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Constituição e salário mínimo

Agenda 18/05/2004 às 00:00

Introdução

A idéia de interpretar as normas jurídicas de baixo para cima, ou seja, tendo-se a Constituição como último parâmetro a ser considerado, está ultrapassada. Hoje, os estudiosos já firmaram entendimento de que a Constituição deve ser o ponto de partida da interpretação, sendo esse um processo de criação do direito, com base no "ponto de vista da coletividade", buscando-se, assim, por meio de instituições oficiais, concretizar as alterações necessárias para se alcançar o bem-estar de todos. .

Tendo em conta essa perspectiva é que se pensou numa mirada sobre o sistema de normas constitucionais que se relacionam com o salário mínimo, evidentemente, sem pretensão de esgotar o assunto.


A idéia do "Mínimo Existencial"

Filósofos e juristas têm defendido a tese de que o Estado deve garantir o "mínimo existencial", ou seja, os direitos básicos das pessoas, sem intervenção para além desse piso.

Dizem, ainda, que esse mínimo depende da avaliação do binômio necessidade/capacidade, não apenas do provedor, mas, também, daqueles a quem se prometeu a implementação da satisfação daquelas necessidades.

Entretanto, há crítica sobre a viabilidade dessa idéia, tendo em conta que deixa de considerar o fator político na configuração da necessidade e da capacidade referidas, o que faz os dispositivos legais relacionados a esse mínimo vital serem meras formalidades ou apenas concessões ideológicas burguesas.

A história brasileira evidencia que essa crítica não é despropositada, sendo certo que a população do país quer melhorias, as quais só podem ser alcançadas se houver mudança de postura, não apenas dos políticos, mas, inclusive, dos operadores do direito, primando-se pelo princípio do acesso à justiça justa, da eficiência administrativa entre outros.


Miradas sobre o Salário Mínimo no Sistema Constitucional

O piso salarial brasileiro comum deveria ser suficiente para a satisfação dos interesses previstos na Carta Magna (art. 6º, IV).

Entretanto, é preciso dizer que o menor valor dos salários a ser pago aos empregados e servidores públicos da ativa ou aos aposentados não tem a finalidade de conferir mais que o necessário à manutenção de uma vida digna.

O problema é que o estabelecimento desse valor não significa nada se não houver o comprometimento da iniciativa privada com a justiça social e o princípio da solidariedade, já que podem-se repassar os aumentos para os preços, violando-se, assim, ademais, por via reflexa, preceito que impede a vinculação do salário mínimo para fins que comprometam a economia (art. 6º, IV, da CF/88, parte final), bem como a norma que prescreve a proteção do consumidor (art. 170, V, da CF/88).

Deveria causar constrangimento ao governo, por outro lado, a visão de que o estabelecimento de um valor adequado ao salário mínimo não é prioridade. Antes disso está o equilíbrio das contas públicas, nos termos pactuados com o FMI.

Na verdade, o desconforto também deveria ser sentido pelos empresários, pois utilizam-se discursos que implicam, ao menos ao bom observador, em confissão da existência de um contigente enorme de pessoas, também no setor privado, ganhando esse piso salarial ou algo próximo disso.

É bom lembrar que aqueles que ganham o equivalente a algo próximo do salário mínimo exigiriam aumento também, se pudessem (poder de fato), se o novo piso alcançasse patamar próximo aos seus salários. E, em termos substanciais, estariam respaldados pelo princípio da irredutibilidade, conforme previsão do art. 7º, VI, da Carta Magna, bem como nas normas que visam limitar o poder econômico (ou melhor, que prescrevem metas para o uso desse poder para além da obtenção de lucros).

Então, falta tratar os trabalhadores como pessoa, o que cria impedimento para o desenvolvimento deles (em sentido amplo), esquecendo-se que a livre iniciativa e a concorrência (e a contenção do endividamento ordenado pelo FMI) devem ter como limite (ou meta) a dignidade humana.

É por isso que se diz que a política da implantação do "mínimo existencial" não cria, necessariamente, a liberdade (art. 5º, da CF) ou a autonomia de vontade prometida pelos seus defensores (autonomia essa que seria requisito para a implantação de um "direito justo", se é que existe outro!).

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Portanto, é preciso mudar e pensar o direito de forma democrática, primando-se por um processo de igualização (o que é diferente de homogeneização), erradicando-se a pobreza pela realização da função social da propriedade (da empresa), nos moldes do disposto no art. 5º, XIII e no art 170, III, da CF/88, tendo em conta um contexto de diálogo de diferentes (pluralismo político, art. 1º, V), mas visando/gerando o bem-estar de todos (princípio da solidariedade).

Essa mudança implica na aceitação das diferenças no seio social, desde que não haja comprometimento da coletividade, ou seja, desde que sejam justificáveis. Melhor dizendo: as diferenças não devem implicar em situação que propicie o abuso do poder econômico, com desprezo ao primado do trabalho, às metas do bem-estar e justiça sociais (art. 193), erradicação da pobreza (art. 3º), etc.

Ou seja, o "mínimo existencial" enquanto entidade formal não cria solução ao problema, sendo certo que sua definição não deixa de ser uma questão política (embora se reconheça progresso normativo constitucional no que se refere ao quantitativo das verbas que se devem destinar à saúde- § 2º, art, 198 e à educação- art. 212, da CF).

Poder-se-ia dizer que no caso do salário mínimo existem parâmetros na própria Carta Magna para a fixação de valor adequado, o que é verdade (há quem entenda que o qualitativo do "mínimo vital" estaria no caput do art. 194 da CF/88), mas, na prática, a coisa não sai do papel, o que reforça o que se disse acima.

Entretanto, seria simplificar demais colocar apenas duas alternativas para a solução do problema, ou seja, dizer que basta decidir se é preciso dar prioridade ao social ou antes ao econômico é ingenuidade, pois há, no caso, um sinergismo (ou deveria haver).

De todo modo, como se disse, deve-se considerar que a dignidade da pessoa humana não pode ser arranhada, embora se reconheça que se trata de conceito dinâmico, com o que a definição das necessidades básicas e de como essas devem ser satisfeitas só se pode realizar indo além das diretrizes constitucionais, considerando-se, pois, dados empíricos, ou seja, interpretando-se as normas com abertura para a realidade vigente no seio social, para melhorar as coisas (implantação do referido diálogo dos diferentes, realizando-se, pois, a solidariedade, com apoio no pluralismo político – este previsto no art. 1ºV da CF).

Em síntese: é preciso aperfeiçoar a relação capital/trabalho, sempre tendo em conta que no centro de tudo está o homem, mas o homem que convive (a constituição fala em dignidade da pessoa humana e, não, dos indivíduos. Fala, ainda, de solidariedade), devendo-se lembrar, para implementar o referido aperfeiçoamento, também, do princípio da soberania nacional, expresso no art. 1º, I da CF e, da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais (art. 4º, II).

O direito deve servir ao homem e, não, o contrário, já diziam os romanos. E é isso que significam os princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º,III, da CF/88) e da solidariedade (art. 3º, I, da CF/88).

Importa dizer que o valor do salário mínimo se relaciona com prestações trabalhistas (art. 6, IV), previdenciárias (§ 2º, do art. 201), bem como benefícios devidos a idosos e deficientes (art. 203, V, da CF), entre outros.

O êxito, nesse caso (dimensão adequado do valor), saliente-se, não se taxa pelo cumprimento de metas exógenas e isso deve ser pontuado aos que desejam ver reconhecida a legitimidade da atuação governamental vigente, no que tange a essa questão política, de magnitude insuspeita, e da qual se poderá aferir a realização do princípio da eficiência e moralidade administrativa (art. 37 da CF/88) e da democracia representativa, sendo certo que a intangibilidade do preceito constitucional que dispõe sobre salário mínimo pode ser aferida pelo STF, desde que proposta a ação direta (o mandado de injunção é de duvidoso cabimento no caso, pois questiona-se o valor do que já existe regulamentado), sendo certo que em caso de procedência não pode haver determinação de outro valor no julgado, mas pode-se dar efeito à decisão apenas a partir da vigência de outra lei sobre o tema, que determinasse valores constitucionalmente adequados, nos termos de interpretação a ser consignada no acórdão (isso representaria, ao menos, uma forma de sanção política ao executivo).


Algumas Conclusões

A idéia do mínimo existencial deixa oculta a questão política ligada ao estabelecimento das necessidades e capacidades dos envolvidos na relação capital/trabalho.

A fixação do valor do salário mínimo deve obedecer o princípio da dignidade da pessoa humana, entre outros derivados ou não dele (solidariedade, erradicação da pobreza, prevalência dos direitos fundamentais nas relações internacionais).

As ações do governo atual apenas se mostrarão legitima na medida em que implicarem em alteração do estado de pobreza vigente no seio social, situação precária essa reconhecida no Texto Magno e que precisa mudar, o que exige alteração não só da postura dos políticos, mas, também, dos operadores do direito no sentido da realização dos anseios constitucionais.

A interpretação das normas da Constituição, tendo em conta essa realidade vigente, é condição para a implementação das mudanças necessárias para se chegar, por um dialogo consensual possível, a uma sociedade mais justa e solidária(respeito e atuação dos diferentes em prol dos interesses recíprocos), na qual tenha vigência a dignidade da pessoa humana e o bem-estar de todos.

O valor do salário mínimo se relaciona com prestações de diversas naturezas e a sua fixação adequado irá ao encontro dos princípios da moralidade e eficiência administrativa e democracia representativa, sendo certo que o desrespeito das normas constitucionais podem ser objeto de apreciação judicial, no caso do salário mínimo, por meio de ação direta (STF), embora, em caso de procedência, não seja possível determinar outro valor para o referido piso de contraprestação ao trabalho, podendo-se, entretanto, dar efeito ao julgado apenas depois de vigente outra lei sobre o tema, em conformidade com a interpretação consignada no acórdão.


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Sobre o autor
Helio Estellita Herkenhoff Filho

analista judiciário do TRT da 17ª Região, ex-professor da Universidade Federal do Espírito Santo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HERKENHOFF FILHO, Helio Estellita. Constituição e salário mínimo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 315, 18 mai. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5284. Acesso em: 23 dez. 2024.

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