Op. Cit. p. 178.

4 Nesse sentido: TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. Cit. p. 507; MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 105; CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 19ª ed., 2003, p. 258.

5 GRINOVER, Ada Pellegrini, SCARANCE FERNANDES, Antônio, GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. São Paulo: RT, 7ª ed., 2001, p. 68.

6 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. Cit. p. 513.

7 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. Cit. p. 259.

8 GRINOVER, Ada Pellegrini, SCARANCE FERNANDES, Antônio, GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Op. Cit. pp. 66-7.

9 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 106.

10 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. Cit. p. 267.

11 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 108.

12 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. Cit. p. 256.

13 Idem. p. 33.

14 Idem. p. 82.

15 FERNANDES SCARANCE, Antônio. Op. Cit. pp. 265-6.

16 GRECO FILHO, Vicente. Tutela constitucional das liberdades. São Paulo: Saraiva, 1989.

17 FERNANDES SCARANCE, Antônio. Op. Cit. pp. 266-7.

18 Idem. pp. 49-50.

19 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. Cit. pp. 41-2.

20 FERNANDES SCARANCE, Antônio. Op. Cit. p. 49.

21 Idem. p. 270-81.

22 GRINOVER, Ada Pellegrini, SCARANCE FERNANDES, Antônio, GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Op. Cit. p. 79.

23 FERNANDES SCARANCE, Antônio. Op. Cit. p. 272.

24 Idem. pp. 280-1.

25 GRINOVER, Ada Pellegrini, SCARANCE FERNANDES, Antônio, GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Op. Cit. p. 81.

26 FERNANDES SCARANCE, Antônio. Op. Cit. p. 280.

27 GRINOVER, Ada Pellegrini, SCARANCE FERNANDES, Antônio, GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Op. Cit. pp. 80-1.

28 Causa de nulidade absoluta: RTJ 32/49 e 42/804; RT 217/78, 302/447, 357/375, 371/44, 399/289 e 423/397.

29 GRINOVER, Ada Pellegrini, SCARANCE FERNANDES, Antônio, GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Op. Cit. p. 87.

30 Idem. p. 88.

31 Ibidem.

32 RTJ 80/497 e 79/422.

33 FERNANDES SCARANCE, Antônio. Op. Cit. p. 279.

34 Nesse sentido: GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Direito à prova no processo penal. São Paulo: RT, 1997. p. 113.; FERNANDES SCARANCE, Antônio. Op. Cit. p. 279.; PAGLIUCA, José Carlos Gobbis. As garantias do devido processo legal. In: MARQUES DA SILVA, Marco Antônio (coordenador). Tratado temático de processo penal. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. pp. 241-2.

35 RTJ 141/512, Relator Ministro Celso de Mello; HC n° 68.742-DF, Relator Ministro Ilmar Galvão.

36 PAGLIUCA, José Carlos Gobbis. Op. Cit. In: MARQUES DA SILVA, Marco Antônio (coordenador). Op. Cit. p. 242.

37 Ibidem.

38 TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. Saraiva, 1993. Apud: PAGLIUCA, José Carlos Gobbis. Op. Cit. In: MARQUES DA SILVA, Marco Antônio (coordenador). Op. Cit. p. 243.

39 GRINOVER, Ada Pellegrini, SCARANCE FERNANDES, Antônio, GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Op. Cit. p. 83.

40 Idem. pp. 84-5.

41 Idem. p. 83.

Sobre o autor
Flúvio Cardinelle Oliveira Garcia

Graduado em Ciências da Computação pela Universidade Católica de Brasília (1995). Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (2002). Pós-graduado em Direito Eletrônico e Tecnologia da Informação pelo Centro Universitário da Grande Dourados (2008). Mestre em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2008). Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal na Pontifícia Universidade do Paraná. Delegado de Polícia Federal. Chefe do Núcleo de Repressão ao Crimes Cibernéticos da Polícia Federal do Paraná, com ênfase investigativa para os delitos de ódio e de pornografia infantojuvenil, mormente praticados pela Internet. Membro do Instituto Brasileiro de Direito da Informática (IBDI), do Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico (IBDE) e do High Technology Crime Investigation Association (HTCIA).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCIA, Flúvio Cardinelle Oliveira. A defesa como garantia constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 291, 24 abr. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5034. Acesso em: 18 mai. 2024.

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