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Lima Barreto e o golpe de 2016

Agenda 29/08/2016 às 08:51

Num momento tão marcado pela ficção jornalística a única coisa racional a fazer é recorrer à literatura para explicar a realidade do golpe de estado em curso.

O drama televisivo do Impedimento mediante fraude está chegando ao fim. Qualquer que seja a decisão do Senado o Brasil não se recuperará em pouco tempo. O regime constitucional esboçado em 1988 está em frangalhos.

O Poder Legislativo, controlado por centenas de Deputados e Senadores bandidos, é incapaz de representar a nação brasileira. O Poder Executivo, sabotado e impedido de governar pelas quadrilhas parlamentares e jornalísticas (Dilma Rousseff) ou governando exclusivamente pelos interesses dos especuladores internacionais (Michel Temer), não é capaz de atender os anseios da população desde 2015. O Poder Judiciário fechou-se sobre si mesmo, preferindo legitimar um golpe de estado em troca de novos privilégios salariais.

A democracia brasileira já é um simulacro. O império da Lei é uma piada de mal gosto. A atividade policial foi corrompida por delegados que protegem bandidos e perseguem inocentes. Procuradores Federais se deixaram usar pelos barões da mídia que desejam criminalizar a política e derrubar Dilma Rousseff. Iniciado o trabalho de destruição do Estado, eles são incapazes de resistir às pressões do PMDB, do PSDB e de Gilmar Mendes. A esmagadora maioria dos Juízes quer a destruição do PT e alguns fazem de turo para prender Lula.

O povo, vítima do golpe que está encolhendo o Estado, interrompendo programas sociais, revogando direitos trabalhistas e previdenciários para garantir o pagamento de juros aos especuladores financeiros, é incapaz de reagir. Os brasileiros assistiram bestificados á quartelada que colocou fim ao Império. 127 anos depois, os descendentes deles assistem pela TV, anestesiados, a destruição do regime constitucional sem imaginar que serão as maiores vítimas do golpe de estado deflagrado em 2016.

A esquerda se esgoela na internet, mas não foi capaz ou não quis encher as ruas. A resistência parlamentar ao golpe de estado é ineficaz. Tanto que o ataque mais feroz ao golpe brasileiro foi feito por uma parlamentar portuguesa 1. Ao rever hoje o vídeo de Joana Mortágua notei a principal diferença entre o parlamento português e o brasileiro. Até mesmo os adversários dos comunistas foram capazes de escutar o discurso contundente da valorosa portuguesa. Isto não ocorreria no Brasil. Cá, os Deputados e Senadores bandidos nunca se calam e são capazes de calar os políticos honestos.

Onde falhamos? Como pode o Brasil afundar justamente com ajuda das instituições que deveriam representar, proteger e defender a nação? O que faz o Brasil tão diferente de Portugal?

Vários articulistas de esquerda especulam sobre o futuro do país após o golpe de estado. Outros procuram no passado as raízes do mal que se renova. A mim me parece que a questão é bem outra. Ao contrário de Portugal, o Brasil não chegou a ser um país.

Os portugueses são capazes de celebrar tanto a resistência à invasão romana (culto a memória de Viriato) quanto o legado deixado por Roma na Lusitânia. Após cinco séculos de existência o Brasil ainda não foi capaz de elevar Cunhanbebe à condição de herói nacional. A história dos índios segue sendo rejeitada e reprimida para que eles e seus descendentes possam ser tratados como “menos iguais”. Daí resulta o verdadeiro mal que corroeu todos nossos regimes constitucionais republicanos e que está destruindo a CF/88: o Brasil ainda não conseguiu ser apenas “um país”. A divisão social e econômica entre a nação dos golpistas (todos eles brancos, ricos e impunes) e a dos outros brasileiros (pobres, pretos e pardos, mestiços enfim) se desdobra no campo histórico, político e jurídico.

A partir deste ponto, passarei da realidade fictícia para a ficção literária.

Lima Barreto foi o único escritor que captou a natureza tragicomica desta divisão. Em “O Triste Fim de Policarpo Quaresma”, o protagonista procura valorizar as coisas do Brasil. Certa feita ele enviou ao Ministro um ofício, escrito em tupi, defendendo que esta deveria ser a língua oficial do nosso país. Em razão disto, Policarpo Quaresma foi internado num hospício. Após receber alta, ele se torna sitiante, fracassa e retorna à cidade. Instigado pelo clima político, Policarpo adere à revolta comandada pelo Marechal Floriano. Ao final da mesma ele é preso sem qualquer motivo plausível.

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A trajetória de Policarpo Quaresma é paradigmática. Ele parte do nada (um nacionalismo deslocado e exacerbado) e chega ao inferno (a prisão, onde é considerado traidor e bandido) depois de ter conhecido o purgatório (o hospício e o sítio em que fracassa). A saga dele só é completa porque ele está fadado a cair sempre que tenta subir ao topo da escala social.

Policarpo Quaresma é, portanto, uma afirmação da negação: ele só continua existindo enquanto podem tirar algo dele (a saúde mental, o sucesso agrário, o reconhecimento político e a liberdade). O personagem de Lima Barreto cresce à medida que é empurrado para o subsolo da sociedade. O protagonismo negativo de Policarpo Quaresma realça o papel dos personagens secundários que dominam a sociedade e o conduzem ao triste fim. A ironia é sutil.

Lima Barreto eleva o valor literário do seu protagonista à medida que ele é rebaixado. E rebaixa à condição de coadjuvantes aqueles que dominam a sociedade e estão em condição de perseguir Policarpo Quaresma. A identificação entre o protagonista e os leitores não é automática. Mas ela vai se aprofundando à medida que o livro vai chegando ao final.

O martírio de Dilma Rousseff é, sem dúvida alguma, uma prova da natureza tragicomica da “não nação” brasileira tão bem descrita por Lima Barreto em “O Triste Fim de Policarpo Quaresma”. Mas a trajetória de ambos é ligeiramente diferente. Dilma Rousseff foi presa no início da vida, Policarpo Quaresma conhece a prisão quando sua jornada está se encerrando. Tanto o protagonista de Lima Barreto quanto Dilma Rousseff crescem à medida que são forçados à sair de cena. Mas ao contrário de Policarpo Quaresma, a primeira presidenta do Brasil não vai cair porque fracassou: ela foi sacrificada justamente porque teve sucesso.

No final desta fase da história do Brasil a realidade ocupará o espaço da ficção de uma maneira ou de outra.

Durante seu primeiro mandato, Dilma Rousseff fez o impensável: reduziu os juros, construiu milhões de habitações populares e enviou dezenas de milhares de estudantes pobres e negros para o exterior. Sob o governo dela o Brasil provou que pode ser apenas um país. O golpe de estado para dividir o país em duas nações irreconciliáveis sob o comando de uma delas não conseguirá remover de nossa história este momento mágico de união nacional. O sucesso do golpe provocará em pouco tempo o fracasso desta divisão. É por isto que não estou preocupado.

Lima Barreto condenou os protagonistas da sociedade em que viveu a serem personagens subalternos do seu melhor romance. Ao destruir o regime constitucional para recuperar o protagonismo no início do século XXI os golpistas conseguirão enfim cumprir o destino histórico que foi reservado para eles pelo maior romancista do início do século XIX. Dilma Rousseff sobe porque cai, tudo o que Michel Temer, José Serra e Gilmar Mendes representam cairá porque eles estão escalando um edifício que já começou a ruir.


Nota

1 https://www.youtube.com/watch?v=6lAfUPsdtfI

Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

Advogado em Osasco (SP)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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