1. Vez por outra o Superior Tribunal de Justiça surpreende seus jurisdicionados com uma decisão que contrasta com a sua trajetória de realce da cidadania. É do feitio dessa Corte ampliar as medidas de acesso ao Judiciário e a colaboração, por meio de uma perene construção pretoriana de vanguarda, na melhora do processo como meio democrático de composição dos litígios. Ocasionalmente, porém, essa estrada deixa de ser palmilhada.
2. Na edição 202 de seu Informativo (15 a 19 de março de 2004), traz-se o seguinte noticiário:
"PENHORA. INTIMAÇÃO. PRAZO. EMBARGOS.
Tratando-se de execução fiscal, não há que se indicar, no mandado de intimação da penhora, o prazo para embargar, conquanto a Lei de Execuções Fiscais – LEF não faz tal exigência (art. 12 da Lei n. 6.830/1980). Embora aplicável subsidiariamente o CPC, que contém norma expressa quanto à necessidade (art. 225, VI e art. 669), a doutrina vem entendendo que essa irregularidade não acarreta a pretendida nulidade. REsp 447.296-RJ, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 18/3/2004."
3. A decisão, apesar da brilhante origem, não é acertada. Destoa do roteiro que vem sendo seguido pela jurisprudência, inclusive do próprio STJ, quanto ao tema específico. Não se tem irregularidade na experiência judicial narrada, mas verdadeiro caso de nulidade por cerceio ao direito de informação quanto ao tempo que se dispõe para defesa.
4. A questão é seria, pois envolve o acesso ao devido processo legal e a parte não pode ficar à mercê de sua própria dedução leiga quanto ao tempo que dispõe para protocolar suas defesas, no caso os seus embargos, ação autônoma que se presta a esse fim.
5. Deveras, a legislação processual civil brasileira é fértil em variáveis e, mesmo entre conhecedores do assunto, não é raro algum deles ignorar o prazo a aplicar a uma dada situação concreta, sendo imprescindível a consulta à lei de regência. As vezes nem mesmo esta é clara quanto a isso.
6. O leigo não tem ditos saberes técnicos. Ainda que não possa escusar-se de conhecer o prazo pela presunção de onisciência criada pela Lei de Introdução ao Código Civil, tem a seu favor, na hipótese, o próprio texto da lei geral em matéria procedimental, que é o Código de Processo Civil. Este reza quanto ao mandado de citação:
"Art. 225. O mandado, que o oficial de justiça tiver de cumprir, deverá conter:
(...)
VI - o prazo para defesa;"
7. Pode-se argumentar que o dispositivo refere-se à citação e o que se tem no caso não é um ato citatório, mas a penhora. Para essa objeção pode-se aduzir que o CPC reza mais à frente:
"Art. 669. Feita a penhora, intimar-se-á o devedor para embargar a execução no prazo de dez dias."
8. A diretriz reitora está manifesta. O legislador quer que a parte saiba o prazo que dispõe para se defender. Aliás, a jurisprudência do STJ, sedimentada quanto a esse temário, não divergia disso:
"PROCESSUAL CIVIL – EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA – EXECUÇÃO FISCAL – TERMO A QUO PARA OPOSIÇÃO DE EMBARGOS DO DEVEDOR – INTIMAÇÃO – PENHORA – I. Na execução fiscal, o prazo de 30 (trinta) dias para a oposição de embargos inicia-se a partir da efetiva intimação da penhora ao executado, devendo constar expressamente, no mandado, a advertência do prazo para o oferecimento dos aludidos embargos à execução. II. Embargos de divergência rejeitados." [1]
"PROCESSUAL CIVIL – EMBARGOS DE DECLARAÇÃO – RECURSO ESPECIAL – EXECUÇÃO FISCAL – PRAZO – EMBARGOS DO DEVEDOR – INTIMAÇÃO DA PENHORA – TERMO INICIAL – OMISSÃO E CONTRADIÇÃO – INEXISTÊNCIA – I – A jurisprudência deste Tribunal é pacífica no sentido de que ‘o mandado de citação deve conter o prazo para a defesa, sob pena de nulidade. Por esse prazo se deve entender a designação quantitativa do número de dias que tem o citando para apresentar contestação. E a menção expressa ao prazo se justifica exatamente para que o destinatário da citação fique ciente do período de tempo de que dispõe para tomar as providências que lhe incumbem’ (RESP nº 175.546/RS, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, in DJ de 13.09.1999). Na hipótese, sub examen, verifica-se que a cópia do mandado de penhora, avaliação e intimação, inserta às fls. 123, dá conta de que o Oficial de Justiça efetivamente intimou o recorrente, constando na letra ‘e’ do referido mandado que o executado teria o prazo de 30 (trinta) dias para oferecer embargos à execução. II – Não havendo no V. Decisum embargado qualquer ponto omisso ou contraditório sobre que deva se pronunciar esta colenda Turma, mas tão-somente o intuito de rediscutir o julgado, emprestando-lhe o efeito infringente, rejeitam-se os embargos declaratórios." [2]
"PROCESSUAL CIVIL – EXECUÇÃO FISCAL – INTIMAÇÃO – PENHORA – PRAZO PARA EMBARGOS – ‘A assinatura do Auto de depósito do bem penhorado não equivale a intimação da penhora, para os efeitos da Lei nº 6.830/90 (art. 16). – Para que se tenha o devedor como intimado da penhora, no processo de execução fiscal, é necessário que o Oficial de Justiça advirta-o expressamente de que a partir daquele ato inicia-se o prazo de trinta dias para oferecimento de embargos.’ (REsp 212.368/RS, Relator Ministro Humberto Gomes de Barros, DJ de 21.02.2000, pág. 95. ) – Medida cautelar procedente." [3]
PROCESSUAL – EXECUÇÃO FISCAL – PRAZO PARA EMBARGOS – INTIMAÇÃO DE PENHORA – LEI Nº 8.830/80 (ART. 16) – 1. Intimada a executada da penhora e advertida do prazo para oposição de embargos à execução, é dessa data, e não da assinatura do termo de depósito, que se conta o lapso temporal para embargar. 2. Precedentes jurisprudenciais. 3. Recurso parcialmente conhecido, mas não provido. [4]
PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. INÍCIO DO PRAZO PARA OPOSIÇÃO DE EMBARGOS. INTIMAÇÃO PESSOAL. ADVERTÊNCIA EXPRESSA DO DEVEDOR DO PRAZO PARA OFERECIMENTO DE EMBARGOS. PRECEDENTES. 1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento no sentido de que, no processo de execução fiscal, o prazo para oposição de embargos inicia-se a partir da intimação da penhora, e não da juntada do mandado, devendo o oficial de justiça advertir o devedor, de modo expresso, que o prazo de trinta dias para oferecimento de embargos contar-se-á daquele ato. Havendo mais de um sócio executado, corre o aludido prazo a contar da última intimação. 2. A obrigatoriedade de menção categórica do prazo justifica-se exatamente no intuito de que o destinatário da intimação fique ciente do período de tempo de que dispõe para tomar as providências que lhe proverem, sendo irrelevante que do mandado conste, tão-somente, a expressão ‘prazo legal’. 3. Precedentes desta Corte Superior.4. Recurso não provido." [5]
9. Esses exemplos são reveladores de bom senso. Merecem, na parte em que realçam a necessidade de exposição do prazo para a defesa, o aplauso da comunidade jurídica. Caminham eles no rumo de um processo menos complicado para a parte, coisa que devia constituir uma obsessão de quem milita na Justiça, atualmente verdadeiro lugar para iniciados tal a complexidade de suas veredas.
10. A decisão em comento atrapalha, pois cria mais dificuldades para a parte. Isso não é bom. Justiça complicada, parafraseando Rui Barbosa, é injustiça manifesta. É, na melhor hipótese, Justiça tardia. Na pior, injustiça duplicada pelo efeito do tempo. Complicar é verbo que deve ser odiado pelo Judiciário.
11. Note-se que o processo executivo fiscal, de seu lado, sabidamente piora as coisas para o seu executado em relação ao excutido comum. Não convém agravar ainda mais a sua situação de subserviência. Como se não bastasse litigar com um Fisco que produz o seu próprio título executivo, que tem a seu favor dizer quanto seu ex adverso deve, o demandado comum há de transitar num campo minado, qual seja: o do rito da Lei 6.830/80.
12. Esse diploma é, assistemático, consoante as interpretações que lhe tem sido dadas. No que tange ao cômputo dos prazos processuais, por exemplo, não se repete a lógica do CPC. Os prazos nele estatuídos são contados a partir do ato mesmo de comunicação e não de sua juntada, como seria congruente com a sistemática vigente no processo civil brasileiro. Isto é uma outra falha que a jurisprudência tem o mau vezo de amparar. Observe-se a esse respeito:
"PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. EMBARGOS DO DEVEDOR. PRAZO. TERMO INICIAL. INTIMAÇÃO DA PENHORA. LEI 6830⁄80, ART. 16, III. PRECEDENTES.1. O prazo para a oposição dos embargos à execução fiscal começa a fluir da intimação da penhora e não da juntada aos autos do respectivo mandado.2. Recurso especial improvido." [6]
13. A parte, à vista dessa peculiaridade, deve ser ágil no buscar de providências de defesa. Não pode contar com o tempo de demora entre a comunicação e seu ingresso no processado. Seu advogado deve ser presto. A indicação explícita do prazo de 30 dias no mandado tornaria a tomada de providências algo menos complexo e resolveria o imperativo ético-constitucional de dar ao demandado o acesso à ampla defesa incontinenti à ciência de que está sendo processado. Não há razão para a Justiça dificultar as coisas para o jurisdicionado. A parte deve ser amparada por um sistema que premie a clareza, não deve ser sujeita a uma selva de dificuldades, como sói ocorrer. A tarefa do Poder Público é servir ao cidadão. Serve-se bem quando a presteza do serviço é total. No caso em questão, isso só se logra com a informação clara e precisa do tempo que se dispõe para a defesa.
14. De mais a mais, se é verdade que o Código de Processo Civil se aplica subsidiariamente aos procedimentos civis em geral, por qual razão lógica os dispositivos que determinam a exposição do prazo para embargos foram desconsiderados pelo STJ?
15. A notícia não o diz e o voto ainda não foi disponibilizado no momento em que este texto está sendo redigido. Mas o fato extreme de dúvidas é que não se tem mera irregularidade, mas verdadeira nulidade. O art. 247 do CPC o impõe. É da essência de uma comunicação desse naipe que se diga qual a sua conseqüência. Ademais, pelo menos um magnânimo princípio (o do devido processo legal procedimental, pela não aplicação de um comando necessário) está sendo olvidado e isso é muito mais sério que a violação de uma só regra. É uma lição de hermenêutica básica que não pede digressões para se evidenciar.
16. Realmente, a Lei 6.830/80 não fala coisa alguma a respeito de como o mandado deve ser redigido. Perceba-se:
"Art. 12. Na execução fiscal, far-se-á a intimação da penhora ao executado, mediante publicação, no órgão oficial, do ato de juntada do termo ou do auto de penhora.
§ 1º. Nas comarcas do interior do Estado, a intimação poderá ser feita pela remessa de cópia do termo ou do auto de penhora, pelo correio, na forma estabelecida no artigo 8º, I e II, para a citação.
§ 2º. Se a penhora recair sobre imóvel, far-se-á intimação ao cônjuge, observadas as normas previstas para a citação.
§ 3º. Far-se-á a intimação da penhora pessoalmente ao executado se, na citação feita pelo correio, o aviso de recepção não contiver a assinatura do próprio executado, ou de seu representante legal.
Art. 13. O termo ou auto de penhora conterá, também, a avaliação dos bens penhorados, efetuada por quem o lavrar."
17. Esse silêncio é eloqüente. Deve ser interpretado como uma remissão ao CPC, em consonância com o princípio da subsidiariedade. Tanto assim é que se sabe, por exemplo, que os prazos nesse tipo de procedimento contam-se excluindo o dia do início e incluindo o do final, como previsto no CPC. Ausente essa regra da lei, ninguém desafia o cânon da subsidiariedade para dizer em sentido diverso. Mesmo que se desejasse ignorá-lo, a Lei de Execuções Fiscais o reclamaria:
"Art. 1º. A execução judicial para cobrança da Dívida Ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e respectivas autarquias será regida por esta lei e, subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil."
18. Trata-se, portanto, de princípio expresso. O STJ o reconheceu:
"EXECUÇÃO – EMBARGOS À ADJUDICAÇÃO – PRAZO – APLICAÇÃO DA LEI PROCESSUAL CIVIL – Conforme dispõe o art. 1º da Lei de Execução Fiscal, a esta aplicam-se subsidiariamente as regras contidas no Código de Processo Civil. – Quando a autarquia estadual atua como banco, não pode ela valer-se da execução fiscal para haver crédito decorrente de contrato de financiamento. – Prazo para oferecimento dos embargos à execução escorreitamente estabelecido em dez dias, contado a partir da assinatura do auto. Recurso especial não conhecido". [7]
19. Assim, a orientação constante do Informativo 202, apesar da ilustrada fonte não deve grassar. O STJ deve revê-la, mantendo-se na pauta anterior, sob pena de se permitirem ofensas flagrantes ao primado da ampla defesa. Além disso, esse julgado é perigoso por outro motivo. Ele enseja o risco de se tumultuar ainda mais a compreensão do já estranho rito executivo estabelecido em prol das Fazendas.
Notas
1 STJ – ERESP 191627 – SC – 1ª S. – Rel. Min. Francisco Falcão – DJU de 05.05.2003
2 STJ – EDRESP 328805 – PR – 1ª T. – Rel. Min. Francisco Falcão – DJU de 30.09.2002
3 STJ – MC – 3612 – PR – 1ª T. – Rel. Min. Francisco Falcão – DJU de 15.10.2001
4 STJ – RESP 124608 – SP – 1ª T. – Rel. Min. Milton Luiz Pereira – DJU 13.08.2001
5 STJ - RESP 593.633 – SP – 1.ª T – Rel. Min. José Delgado – DJU de 22/03/2004
6 STJ - RESP 208035 - RS, 2ª T - Rel. Min. Francisco Peçanha Martins - DJ de 23⁄04⁄2001
7 STJ – RESP 80254 – MG – 4ª T. – Rel. Min. Barros Monteiro – DJU 25.06.2001 – p. 00181