O Juizado Especial Cível, antigo Juizado de Pequenas Causas, surgiu, dentre outros propósitos, para aproximar o cidadão do Judiciário. A continha da Tia da lanchonete, o cheque de pequeno valor da oficina da esquina, o acidente de trânsito que só teve uma ‘raspadinha’, o consumidor ‘hiper-vulnerável’ que era massacrado pela Rede Internacional etc.
É bem verdade que esta aproximação, inicialmente romântica, atualmente pode ser um pouco traumática. Ocorre que a Lei 9.099/95 trouxe, ao Judiciário, muitas demandas reprimidas.
Condomínios, escolas, cursos, profissionais liberais, microempresas e empresas de pequeno porte utilizam-se, livremente, dos Juizados como um verdadeiro ‘escritório de cobrança’. O consumidor, outrora inocente, agora conhecedor de ‘seus direitos’, demanda contra três, quatro, ou mais empresas, em razão de problemas, por vezes, essencialmente administrativos.
Lado outro, as grandes empresas preferem inserir no preço de seus produtos e/ou serviços a ‘taxa de contencioso’ a investir em atendimento adequado, produtos e serviços de qualidade.
Somada a enxurrada de novas demandas, temos o exercício da advocacia ‘predatória’ ou ‘ofensora’ que faz da captação de clientes seu maior objetivo, mesmo sendo uma grave infração disciplinar (EOAB, art. 34, inciso IV).
Mas a equação, ainda, não está completa.
Tenho consciência de que há muitos servidores e magistrados que conduzem alguns juizados como uma ‘mini’ vara cível, ou por incompatibilidade pessoal e/ou técnica com o sistema dos juizados, ou por falta de gestão e estrutura administrativa (realidade de várias comarcas pelo país). Sem contar a desvalorização dos servidores, que não é foco, aqui.
Enfim, o que era pra ser sonho, se transformou em um terrível pesadelo: audiência designada para mais de um ano, após o protocolo; processos conclusos para prolação de sentença há mais de outro ano; espera pelo julgamento do recurso na Turma com mais outros dois anos.
Abarrotados de processos e com gestão quase ineficiente, os juizados não conseguem cumprir a maioria dos critérios da Lei 9.099/95, especialmente a economia processual, a celeridade e a conciliação. Acredite, 20 anos antes da publicação do Novo CPC, muito antes de serem agraciados com o título de “Normas Fundamentais do Processo Civil”, tais preceitos já eram indicados pelo legislador como objetivos a serem perseguidos pelos Juizados. Então, neste cenário, o Novo CPC não trouxe nada de inédito.
O novo diploma processual, tão celebrado pelas ferramentas repaginadas, trouxe consigo o tão almejado ‘prazo em dia útil’ (NCPC 219). De início, acreditava-se que não fosse gerada nenhuma celeuma em relação a sua aplicação aos Juizados, tanto que o FPPC (Enunciado 415) e a ENFAM (Enunciado 45) emitiram suas opiniões no sentido de sua compatibilidade. O argumento é o de que inexistente no sistema dos Juizados Especiais regra específica tratando de contagem de prazos, e se não há regra especial, aplica-se naturalmente a geral, qual seja, a do NCPC, 219.
Entretanto, logo no início da vigência do novo código, sites especializados replicavam o entendimento da Ministra Nancy Andrighi: “Para a corregedora, a adoção da nova regra de contagem de prazos prevista no novo CPC atenta contra os princípios fundamentais dos processos analisados pelos Juizados Especiais, como a simplicidade, a economia processual e, sobretudo, a celeridade”.
Foi também expedida uma nota técnica do FONAJE, no mesmo sentido: “Todavia, forçoso é concluir que a contagem ali prevista não se aplica ao rito dos Juizados Especiais, primeiramente pela incompatibilidade com o critério informador da celeridade, convindo ter em mente que a Lei 9.099 conserva íntegro o seu caráter de lei especial frente ao Novo CPC, desimportando, por óbvio, a superveniência deste em relação àquela.”
Um segundo argumento apresentado pelo FONAJE é de que, em consonância com a técnica de hermenêutica jurídica “Inclusio unius est exclusio alterius”, o legislador limitou as hipóteses de aplicação do NCPC aos JECs. Logo, não há determinação de aplicação do artigo 219 aos juizados.
Surgiu assim a controvérsia. Vários tribunais estaduais e federais se dedicaram a editar enunciados adotando um ou outro posicionamento. Algumas comarcas também se dividiram. Até que em junho de 2016, no XXXIX FONAJE, foi aprovado o ENUNCIADO 165: “Nos Juizados Especiais Cíveis, todos os prazos serão contados de forma contínua”.
As alterações apresentadas pelos dois últimos encontros do FONAJE dão conta do claro objetivo de tentar blindar o Sistema dos Juizados diante das alterações do NCPC (Enunciados 161, 162, 163, 164 e outros).
Por óbvio, o primeiro argumento é de que: como pode um ‘colegiado’ de juízes estaduais negar vigência a uma lei federal? Outro questionamento que surge é de que o fato de se contar os prazos em dias úteis em nada contribui para o já moroso processo do juizado, pelas razões acima explicitadas, assim, não infringiria a suposta celeridade processual.
Concordo, mas replico: tudo aquilo que aprendemos sobre a Lei 9.099 - cada uma das suas palavras representa um princípio a ser protegido – deve ser descartado? O que já é moroso, precisa ser mais demorado?
O objetivo aqui não é convencer, nem defender determinada bandeira, mas, sim, proporcionar tal reflexão: se os Juizados funcionassem adequadamente, cumprindo todas as metas da Lei 9.099/95, os prazos em dias úteis do NCPC seriam compatíveis?