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O Direito Privado como um "sistema em construção":

as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil brasileiro

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Agenda 01/05/2000 às 00:00

II. As cláusulas gerais no Projeto do Código Civil

A missão de apreender e disciplinar as tipologias sociais relevantes na vida civil, permitindo a captura, incessante e progressiva, das novas realidades foi o escopo da metodologia seguida pelos autores do Projeto do Código Civil. Assim expressa o Relator do Projeto no Senado Federal, Senador Josaphat Marinho, já nas primeiras linhas do Parecer pela aprovação: "(...) o Projeto de Código Civil em elaboração no ocaso de um para o nascer de outro século, deve traduzir-se em fórmulas genéricas e flexíveis, em condições de resistir ao embate de novas idéias (...)" (55), seguindo pensamento manifestado pelo presidente da Comissão Elaboradora do Projeto, Miguel Reale, já em 1975, na Exposição de Motivos apresentada ao Ministro da Justiça.

Afirmava desde então o insigne Professor a necessidade de a codificação do direito privado, nos dias atuais, apresentar-se não mais modulada, metodologicamente, em modelo rígido, revelando-se, antes, através de uma modelos abertos, expressos mediante uma "estrutura normativa concreta (...), destituída de qualquer apego a meros valores formais abstratos", o que seria alcançado se plasmadas, no Código, "soluções que deixam margem ao juiz e à doutrina, com freqüente apelos a conceitos integradores da compreensão ética, tal como os de boa-fé, eqüidade, probidade, finalidade social do direito, equivalência de prestações, etc." (56).

Por igual, outros integrantes da aludida Comissão, nomeadamente, José Carlos Moreira Alves e Clóvis do Couto e Silva, verberaram, em trabalhos acerca da proposta da nova lei civil, o caráter estruturalmente inovador de certas normas. Assim, Couto e Silva expressamente manifestou:

          "O pensamento que norteou a Comissão que elaborou o projeto do Código Civil brasileiro foi o de realizar um Código central, no sentido que lhe deu Arthur Steinwenter, sem a pretensão de nele incluir a totalidade das leis em vigor no País (...). O Código Civil, como Código central, é mais amplo que os códigos civis tradicionais. É que a linguagem é outra, e nela se contém "clásulas gerais", um convite para uma atividade judicial mais criadora, destinada a complementar o corpus juris vigente com novos princípios e normas" (57).

José Carlos Moreira Alves, por sua vez, há mais de uma década, alertava para o fato de a inserção das cláusulas gerais promover a mudança da concepção filosófica do novo Código por meio de alterações formalmente diminutas, exemplificando com a concepção de propriedade, de tal maneira que, "com dois artigos apenas passou-se da propriedade individualista para a propriedade com função social" (58).

Sendo este o pensamento dos autores do Anteprojeto, bem como o do Relator do Projeto no Senado, nada mais natural que o texto venha à público pleno de cláusulas gerais. É preciso, agora, que a doutrina e a jurisprudência as reconheçam e apontem as suas potencialidades, não as tomando como fórmulas vazias, preceitos destituídos de valor vinculante ou meros conselhos ao intérprete, como poderiam parecer a um pensamento exegético.

As cláusulas gerais não estão uniformemente dispersas no Projeto, e nem poderiam estar, pois é da natureza do Direito Civil conter campos que requerem maior ou menor ductilidade. A Parte Geral, destinando-se a "fixar os parâmetros de todo o sistema" --- como afirmou José Carlos Moreira Alves --- vem marcada pelo propósito "de máximo rigor conceitual" (59). Abriga, mesmo assim, ponderável número de normas abertas ou semanticamente vagas, inclusive fazendo remissão a princípios ou direcionando o juiz à pesquisa de elementos econômicos e sociais (60).

É nos Livros concernentes ao Direito de Família e ao Direito das Obrigações --- este abrangendo também as obrigações de caráter mercantil, consoante modelo que havia sido traçado pioneiramente por Teixeira de Freitas (61) --- que encontraremos, em paralelo às normas marcadas pela estrita casuística, a maior parte das cláusulas gerais. Limito-me, por ora, ao exame de apenas duas das cláusulas gerais que comandam o comportamento contratual, a saber, as da função social do contrato (art. 421), probidade e boa-fé objetiva (art.421 (62)), registrando só que as mesmas não esgotam a disciplina do campo contratual, no qual incidem ainda as cláusulas gerais do comportamento segundo os usos do tráfego (art. 112) e as da reparação de danos, por culpa (arts. 185 e 929, caput) e por risco (art. 926, parágrafo único).

a) Função social do contrato

          "A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato". Esta norma, posta no art. 420 do Projeto do Código Civil constitui a projeção, no específico domínio contratual, do valor constitucional expresso como garantia fundamental dos indivíduos e da coletividade que está no art. 5º, inciso XXIII da Constituição Federal, uma vez que o contrato tem, entre outras funções, a de instrumentalizar a aquisição da propriedade. Se a esta não é mais reconhecido o caráter absoluto e sagrado, a condição de direito natural e inviolável do indivíduo, correlatamente ao contrato também inflete o cometimento --- ou o reconhecimento --- de desempenhar função que traspassa a esfera dos meros interesses individuais.

A atribuição de uma função social ao contrato não deveria, pois, já por isto, ser objeto de estranhamento. Até porque, uma tal atribuição insere-se no movimento da funcionalização dos direitos subjetivos, o qual, há muitas décadas, já não seria novidade em doutrina e mesmo no plano legislativo, bastando recordar a célebre fórmula (63) que, uma vez posta na Constituição de Weimar, ingressou nas Constituições do século XX como tentativa de buscar "um novo equilíbrio entre os interesses dos particulares e necessidades da coletividade" (64).

Atualmente admite-se que os poderes do titular de um direito subjetivo estão condicionados pela respectiva função (65) e a categoria do direito subjetivo, posto que histórica e contingente como todas as categorias jurídicas, não vem mais revestida pelo "mito jusnaturalista" (66) que a recobrira na codificação oitocentista, na qual fora elevada ao status de realidade ontológica, esfera jurídica de soberania do indivíduo (67). Portanto, o direito subjetivo de contratar e a forma de seu exercício também são afetados pela funcionalização, que indica a atribuição de um poder tendo em vista certa finalidade ou a atribuição de um poder que se desdobra como dever, posto concedido para a satisfação de interesses não meramente próprios ou individuais, podendo atingir também a esfera dos interesses alheios.

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Frase dita e repetida indica que "o contrato é a veste jurídica das operações econômicas", de modo que constitui sua função primordial instrumentalizar a circulação da riqueza, a transferência da riqueza, atual ou potencial, de um patrimônio para outro (68). A constituição econômica de uma sociedade, todos o sabemos, não é matéria de interesse individual, ou particular, mas atinge --- e interessa --- a todos. O contrato, veste jurídica das operações de circulação de riqueza, tem, inegavelmente, função social (69).

Recoberta na codificação oitocentista, da qual o vigente Código Civil é reflexo, pela preeminência do princípio da liberdade contratual em sua face mais individualista e quase absoluta, esta função não poderia ser esquecida num Código que é marcado, como o atual Projeto, pela diretriz da socialidade (70), isto é, pela "colocação das regras jurídicas num plano de vivência social", pela "aderência à realidade contemporânea", fazendo prevalecer "os valores coletivos sobre os individuais, sem perda, porém, do valor fundante da pessoa humana" como aludiu Miguel Reale, ao apresentar o Anteprojeto e como reafirmou em texto recente (71). Significa com isto afirmar que o contrato, expressão privilegiada da autonomia privada, ou poder negocial (72) não deve mais ser perspectivado apenas como a expressão, no campo negocial, daquela autonomia ou poder, mas como o instrumento que, principalmente nas economias de mercado, mas não apenas nelas (73), instrumentaliza a circulação da riqueza da sociedade.

Colocada no pórtico da disciplina contratual, formando "quase que um preâmbulo de todo o direito contratual" (74), a cláusula geral da função social do contrato é multifuncional, por isto inserindo-se, consoante a tipologia acima indicada, em dupla categoria, a saber, a das cláusulas gerais de tipo restritivo e as de tipo regulativo. Este ponto deve ser bem marcado, porque seria intolerável empobrecimento o confiná-la apenas à função de restringir, em certos casos, e para certos efeitos, o princípio da liberdade contratual.

A função social é, evidentemente, e na literal dicção do art. 420, uma condicionante posta ao princípio da liberdade contratual, o qual é reafirmado, estando na base na disciplina contratual e constituindo o pressuposto mesmo da função (social) que é cometida ao contrato. Ao termo condição pode corresponder uma conotação adjetiva, de limitação da liberdade contratual. Nesse sentido, a cláusula poderá desempenhar, no campo contratual que escapa à regulação específica do Código de Defesa do Consumidor, funções análogas às que são desempenhadas pelo art. 51 daquela lei especial, para impedir que a liberdade contratual se manifeste sem peias. Na sua concreção o juiz poderá, avaliadas e sopesadas as circunstâncias do caso, determinar, por exemplo, a nulificação de cláusulas contratuais abusivas, inclusive para o efeito de formar, progressivamente, catálogos de casos de abusividade.

Contudo, considerar a norma do art. 420 apenas uma restrição à liberdade contratual seria acreditar que esta constitui um princípio absoluto, o que constitui uma falácia há muito desmentida. Por isto entendo estar cometida àquela norma também uma conotação substantiva, vale dizer, de elemento integrante do conceito de contrato. É por ser este dotado de função social que a liberdade contratual encontra limites. É pelo mesmo motivo que esta é regularmente exercida.

Integrando o próprio conceito de contrato, a função social tem um peso específico, que é o de entender-se a eventual restrição à liberdade contratual não mais como uma "exceção" a um direito absoluto, mas como expressão da função meta-individual que integra aquele direito. Deste modo, o princípio da função social, que proclamado na Constituição, aí poderia remanescer como "letra morta", transforma-se, como afirmou Reale, "em instrumento de ação no plano da lei civil" (75). Há, portanto, uma valor operativo, regulador da disciplina contratual que deve ser utilizado não apenas na interpretação dos contratos, mas, por igual, na integração e na concretização das normas contratuais particularmente consideradas. Em outras palavras, a concreção especificativa da norma, ao invés de já estar pré-constituída, pré-posta pelo legislador, há de ser construída pelo julgador, a cada novo julgamento, cabendo relevantíssimo papel aos casos precedentes, que auxiliam a fixação da hipótese e à doutrina, no apontar de exemplos.

É natural que, num primeiro momento, esta opção metodológica cause certa perplexidade, tendo em vista o cânone fundamental da certeza jurídica. Este, no entanto, não é absoluto, sendo relativizado, em numerosas hipóteses, pelo princípio superior da justiça material, do qual a função social do contrato é legítima e forte expressão.

O direito dos contratos vem, na disciplina do Projeto, também informado pelo princípio da boa-fé, aposto na cláusula geral do art. 421, segundo o qual "os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé" (76). É tempo de examiná-la.

b) A cláusula geral da boa-fé objetiva

Na tradição do direito brasileiro, é conotada à expressão "boa-fé" a acepção subjetiva, assim constando do vigente Código, entre outras passagens, as normas dos artigos 221, caput e parágrafo único e 490, caput e parágrafo único. Contudo, a norma do art. 421 do Projeto trata da boa-fé em acepção objetiva. Desde logo cabe, pois, distingui-las.

Como averbei em trabalhos anteriores (77), a expressão "boa-fé subjetiva" denota "estado de consciência" ou "convencimento individual de obrar (a parte) em conformidade ao direito (sendo) aplicável, em regra, ao campo dos direitos reais, especialmente em matéria possessória". Diz-se "subjetiva" justamente porque, para a sua aplicação, deve o intérprete considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico ou íntima convicção. Antitética à boa-fé subjetiva está a má fé, também vista subjetivamente como a intenção de lesar a outrem.

Já por "boa-fé objetiva" se quer significar --- segundo a conotação que adveio da interpretação conferida ao parágrafo 242 do Código Civil Alemão, de larga força expansionista em outros ordenamentos --- modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico segundo o qual "cada pessoa deve ajustar a sua própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade" (78). Por este modelo objetivo de conduta levam-se em consideração os fatores concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação mecânica do standard, de tipo meramente subsuntivo (79), o que vem a significar que, na concreção da boa-fé objetiva deve o intérprete desprender-se da pesquisa da intencionalidade da parte, de nada importando, para a sua aplicação, a sua consciência individual no sentido de não estar lesionando direito de outrem ou violando regra jurídica. O que importa é a consideração de um padrão objetivo de conduta, verificável em certo tempo, em certo meio social ou profissional e em certo momento histórico.

Insisto neste ponto, que é de capital importância para que se possa vir a retirar da norma do art. 421 do Projeto toda a sua potencialidade. A boa-fé subjetiva denota primariamente a idéia de ignorância, de crença errônea, ainda que excusável, acerca da existência de uma situação regular, crença (e ignorância excusável) que repousam seja no próprio estado (subjetivo) da ignorância (as já aludidas hipóteses do casamento putativo, da aquisição da propriedade alheia mediante a usucapião), seja numa errônea aparência de certo ato (mandato aparente, herdeiro aparente, etc.). Pode denotar, secundariamente, a idéia de vinculação ao pactuado, no campo específico do direito contratual, nada mais aí significando do que um reforço ao princípio da obrigatoriedade do pactuado. Assim sendo, a boa-fé subjetiva tem o sentido de uma condição psicológica que normalmente se concretiza no convencimento do próprio direito, ou na ignorância de se estar lesando direito alheio, ou na adstrição "egoística" à literalidade do pactuado.

Diversamente, ao conceito de boa-fé objetiva estão subjacentes as idéias e ideais que animaram a boa-fé germânica (Treu und Glauben (80)): a boa-fé como regra de conduta fundada na honestidade, na retidão, na lealdade, e, principalmente, na consideração para com os interesses do alter, visto como um membro do conjunto social que é juridicamente tutelado. Aí se insere a consideração para com as expectativas legitimamente geradas, pela própria conduta, nos demais membros da comunidade, especialmente no outro pólo da relação contratual.

A importância da boa-fé, na acepção objetiva, está em que a mesma atua, no campo contratual, na tríplice direção de norma de interpretação e integração do contrato (81), que concorre, entre outras funções, para determinar o comportamento devido; de limite ao exercício de direitos subjetivos --- sistematizando e especificando casos que, na ausência da cláusula geral, estariam dispersos entre vários institutos diversos (82) --- e fonte autônoma de direitos, deveres e pretensões às partes contratantes, os quais passam a integrar a relação obrigacional em seu dinâmico processar-se, compondo-a como uma "totalidade concreta" (83).

Com efeito, da boa-fé nascem, mesmo na ausência de regra legal ou previsão contratual específica (84), os deveres, anexos, laterais ou instrumentais (85) de consideração com o alter, de proteção, cuidado, previdência e segurança com a pessoa e os bens da contraparte; de colaboração para o correto adimplemento do contrato; de informação, aviso e aconselhamento; e os de omissão e segredo, os quais, enucleados na conclusão e desenvolvimento do contrato, situam-se, todavia, também nas fases pré e pós contratual, consistindo, em suma, na adoção de "determinados comportamentos, impostos pela boa-fé em vista do fim do contrato (...) dada a relação de confiança que o contrato fundamenta, comportamentos variáveis com as circunstâncias concretas da contratação" (86).

O que importa bem sublinhar é que, constituindo deveres que incumbem tanto ao devedor quanto ao credor, não estão orientados diretamente ao cumprimento da prestação ou dos deveres principais, como ocorre com os deveres secundários. Estão, antes, referidos ao exato processamento da relação obrigacional, isto é, à satisfação dos interesses globais envolvidos na relação obrigacional, em atenção a uma identidade finalística, constituindo o complexo conteúdo da relação que se unifica funcionalmente. Dito de outro modo, os deveres instrumentais "caracterizam-se por uma função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de proteção à pessoa e aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes", servindo, "ao menos as suas manifestações mais típicas, o interesse na conservação dos bens patrimoniais ou pessoais que podem ser afetados em conexão com o contrato (...)" (87).

O direito comparado, mas principalmente o direito alemão, é rico em exemplificar as funções da boa-fé objetiva (88). O mais célebre exemplo de cláusula geral, paradigmático, até, pela constância com que é lembrado e pela relevantíssima função que, desde o início deste século, tem cumprido, é o parágrafo 242 do Código Civil alemão, assim redigido:

          "# 242: O devedor deve (está adstrito a) cumprir a prestação tal como o exija a boa-fé, com consideração pelos costumes do tráfego jurídico." (89)

Hoje em dia se afirma que o parágrafo 242 veio a constituir o elemento fundamental para uma compreensão "absolutamente nova" da relação obrigacional, transformando o conceito de sistema e a própria teoria tradicional das fontes dos direitos subjetivos e dos deveres, na medida em que limitou extraordinariamente a importância da autonomia da vontade (90). Aceita-se, por igual, que a boa-fé possui "um valor autônomo, não relacionado com a vontade", razão pela qual "a extensão do conteúdo da relação obrigacional já não se mede com base somente nela, e, sim, pelas circunstâncias ou fatos referentes ao contrato, permitindo-se construir objetivamente o regramento do negócio jurídico com a admissão de um dinamismo que escapa, por vezes, até ao controle das partes" (91). Não foi este, contudo, o sentido que lhe foi conferido originalmente pelos autores do BGB.

Com efeito, a inserção deste tipo de norma (92) num código formado e modelado pela Pandectística poderia surpreender. Não haverá surpresa ao saber que a aprovação do BGB em 18 de agosto de 1896 deu-se em meio a fortes críticas ao "caráter elástico" de algumas de suas disposições e ao apelo "demasiadamente freqüente", aí implicado, ao "poder discricionário do juiz " (93). Lê-se, nos Motive, a propósito do parágrafo 138, que prevê a nulidade do negócio jurídico por contrariedade aos bons costumes (guten Sitten) que a regra mencionada, não obstante considerada "um passo adiante significativo da legislação", não obstaria certa "perplexidade", porque "à valoração do juiz está reservado um espaço até hoje desconhecido em matéria jurídica assim tão ampla" (94).

É certo que, no pensamento dos redatores do BGB as cláusulas gerais não eram tidas como dispositivos especificamente destinados a atribuir aos juizes poderes de criação normativa similares ao do pretor romano, assinalando Clóvis do Couto e Silva que o parágrafo 242 "não significava outra coisa senão mero reforço ao parágrafo 157, no qual se determinava a regra tradicional de interpretação dos negócios jurídicos segundo a boa-fé" (95). No primeiro projeto do BGB, as disposições do atual parágrafo 242, bem como a do parágrafo 157 (96), incluíam-se no texto de outro parágrafo, o de número 359, assim redigido: "O contrato obriga os contraentes ao que, pela determinação da natureza do contrato, segundo a lei e os costumes do tráfego, assim com consideração pela boa-fé, resulte como conteúdo de sua vinculação" (97), justificando-se a disposição do seguinte modo:

          "Através dele (o parágrafo 359) não são apenas dados certos pontos de referência para a averiguação das vinculações que nascem de contratos concretos; exprime-se antes, sobretudo, o princípio prático e importante de que o tráfego negocial hoje é dominado pela consideração da boa-fé e, de que, quando esteja em causa a determinação do conteúdo de um contrato ou das vinculações dele resultantes para as partes, deve tornar-se essa consideração, em primeira linha, como fio condutor" (98).

Contudo, muito embora o pensamento constante nos Motive, alguns juristas, como Crome, entenderam desde logo que o parágrafo 242 tenderia "a dominar o Direito das Obrigações por inteiro" (99). O diagnóstico foi acertado. Apesar de algumas vozes que de início se ergueram contra tal "preceito dúctil", logo se manifestaram opiniões contrárias, ainda nos albores deste século, que iniciaram uma gradual obra inovadora. Como relata Domenico Corradini, algumas Cortes de Justiça aplicaram o parágrafo 242 conferindo-lhe o sentido de boa-fé objetiva, recusando-se, assim, a considerá-lo uma fórmula meramente pleonástica, norma de interpretação dos contratos ou simples compêndio de deveres previstos em normas diversas (100). Por essa via, "com uma prática que encontra eco nos jurisconsultos teóricos e acende dúvidas e polêmicas", os juizes alemães afirmaram "regras que parecia difícil conceber após o longo período de desconfiança e reticência no tratamento das cláusulas em branco" (101).

A jurisprudência brasileira mais recente, rompendo a tradição que conotava à boa-fé contratual tão somente o sentido de adstrição ao formalmente pactuado, vem percorrendo caminho de marcada substantivação, por forma a fazer frutificar, da sua incidência, a tríplice função antes aludida, notadamente a criação de deveres instrumentais de conduta. Contudo, como entre nós, até agora, não estava boa-fé posta em cláusula geral (102), o desenvolvimento jurisprudencial do princípio, a par de sofrer com os males da dispersão antes apontada, era ainda tímido. O preceito do art. 421 do Projeto tem o mérito de atuar como a lei de conexão, para permitir à jurisprudência a reunião, a sistematização e o desenvolvimento das várias hipóteses de conduta contratual.

Observe-se que o art. 421 impõe o dever de agir com probidade e boa-fé não só no momento da conclusão do contrato, mas também em seu desenvolvimento, deixando assim entrever o caráter dinâmico da relação obrigacional (103). A conduta conforme à boa-fé objetiva, qualificando uma norma de comportamento contratual leal, assentado na confiança recíproca, é, por isto mesmo, uma norma também marcada pelo dinamismo, necessariamente nuançada, a qual, contudo, não se apresenta como uma espécie de panacéia de cunho moral incidente da mesma forma a um número indefinido de situações. É norma nuançada --- mais propriamente constitui um modelo jurídico ---, na medida em que encontra-se revestida de variadas formas, de variadas concreções, "denotando e conotando, em sua formulação, uma pluridiversidade de elementos entre si interligados numa unidade de sentido lógico" (104). Não é possível, efetivamente, tabular ou arrolar, a priori, o significado da valoração a ser procedida mediante a boa-fé objetiva, não podendo o seu conteúdo ser rigidamente fixado, eis que dependente sempre das concretas circunstâncias do caso. Por estas características a cláusula geral da boa-fé objetiva só pode dar frutos em um sistema aberto.

Sobre o autor
Judith Hofmeister Martins Costa

professora de Direito Civil da Faculdade de Direito da UFRGS, doutora em Direito pela Universidade de São Paulo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Judith Hofmeister Martins. O Direito Privado como um "sistema em construção":: as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 41, 1 mai. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/513. Acesso em: 22 nov. 2024.

Mais informações

Artigo publicado na Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, n. 15, Porto Alegre, UFRGS/Síntese, 1998, pp. 129-154

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