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Direito & Cultura - Reflexos do jurídico sobre a sociedade.

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Agenda 19/07/2016 às 15:03

VII Casos ilustrativos de decisões a serem analisadas: legítima ou ilegítima a atuação do juiz?  

Insegurança, ausência de previsibilidade, etc., não são características do Direito, mas sim suas ameaças!

Bem, pedindo novamente vênia para ir direto ao ponto: o juiz tem que ler o processo, pois só assim irá entender o caso que lhe fora submetido. Não há outra forma a não ser esta! Lendo, terá condição de entender o caso conflituoso e, assim, como agente político realizador do Texto Constitucional, por em prática as garantias inerentes ao devido processo.

A fim de ilustrar, e com isso demonstrar a preocupação e pertinência que moveu este escrito, traz-se casos simples e até pitorescos, porém emblemáticos, pois ilustrativos do "marasmo judicante pernicioso" que já acomete  esta importante função que é a jurisdicional. Simbolicamente e em percuciente análise, os casos encerram atos desprovidos de legitimidade republicana e democrática. Vejamos para comprovar:

Cita-se como primeiro caso ilustrativo alguns episódios vividos na experiência de advogado, referentes aos benefícios da Assistência Judiciária Gratuita. Ocorreu, deve ser dito, em sede de Juizado Especial. Pois bem, o benefício estava sendo negado na fase recursal, mesmo diante da afirmação de hipossuficiência... Sucede que, como é cediço, a Lei nº 1.060/51, que versa sobre a matéria, no seu art. 4º, diz que basta da parte "(...) a simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo (...)", para ser merecedora do benefício. Ora, como se não bastasse a clareza da lei (clareza esta que qualquer homem médio é capaz de alcançar), necessitou a nossa mais alta Corte, o STF, vir a sedimentar a matéria, para dizer, que "o acesso ao benefício da gratuidade, com todas as consequências jurídicas dele decorrentes, resulta da simples afirmação, pela parte (...), de que não dispõe de capacidade para suportar os encargos financeiros inerentes ao processo judicial, mostrando-se desnecessária a comprovação, pela parte necessitada, da alegada insuficiência de recursos" (RE 245.646-AgR, Rel.: Celso de Mello).

Some-se à clareza acima o fato de que os Juizados Especiais foram produto das chamadas "ondas renovatórias do Direito", cujo propósito fora exatamente tornar acessível o Judiciário ao cidadão. Não deu outra: choveram mandados de segurança, cujo objetivo, consistia, no deferimento do benefício que a lei e o STF já haviam assegurado. Lembro de um amigo advogado ter comentado que passou o final de semana impetrando 50 writs.

Todos os mandados de segurança tiveram a ordem concedida, alguns, liminarmente, pois o direito, salta aos olhos, era líquido e certo. Configurando-se, portanto, o ato do agente oficiador do caso tratado, num ato arbitrário. Verdadeiro paradoxo, pois o agente, cuja função era assegurar direitos, estava justamente a tolhe-los, e o mais sagrado no cenário político-jurídico, que é o acesso do indivíduo ao Estado-juiz. 

Numa frase: o Judiciário criou demanda onde não tinha. Deixou o conflito justificador do processo de lado e concentrou tempo, energia e intelecto em verdadeira "pseudodemanda". Atividade contraproducente e deslegitimadora da atuação do Magistrado.

O segundo caso que se traz à ilustração refere-se ao comportamento de um Juiz Federal, em audiência cujo enredo encerrava um caso de aposentadoria de trabalhadora rural. Bem, deve-se registrar a pouca habilidade cognitiva, em regra, dos rurícolas, devido à própria função que exercem. O caso ilustrado não era diferente. Já no escritório, ambiente em que uma certa segurança toca as partes, percebeu-se da trabalhadora uma enorme dificuldade em contar a história da sua própria vida. Foi preciso sensibilidade e paciência até que o caso viesse a se torna inteligível aos olhos e ouvidos de outrem. Transformado o complexo caso – com recortes geográficos e cronológicos – numa síntese processual clara e completa, deu-se entrada no processo e, marcada a audiência, fora chegado o momento de ouvir a senhora de 61 anos. Impostura total do Magistrado, pois as perguntas que fazia à jurisdicionada, mais pareciam um jogo de pegadinhas. Indagações de ordem descronológica, que mais pareciam um quebra-cabeças. Resultado: bagunça em todo o senso de ordem da cabeça da idosa, que, já nervosa por estar diante de um juiz, não teve a habilidade cognitiva suficiente para processar e recompor o seu senso de lógica – temporariamente perdido por conta da confusão gerada – para reordenar os fatos da sua própria vida... À intervenção do advogado, pedindo ponderação do julgador, devido à condição da jurisdiconada, de estar nervosa e não compreender muito bem o que dissera, chamando a atenção para o processo, que detinha a reprodução fidedigna da história de vida da senhora, assim como toda a documentação que subsidiará a pretensão perseguida, o órgão julgador não deu ouvidos.

Atitudes assim não se coadunam com o modelo de atuação do julgador da República Democrática brasileira.

Por fim, um terceiro caso. Esse deveu-se à negativa insólita de aplicação das regras e técnicas processuais do CDC a uma demanda envolvendo relação de consumo. O enredo casuístico narrava situação de privação e constrangimento vividos por uma consumidora quando viajava a passeio com um filho menor, advindo do cancelamento de cartão de crédito ainda vigente e que não fora requerido o cancelamento pelo titular. Registre-se que na ocasião da privação a consumidora ligara para a operadora do cartão e obtivera a informação de que o mesmo havia sido cancelado. O protocolo da ligação foi fornecido e anotado pela consumidora. Bem, foi ajuizada a demanda, com a narrativa da experiência vivenciada, incluindo a conversa por telefone (com o número de protocolo) que advira a informação de cancelamento. O julgador da ocasião simplesmente ignorou a verossimilhança das alegações da demandante, consubstanciada no número de protocolo da conversa que ocorreu, da qual adviu a informação do cancelamento do cartão, bem como a impossibilidade da consumidora de provar que o cartão havia sido cancelado pela operadora, pois, salta aos olhos, tal informação é de poder da operadora do cartão. Possuía o número de protocolo da conversa, que é indício suficiente para inverter o ônus dessa prova em específico. Bem, o pedido da jurisdicionada foi negado, ao fundamento de que a mesma não se desincumbiu do ônus de provar que teve o cartão cancelado. Ora, pois, o julgador ignorou a técnica da inversão do ônus da prova, inserta no art. 6º, VIII do CDC, num caso, que consiste numa das maiores garantias processuais específicas ao consumidor vulnerável e hipossuficiente.

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Ora, na marcha histórica do homem em sociedade, e com o advento das sociedades de massa, com a pujança da prática consumerista, o legislador precisou regulamentar as relações advindas desse fenômeno. Percebeu, após inúmeros estudos, com o auxílio de experts, que na relação o consumidor era a parte mais fraca, daí, visando dar concretude à igualdade material, equivalendo a desigualdade constatada, que dá sentido aos conceitos de vulnerabilidade e hipossuficiência, criou privilégios justos particularizados ao consumidor, a exemplo da inversão do ônus da prova. É uma conquista dos consumidores!

Desse modo, o que custou caro ao curso dos acontecimentos e à regulação legislativa, acabou sendo descartado numa decisão casuística por um julgador. Não é aferível legitimidade alguma de uma decisão como esta.

Inúmeros são os casos que se poderia aqui ilustrar. Contudo, torna-se despiciendo, pois todos tem a mesma afinidade perniciosa que aqui se procura denunciar: a anemia sistêmica e valorativa que ameaça a Constituição e em derradeiro, a civilização. Neste sentido, afirma-se que o juiz não é o algoz da Constituição, mas, se não vigiar, pode se tornar...

Os casos ilustrados são sintomáticos e revelam toda uma disfuncionalidade do aparato jurisdicional. Geram, com isso: imprevisibilidade e insegurança jurídicas, vindas da incerteza do Direito, que, no cidadão, reflete-se em desconfiança e descrença nas instituições e, como resultado um tanto quanto apocalíptico: a instabilidade e o caos social..., resultantes dum laço que se rompe entre democracia e indivíduos, ante as desconfianças geradas. Relação que se mostra complexa e problematizante... Por isso, talvez tenha levado Bobbio a asseverar que "o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político[36]".


VIII O juiz guardião (?) da ordem vigorante

O termo guardião une-se à ideia de objeto a ser guardado. Óbvio. Mas, com a permissa da obviedade, pois a rigor o óbvio precisa ser revelado (Streck), sobretudo, nesses nossos tempos de "cegueira branca", qual o sentido deste termo nas democracias?

Resta incontroverso: este ponto de interrogação passa ao largo da obviedade...

Ives Gandra da Silva Martins, em recente escrito, desvela e reforça a ideia de serviço (já ventilada neste texto), como nota definidora e constitutiva da atuação dos agentes nas reais democracias. Segundo a sua lição, verbis:

Na verdadeira Democracia, quem merece o tratamento de "Sua Excelência" é o cidadão. Não o agente público, quer seja ocupante de cargo administrativo ou eletivo, eis que sua presença nos quadros de qualquer dos poderes só se justifica enquanto sirva ao povo, e nunca quando passe a usufruir do poder como coisa própria, perseguindo inimigos e privilegiando amigos.

Na verdadeira Democracia, os direitos individuais deveriam ser garantidos por governos preocupados na promoção da sociedade. Apenas no dia em que os cidadãos tiverem consciência de que são mais importantes do que qualquer burocrata ou político, é que poderão implantar o verdadeiro regime democrático. Até lá, serão apenas "administrados"[37].

A reflexão acima é precisa, pois se o povo é titular e dono do poder, este, fica delegado e entregue ao representante, somente e na estreita medida em que o agente atue nos interesses estritos do quanto se quer alcançar o dominus da potestas (povo). Com base neste raciocínio, qualquer detentor de poder na república democrática (juiz, legislador, administrador) deve sim, converter a parcela da potestas de que se encontra investido, que encerra prerrogativas funcionais, a bem da verdade, em termos de serviço posto aos reais interesses do povo. Este é o único sentido e desiderato do termo guardião na república democrática! A contrario senso transformar-se-á o titular do poder em mero servil de interesses espúrios.

Vez por isso, a Constituição e a lei são elementos equalizadores da inelutável relação constitutiva das repúblicas democráticas. Daí se extrai que o juiz deve guardar – observando e realizando – a Constituição, depositário legítimo dos direitos/deveres do cidadão e, sobretudo, legitimar a sua pertença e atuação na República.

Diante do exposto e do contexto legítimo das expectativas compartilhadas pelo corpo social, ao Magistrado não é lícito exercer o papel de algoz do Estado Democrático de Direito e, em última análise, vilão e destruidor da civilização e cultura que o fez nascer, crescer e germinar, tornando-o tudo aquilo que ele é e representa no corpo social. Postura contrária seria lesiva à sua própria constituição política, representando uma das formas de sua morte e de esvaziamento do Direito Político do Estado.

A questão aqui, advirta-se, não é saber se os valores estabelecedores do Direito Político do Estado são naturais ou artificiais (talvez noutra ocasião), mas sim, tomar consciência e dar conta da necessidade de observar as estruturas do Direito posto e consagrado, realizando-as, que instituidoras e organizadoras, comandam todo o seu funcionamento. Logo, é exigido do juiz observar e realizar de modo eficiente a Constituição, devendo inclinar-se para isto, pois só assim será considerado um legítimo e eficiente guardião!

Ora bem: os postulados alhures tratados – juiz republicano e juiz democrático – são exigências da própria manutenção da ordem posta, pois como bem sentenciou Alexis de Tocqueville na sua obra A Democracia na América:

(...) os princípios sobre os quais as constituições americanas repousam, esses princípios de ordem, de ponderação dos poderes, de liberdade verdadeira, de respeito sincero e profundo ao direito são indispensáveis a todas as Repúblicas, devem ser comuns a todas e (...) onde eles não se encontrarem a República logo cessará de existir[38].

 

Sobre o autor
Rodrigo Rocha de Araújo

Graduado em Direito pela Faculdade do Sul da Bahia (FASB). Pós-Graduado em Metodologia do Ensino de Filosofia e Sociologia pelo Centro Universitário Leonardo Da Vinci (Uniasselvi). Graduando em Filosofia pelo Centro Universitário Leonardo Da Vinci (Uniasselvi). Pós-Graduando em Direito Processual Civil (NCPC) pela Faculdade Damásio de Jesus. Membro-Fundador da Comissão de Estudos Literários da Ordem dos Advogados do Brasil, Subseção de Teixeira de Freitas – Bahia. Assessor Jurídico (2015/2016), Servidor Público, exerceu a função de Juiz Leigo no Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (2017/2018) e Advogado atuante.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Rodrigo Rocha. Direito & Cultura - Reflexos do jurídico sobre a sociedade.: O juiz: guardião (ou algoz?) do Estado Republicano e Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4766, 19 jul. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/50712. Acesso em: 22 nov. 2024.

Mais informações

Artigo elaborado como requisito parcial para aprovação no Curso de Pós-Graduação em Metodologia do Ensino de Filosofia e Sociologia do Centro Universitário Leonardo Da Vinci (Uniasselvi). Aprovado em 30/06/2016.

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