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Contribuições interventivas e discriminação de rendas pelo produto.

Uma análise federativa à luz da repartição da CIDE-combustíveis com Estados e Municípios

Agenda 18/05/2004 às 00:00

A CIDE-Combustíveis, de competência tributária da União, é instrumento de intervenção no domínio econômico da comercialização e importação de petróleo e derivados.

1. Introdução

Trata o presente estudo da correlação jurídica e da interface constitucional entre um tema de Direito Financeiro e outro de Direito Tributário. O tema de Direito Financeiro é a discriminação de rendas tributárias pelo produto, ou repartição de rendas tributárias. O (tema) de Direito Tributário diz com as contribuições de intervenção no domínio econômico, aqui chamadas interventivas, em especial com seu caráter finalístico. A repartição ou discriminação pelo produto de contribuições interventivas, entre os entes autônomos da Federação brasileira, é a correlação que pretendemos traçar nas linhas adiante.

O escasso tratamento doutrinário conferido à matéria, até aqui, se explica tendo em vista que a hipótese assim cogitada era inexistente em nosso sistema constitucional. Era. A Emenda Constitucional n° 42, de 19/12/2003 - Reforma Tributária-, acaba de encetá-la.

A questão de que se cuidará passou a assumir relevo prático com a repartição da chamada CIDE-Combustíveis entre Estados, Distrito Federal e Municípios, por meio dessa Reforma. A CIDE-Combustíveis, de competência tributária da União, é instrumento de intervenção no domínio econômico da comercialização e importação de petróleo e derivados. Os debates que, nesse particular, se seguiram à promulgação da Emenda, têm versado sobre a destinação e a natureza dos recursos da CIDE que serão transferidos pela União aos entes federados, e as exigências envolvendo essas transferências.

Nosso objetivo, assim, é analisar esses aspectos concretos, a partir de argumentos pontuais sobre a discriminação de rendas pelo produto e sobre as contribuições interventivas. À luz da correlação desses argumentos, buscaremos no âmbito constitucional do Estado Federal brasileiro subsídios para a compreensão de alguns dos problemas práticos a eles relacionados.


2. Da discriminação de rendas tributárias pelo produto

Germana de Oliveira Moraes [1] (2001, p. 307) anota: "A discriminação constitucional de rendas, que se decompõe em discriminação pela fonte (competência tributária) e discriminação pelo produto (distribuição de rendas), é um dos requisitos caracterizadores do Estado Federal."

Com efeito, a obtenção de rendas por meio da atividade tributária é o veículo principal de sustentação da autonomia conferida à União, Estados, Distrito Federal e Municípios pela Constituição Federal. Nesse sentido é que, numa Federação, as rendas podem ser obtidas de forma originária, pelo próprio ente competente para a instituição de determinado tributo – hipótese da discriminação pela fonte. Mas também pode ocorrer que os entes federados participem do produto da arrecadação de tributos de competência de outro ente:– a discriminação, aqui, é pelo produto.

No plano de uma evolução histórica, a crescente interpenetração entre as atividades do centro e da periferia foi aos poucos mitigando o chamado federalismo dual ou clássico, o qual punha em destaque uma repartição rígida e estanque de competências entre as unidades autônomas federadas. Com a transformação do Estado Federal, surge o federalismo corporativo, pressupondo, conforme José Luiz de Anhaia Mello [2] (1960, p. 96) que "... todos os níveis de governo devem, uns aos outros, inteira cooperação." No campo das rendas tributárias, essa cooperação passou a se dar pela transferência de rendas, antes exclusivamente obtidas da competência impositiva originária, do centro para a periferia.

Daí porque a discriminação pelo produto, como corolário dessa evolução do federalismo, comporta não uma relação jurídica de natureza tributária, mas financeira, envolvendo apenas as unidades federadas autônomas. Assevera Roque Antonio Carrazza [3] (2003, p. 609): "... a destinação do produto da arrecadação do tributo não modifica a sua natureza jurídica e, por isso mesmo, não é objeto das preocupações do Direito Tributário". [4]

As normas constantes dos arts. 157 a 162, da Constituição de 1988, previam, até hoje, a divisão do produto da arrecadação apenas de impostos. Assim, por exemplo, os Estados entregam aos Municípios vinte e cinco por cento do Imposto de sua competência sobre Circulação de Mercadorias e Serviços de Transporte e de Comunicação, a União entrega aos Estados dez por cento do Imposto de sua competência sobre Produtos Industrializados, e assim por diante. Pela própria natureza dessa espécie tributária [5], as transferências de impostos na Federação brasileira nunca estiveram vinculadas a aplicação orçamentária específica pelas unidades beneficiadas, ou ao cumprimento de condições pelas mesmas.

Daí a Emenda Constitucional nº 42/03 ter inovado as práticas do Federalismo Fiscal brasileiro. Ao determinar a transferência de recursos da contribuição de intervenção no domínio econômico incidente sobre a comercialização e importação de petróleo e seus derivados (CIDE-Combustíveis), de competência da União, em favor de Estados, Distrito Federal e Municípios, suscitou questões novas, algumas das quais se busca compreender no presente estudo.


3. Das contribuições interventivas

As contribuições interventivas, assim como as demais contribuições especiais [6], têm seu fundamento de validade no art. 149 da Constituição, que reza:

"Art. 149. Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado o disposto nos arts. 146, III, e 150, I e III, e sem prejuízo do previsto no art. 195, § 6º, relativamente às contribuições a que alude o dispositivo."

Com base nesse dispositivo, aduz-se que a instituição das contribuições de intervenção no domínio econômico, de competência tributária exclusiva da União, devem ser orientadas por uma finalidade. Isso atribui a essa espécie tributária uma natureza diferenciada, como de resto ocorre com as outras contribuições incluídas no mesmo art. 149. É o que nota Pimenta [7] (2002, p. 17): "... o traço característico das contribuições especiais no direito brasileiro é que são exações instituídas para alcançar determinados fins qualificados constitucionalmente."

No caso das contribuições interventivas, essa finalidade obrigatoriamente é a de intervenção no domínio econômico, atribuindo-lhe um caráter próprio que se destaca a seguir.

3.1 O conteúdo finalístico nas contribuições interventivas

Pela leitura do art. 149 supra, observa-se que não foram traçadas pela Constituição Federal as materialidades possíveis para a CIDE, é dizer, a realidade fática sobre a qual deveria recair sua imposição. A Carta consagrou apenas sua finalidade.

Diante disso, a natureza jurídica vinculada das contribuições interventivas se revela em sua finalidade de intervir no domínio econômico, e não necessariamente numa atividade a ser desempenhada pela União. Finalidade, essa, obrigatória. Se a contribuição em tela não for instituída com vistas a uma efetiva intervenção do Estado na economia, em acordo com os objetivos traçados na Constituição, e sim com intuitos meramente arrecadatórios, será inconstitucional.

Muito bem. O tema agora a ser discutido é como a instituição da contribuição preenche essa finalidade interventiva. Dito por outro modo: em que pode consistir a intervenção como finalidade da CIDE? Com que funções?

A doutrina nacional fixou duas hipóteses por que se dá a intervenção. Colha-se a explanação de Bellan [8] (2002, p. 23) a propósito:

"A intervenção poderá, então, consubstanciar-se na própria exigência da CIDE (nos moldes da extrafiscalidade exercida por meio do II, IE, IPI e IOF) ou em alguma atividade material a ser realizada pela União Federal com emprego dos recursos arrecadados."

No mesmo sentido, escreve Dias [9] (2002, p. 73):

"... poderá servir para desenvolver determinado setor ou grupo econômico, arrecadando recursos e direcionando-os dentro do mesmo grupo com vistas ao crescimento das pequenas empresas, ou objetivando acabar com a dominação do mercado ou tutelar alguns princípios estampados na Constituição Federal.

A CIDE poderá, ainda, ser criada para o fim de custear atividade estatal de intervenção no domínio econômico, como a de planejamento."

Duas, portanto, as hipóteses de a CIDE ser instituída, cumprindo sua finalidade interventiva: ou pelo custeamento dos gastos desenvolvidos pelo Estado para interferir no domínio econômico (intervenção direta), ou pode consistir no próprio instrumento de intervenção (intervenção indireta).

Cumprida, pois, a finalidade para a qual foi instituída, surge o momento de se definir se existe uma aplicação necessária, uma vinculação orçamentária obrigatória da arrecadação originária do tributo em estudo. A questão levantada a seguir é se, após extinta a obrigação tributária relativa à contribuição interventiva (âmbito do Direito Tributário), há necessidade de vinculação dos recursos arrecadados a atividades paraestatais (âmbito do Direito Financeiro), por meio do que se chama "parafiscalidade".

3.2 Contribuições interventivas, parafiscalidade e vinculação orçamentária pela União

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A parafiscalidade, para Cassone [10] (2001, p. 91), representa "uma espécie tributária destinada a custear encargos paralelos aos da Administração Pública direta, cuja atividade o Estado tem interesse em desenvolver." Determinados tributos, por apresentarem essa natureza parafiscal, têm vinculado o produto de sua arrecadação a um determinado fundo, órgão ou despesa, previsto na lei orçamentária da unidade tributante.

No caso das contribuições interventivas, embora exista essa possibilidade, os estudiosos do assunto têm se preocupado em demonstrar que a parafiscalidade não é necessária. Dependerá do conteúdo finalístico de sua instituição.

Certo, a CIDE haveria de ser vinculada a órgão ou fundo paraestatais, quando instituída com a finalidade de custear determinada atividade estatal de intervenção no domínio econômico. Mas não lhe é um requisito obrigatório, tanto mais se a finalidade de sua instituição foi a própria intervenção. Nesse caso (consistindo a própria arrecadação na intervenção no domínio econômico), explica Bellan [11] (2002, p. 23) que:

"... haverá ingresso de recursos, os quais não estando vinculados a uma atividade específica, serão destinados ao caixa-geral da União, em nada alterando este fato a natureza da CIDE enquanto contribuição."

É em virtude da finalidade da instituição da contribuição pela União Federal que se vai verificar o destino de sua arrecadação, daí porque a parafiscalidade nem sempre é necessária, como escreve Pimenta [12] (2002, p. 65):

"Na primeira hipótese de instituição da contribuição, quando esta se destina ao custeio da intervenção direta na ordem econômica, a destinação da arrecadação a tal fim é imprescindível à validação da norma impositiva. Já na segunda situação, que se dá quando a contribuição é o próprio instrumento da intervenção, a arrecadação deve também se vincular a essa atividade, devendo ser dirigida ao orçamento da União. Nada obsta que nessa hipótese a arrecadação seja dirigida a um Fundo, cuja finalidade esteja relacionada ao setor atingido pela intervenção."

À luz dessas premissas, nota-se que o destino orçamentário da arrecadação deve ser sempre determinado em função da finalidade de sua instituição. No entanto, dependendo dessa finalidade, nem sempre os recursos arrecadados serão necessariamente alocados em órgão ou fundo da União, em caráter parafiscal.


4. Premissas para uma análise federativa da repartição de rendas oriundas das contribuições interventivas

Antes da Emenda Constitucional n° 42/03, a discriminação pelo produto, na Constituição Federal brasileira, referia-se somente a impostos. Dada a natureza por excelência não-vinculada desse tributo, não havia problemas quanto à utilização orçamentária dos recursos transferidos pelas unidades beneficiadas. O Município recebe cinqüenta por cento do IPVA arrecadado em função dos automóveis licenciados em seus territórios (art. 158, inciso III, da Carta); recebendo o repasse, sua destinação orçamentária não é vinculada. Era o que comentávamos inicialmente.

E quanto às contribuições ditas interventivas? Sua repartição enseja uma destinação obrigatória pelas unidades beneficiadas (Estados, Distrito Federal e Municípios, no caso)? Quais os valores constitucionais que presidem a discriminação pelo produto das contribuições interventivas?

Entendemos que a questão deve ser compreendida em função do princípio federativo - cláusula pétrea encampada por nosso ordenamento e base da organização estatal brasileira –, e também da coerência do sistema tributário.

Pois, se é verdade que, sendo a República Federativa do Brasil formada pela união indissolúvel de União, Estados, Distrito Federal e Municípios, todos dotados de autonomia, devem imperar entre eles relações isonômicas. Se a União, no uso de sua competência constitucional para instituir contribuição interventiva, deve observar a finalidade e a destinação a ela correlatas, não há como, na discriminação pelo produto daí oriunda, dar às transferências para Estados e Municípios o tratamento não-vinculado das transferências de impostos. Mais ainda: um tal procedimento, contrário à isonomia federativa, coloca em xeque a própria finalidade da instituição da contribuição interventiva. Sendo esta finalidade a intervenção direta ou indireta no domínio econômico, a repartição da contribuição com outras unidades federativas deve ser coesa com aqueles objetivos.

Pensa da mesma forma Pimenta [13] (2002, p. 105), ao aduzir:

"O destino da arrecadação também deve ser previsto em lei. Sua ausência, ou desconformidade com a previsão constitucional, importará na inconstitucionalidade da norma impositiva tributária. Ao traçar critérios para partilhar o produto da arrecadação do tributo, a lei não poderá infringir o princípio da isonomia." (grifamos)

A Lei n° 10.052, de 28/11/200, por exemplo, criou uma contribuição interventiva incidente sobre a receita bruta das empresas prestadoras de serviços de telecomunicações. O destino da arrecadação, obrigatório, dirige-se a custear um fundo para o desenvolvimento tecnológico das telecomunicações brasileiras. Se, por hipótese, a renda obtida com essa contribuição fosse partilhada com os Estados, estes também deveriam criar um fundo, com a mesma finalidade, para alocar os valores.

Não se desconhece a realidade financeira e orçamentária de Estados e Municípios brasileiros, para quem o interesse maior seria o de poder utilizar livremente os recursos repartidos de contribuições interventivas. No entanto, a coesão do sistema federativo, e também do sistema tributário, que lançou a possibilidade de instituição das contribuições interventivas, devem ser os valores mais importantes a se preservar.

Dessa forma, é desejável que as rendas partilhadas, relativas às contribuições em estudo, sejam aplicadas pelas unidades federadas beneficiárias nas mesmas destinações previstas para a unidade contemplada com a competência tributária originária.

Do contrário, se unidades beneficiadas com a repartição de contribuições interventivas pudessem dispor dessas rendas de forma aleatória, restaria inconstitucionalmente desvirtuado o conteúdo finalístico dessa exação – a intervenção no domínio econômico.

Disso decorre, também, a possibilidade de que condições mínimas sejam exigidas da unidade beneficiada, a fim de concretizar a entrega das transferências. Desde, claro, que as exigências sejam compatíveis com as finalidades da imposição, e que não acabem inviabilizando a própria entrega dos recursos.

Assim, retomando às formas de intervenção possíveis no domínio econômico, se uma contribuição foi instituída com a finalidade de custear certa atividade estatal relacionada à intervenção (por exemplo, constituir um Fundo para custeio estatal de pesquisas tecnológicas na área das telecomunicações), então essa finalidade deve ser observada pela unidade federada que receber parcela do produto das rendas.

De outro lado, se a finalidade de instituição da contribuição foi apenas intervir no domínio econômico - para regular o mercado, v.g. -, destinação orçamentária semelhante àquela dada pela União às rendas deve ser observada por Estados e Municípios, em sua repartição.

É o que entendemos propiciar equilíbrio nas relações federativas e unidade no sistema tributário, em relação ao tema proposto.


5. A CIDE – Combustíveis: um caso concreto

Arquitetadas as formulações teóricas acima, passamos ao exame e ao entendimento que julgamos aplicável à repartição da CIDE-Combustíveis com Estados, Distrito Federal e Municípios.

5.1 Aspecto material de incidência da CIDE- Combustíveis e suas finalidades

A CIDE-Combustíveis, de que até aqui se tem falado, é na verdade a contribuição interventiva em domínio econômico incidente sobre a importação e a comercialização de petróleo e seus derivados. Além do art. 149, antes citado, a instituição de referida contribuição se pautou no programa traçado pela Emenda Constitucional n° 33, de 11/11/2001, que inseriu o seguinte parágrafo 4° ao art. 177 da Carta:

"§ 4º A lei que instituir contribuição de intervenção no domínio econômico relativa às atividades de importação ou comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível deverá atender aos seguintes requisitos:

I - a alíquota da contribuição poderá ser:

a) diferenciada por produto ou uso;

b)reduzida e restabelecida por ato do Poder Executivo, não se lhe aplicando o disposto no art. 150,III, b;

II - os recursos arrecadados serão destinados:

a) ao pagamento de subsídios a preços ou transporte de álcool combustível, gás natural e seus derivados e derivados de petróleo;

b) ao financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria do petróleo e do gás;

c) ao financiamento de programas de infra-estrutura de transportes."

Ao instituir a contribuição com fundamento nesse artigo, a Lei n° 10.336, de 19/12/2001, elegeu como aspecto material de incidência da CIDE (art. 3°) a realização de operações, pelos contribuintes referidos no art. 2° (produtor, formulador e importador, pessoa física ou jurídica), de importação e de comercialização no mercado interno de gasolinas e suas correntes; diesel e suas correntes; querosene de aviação e outros querosenes; óleos combustíveis (fuel-oil); gás liqüefeito de petróleo, inclusive o derivado de gás natural e de nafta; e álcool etílico combustível.

Ainda, secundou a Constituição, lançando no art. 1°, § 1°, incisos I, II e III, as finalidades pretendidas com sua incidência, tal como consta nas alíneas do texto constitucional acima.

À luz dos comentários sobre o conteúdo finalístico das contribuições interventivas, esboçados no item 3.1, vê-se que o legislador da CIDE-Combustíveis previu as duas hipóteses possíveis de intervenção no domínio econômico para essa exação. De um lado, a finalidade da CIDE-Combustíveis é o próprio instrumento da intervenção, ou seja, reduzir o preço dos combustíveis (inciso I). De outro lado, a cobrança da CIDE-Combustíveis com a finalidade de financiar projetos ambientais relacionados com a indústria do petróleo e do gás e programas de infra-estrutura de transportes (incisos II e III) dá um acento de parafiscalidade em sua instituição, no sentido de custear encargos de determinadas atividades estatais [14].

5.2 Emenda Constitucional n° 42/03: discriminação do produto da arrecadação da CIDE-Combustíveis

Conforme antes mencionado, a Reforma Tributária de 2003 inovou as práticas de nosso Federalismo Fiscal Coorporativo ao determinar a repartição, com Estados, Municípios e o Distrito Federal, do produto da arrecadação de contribuição interventiva. A discriminação do produto arrecadado da CIDE-Combustíveis veio pela seguinte redação, acrescentada ao art. 159 da Constituição:

"Art. 159. A União entregará:

(...)

III - do produto da arrecadação da contribuição de intervenção no domínio econômico prevista no art. 177, § 4º, vinte e cinco por cento para os Estados e o Distrito Federal, distribuídos na forma da lei, observada a destinação a que refere o inciso II, c, do referido parágrafo.

(...)

§ 4º Do montante de recursos de que trata o inciso III que cabe a cada Estado, vinte e cinco por cento serão destinados aos seus Municípios, na forma da lei a que se refere o mencionado inciso."

O aspecto relevante a destacar é que o inciso III supra, acrescido ao art. 159, previu que a fatia de vinte e cinco por cento [15] destinada aos Estados deveria observar a destinação a que se refere o inciso II, alínea "c", do art. 177, § 4°, também da Carta. Ou seja: financiamentos de programas de infra-estrutura de transportes pelos Estados.

Ora, na repartição da CIDE-Combustíveis com Estados acabou-se vinculando as transferências daí oriundas a uma das três finalidades previstas na instituição dessa contribuição. Trata-se justamente, o financiamento de programas de infra-estrutura de transportes, de intervenção na qual a finalidade da contribuição é a realização de alguma atividade material pelo Estado.

Reparando nas finalidades da CIDE-Combustíveis, vê-se que, por questões práticas, a destinação dos recursos repartidos da CIDE-Combustíveis, prevista na Emenda para Estados e Distrito Federal, não poderia ser outra. Tanto o subsídio dos preços de combustíveis como o financiamento de projetos ambientais relacionados à indústria do petróleo e do gás (esta, por envolver projetos coordenados em âmbito nacional) são práticas mais afeitas à ingerência da União Federal. Os Estados e o Distrito Federal, portanto, ao receberem os recursos da CIDE-Combustíveis, observariam apenas uma de suas finalidades constitucionalmente previstas, qual seja, a de financiamento de programas de infra-estrutura de transportes.

Quanto aos Municípios e à parcela de recursos a que fazem jus na forma do § 4° introduzido no art. 159, a Emenda Constitucional n° 42/03 não consignou, literalmente, o destino que deverão dar a essa transferência. Analisaremos essa questão a seguir, logo após resumirmos os critérios normativos, supervenientes à Emenda, que vieram a disciplinar a partilha desses recursos, bem como as dificuldades que esses critérios têm suscitado.

5.3 Normas de regulamentação da partilha da CIDE-Combustíveis e alguns aspectos controvertidos

A Medida Provisória n° 161, de 21/01/2004 – até o momento, em discussão no Senado Federal-, busca regulamentar a repartição da CIDE-Combustíveis com os Estados e o Distrito Federal. Entre suas disposições que mais de perto interessam aos nossos propósitos, estão as seguintes:

"Art. 1º-A. A União entregará aos Estados e ao Distrito Federal, para serem aplicados, obrigatoriamente, no financiamento de programas de infra-estrutura de transportes, vinte e cinco por cento do total dos recursos arrecadados a título da contribuição de que trata o art. 1º, inclusive os respectivos adicionais, juros e multas moratórias cobrados administrativa ou judicialmente, deduzidos os valores previstos no art. 8º desta Lei e a parcela desvinculada nos termos do art. 76 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

§ 1º Do montante dos recursos que cabe a cada Estado, vinte e cinco por cento serão destinados aos seus Municípios, nas formas e condições estabelecidas em lei federal.

(...)

§ 6º Os Estados e o Distrito Federal deverão encaminhar ao Ministério dos Transportes, até o último dia útil de outubro de cada ano, proposta de programa de trabalho para utilização dos recursos mencionados no caput deste artigo, a serem recebidos no exercício subseqüente, contendo:

I - o detalhamento dos projetos de infra-estrutura de transportes e respectivos custos; e

II - os cronogramas financeiros correlatos.

§ 7º Caberá ao Ministério dos Transportes:

I - aprovar os programas de trabalho referidos no § 6º e publicar os respectivos atos no Diário Oficial da União até o último dia de dezembro de cada ano;

II - disciplinar a proposição de alterações dos programas de trabalho aprovados na forma do inciso I por parte dos Estados e do Distrito Federal;

III - manifestar-se, de forma conclusiva, sobre as propostas de alteração referidas no inciso II, no prazo máximo de sessenta dias após o recebimento.

(..)

§ 9º Os saques de recursos nas contas vinculadas referidas no § 2º deste artigo ficam condicionados à inclusão das receitas e à previsão das despesas na lei orçamentária estadual ou do Distrito Federal, e limitados ao pagamento das despesas constantes dos programas de trabalho aprovados pelo Ministério dos Transportes;

Do disposto na Medida, e em função do comentado até aqui, sobreleva notar dois aspectos.

Um, que o percentual destinado pelos Estados a seus Municípios se darão nas formas e condições estabelecidas em lei federal (parágrafo 1°).

Dois, que a parcela da CIDE-Combustíveis que a União passa, a partir de 2004, a entregar aos Estados e o Distrito Federal ficou condicionada, sob pena de impossibilidade de saque dos valores, à apresentação por aqueles de projetos de aplicação dos recursos ao Ministério dos Transportes. É o que se infere dos parágrafos 6°, 7° e 9°. A condição foi estipulada em virtude da finalidade obrigatória de aplicação dos recursos transferidos da CIDE pelos Estados em programas de infra-estrutura de transportes.

Com base nesses dispositivos, ainda não convertidos em lei, têm-se travado discussões de jaez federativo.

De um lado, os Municípios que serão beneficiados com os repasses da CIDE pelos Estados aguardam a edição da lei federal, definindo as formas e condições desses repasses. Como a Emenda Constitucional n° 42/03 não vinculou, literalmente, a aplicação desses recursos ao financiamento de programas de infra-estrutura de transportes, assim como fez em relação aos Estados, os Municípios esperam obter o aval da lei federal para utilizarem, sem vinculação orçamentária, os montantes da CIDE-Combustíveis.

Os Estados, por sua vez, contestam as exigências do Governo Federal para liberação dos valores. Alegam ser incabível a exigência de apresentação de dados e informações relativos aos programas de infra-estrutura de transportes a que se vinculariam os recursos da CIDE transferida.

Analisaremos ambas as situações à luz dos argumentos mencionados no item 4 acima.

5.4 Análise da repartição da CIDE-Combustíveis à luz da isonomia federativa e da unidade do sistema tributário

Conforme comentado até aqui, e a partir das premissas aduzidas no item 4 acima, a vinculação obrigatória da repartição de parcela da CIDE-Combustíveis arrecadada pela União, com Estados e Distrito Federal, é legítima. A finalidade dessa contribuição é intervir no domínio econômico do petróleo e derivados para regular seus preços e, também, custear atividades estatais, relacionadas ao meio-ambiente e à infra-estrutura de transportes. A despeito de os contribuintes da exação discutirem essas destinações [16], o que não pretendemos debater, já apontamos que a regulação dos preços desse mercado, bem como a coordenação de programas nacionais relacionados ao meio ambiente atingido, são finalidades que só poderiam ser desincumbidas a contento pela União Federal.

Então, na repartição da contribuição, resta às demais unidades federadas (Estados, Distrito Federal e Municípios) a observância ao financiamento de projetos de infra-estrutura de transportes.

Se bem que Estados e Municípios possam ter outras prioridades maiores que o financiamento da infra-estrutura de transportes, não se pode utilizar essa justificativa pontual como argumento, em detrimento da manutenção da isonomia federativa e da coesão da instituição da contribuição de finalidade interventiva, aspectos já comentados.

Então, a destinação veiculada pela Emenda nº 42/03 na repartição da CIDE com Estados e Distrito Federal, é conseqüência natural daquela realidade jurídica. A exigência de apresentação de projetos pelos Estados e Distrito Federal ao Ministério dos Transportes para aplicação desses recursos, como consta da MP nº 161/04, não deve ter o condão de impedir a transferência dos recursos. Trata-se de norma de disciplina e controle da repartição proposta, segundo as finalidades e destinação a ela inerentes.

Da mesma forma, estendendo-se a análise aos Municípios, ainda que a Emenda nº 42/03 não tenha estabelecido literalmente essa destinação, a lei federal que a disciplinar não deveria, em tese, discrepar. Também os Municípios, ao receberem dos respectivos Estados parcela dos repasses da CIDE-Combustíveis, deveriam aplicá-la em programas de financiamento de infra-estrutura de transportes [17].

O art. 6º da Lei nº 10.636/01 cuida dos objetivos essenciais desses programas:

"Art. 6º A aplicação dos recursos da Cide nos programas de infra-estrutura de transportes terá como objetivos essenciais a redução do consumo de combustíveis automotivos, o atendimento mais econômico da demanda de transporte de pessoas e bens, a segurança e o conforto dos usuários, a diminuição do tempo de deslocamento dos usuários do transporte público coletivo, a melhoria da qualidade de vida da população, a redução das deseconomias dos centros urbanos e a menor participação dos fretes e dos custos portuários e de outros terminais na composição final dos preços dos produtos de consumo interno e de exportação."

Sem dúvida, as demandas de Municípios menores na área de transportes não serão tão intensas quanto as daqueles situados em centros urbanos. No entanto, alternativas de melhoria em vias públicas, por exemplo, visando ao incremento da qualidade de vida da população, são compatíveis com os objetivos essenciais delineados na lei.


6. Conclusões

Essas as linhas de entendimento que reputamos as mais justificadas para interpretar, de forma geral, a repartição de rendas tributárias oriundas de contribuições interventivas.

De forma específica, entendemos serem as proposições lançadas acima as mais adequadas ao caso da repartição da CIDE-Combustíveis com Estados, Distrito Federal e Municípios. Não fosse assim, haveria um desequilíbrio na isonomia da organização federativa e no sistema que rege a instituição de contribuições interventivas. Daí porque, quando analisados os aspectos qualitativos concernentes à discriminação pelo produto das referidas contribuições, os valores constitucionais, acima de todos, devem ser sopesados.


Notas

1 A concepção do Federalismo Fiscal e seus reflexos no sistema constitucional brasileiro. In: Direito constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides, São Paulo, Malheiros, 2001.

2O Estado Federal e as suas novas perspectivas. São Paulo : Max Limonad, 1960.

3Curso de Direito Constitucional Tributário. São Paulo : Malheiros, 2003.

4 A despeito disso, as normas de "Repartição de Rendas Tributárias" que colimam a discriminação pelo produto foram incluídas, em nossa Constituição, no capítulo que trata do Sistema Tributário Nacional.

5 Vê-se a natureza não-vinculada do imposto em sua definição no CTN: "Art. 16. Imposto é o tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal específica, relativa ao contribuinte." (grifamos)

6 Filiamo-nos à corrente que considera as contribuições interventivas, juntamente com as demais arroladas no art. 149, da Carta, como espécies do grupo contribuições especiais.

7 PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio. Contribuições de intervenção no domínio econômico. São Paulo : Dialética, 2002.

8 BELLAN, Daniel Vitor. Contribuições de intervenção no domínio econômico. In: Revista Dialética de Direito Tributário nº 78, São Paulo, Dialética.

9 DIAS, Juarez Sanfelice. A contribuição de intervenção incidente sobre o setor petrolífero e a destinação prevista na Lei federal nº 10.636, de 30 de dezembro de 2002. In: Revista Dialética de Direito Tributário nº 90, São Paulo, Dialética.

10 CASSONE, Vittorio. Direito tributário. São Paulo : Atlas, 1997.

11 ob. cit.

12 ob. cit.

13 ob. cit.

14 Não é nosso intento discutir sobre a legitimidade das finalidades traçadas em função do princípio da proporcionalidade, ou seja, se é verdade que os objetivos traçados nos incisos II e III virão a beneficiar não apenas os contribuintes da CIDE, mas toda uma coletividade, cfe. Pimenta (2002, p. 120).

15 Até o momento não havia sido votada no Senado Federal, tendo sido concluída a votação na Câmara, de PEC prevendo o aumento do valor dos repasses aos Estados e Distrito Federal para vinte e nove por cento da CIDE-Combustíveis arrecadada pela União.

16 Veja-se nota 14 acima.

17 É, inclusive, como consta na página eletrônica da FAMURS – Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (www.famurs.com.br).

Sobre o autor
Heron Charneski

bacharel em Direito pela PUC/RS, bacharelando em Ciências Contábeis pela UFRGS, consultor tributário

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHARNESKI, Heron. Contribuições interventivas e discriminação de rendas pelo produto.: Uma análise federativa à luz da repartição da CIDE-combustíveis com Estados e Municípios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 315, 18 mai. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5260. Acesso em: 22 dez. 2024.

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