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O Direito Penal Constitucional democrático diante de tendências autoritárias.

Uma abordagem crítica diante do conceito de modernidade líquida.

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Agenda 19/10/2016 às 20:43

O presente trabalho trata da questão do direito penal e processual penal sobre a perspectiva de elementos da figura do inimigo e direito penal do inimigo.

RESUMO

 

 

O presente trabalho trata da questão do direito penal e processual penal sobre a perspectiva de transformações do direito penal e direito processual penal contemporâneos numa situação de permanente conflito entre uma concepção de um direito penal e processual penal constitucionais e liberais, contrapostos à tradição pátria de um direito processual penal inquisitorial e autoritário, na perspectiva de conceitos de sociologia que definem a denominada modernidade líquida. Em paralelo busca-se analisar a figura do inimigo no direito penal, numa análise de riscos de inserção de elementos de tal concepção de direito de exceção no direito penal e processual penal brasileiro.

 

Palavras-Chave: Direito Penal, Direito Processual Penal, Autoritarismo Penal, Direito Penal do Inimigo, Modernidade Líquida.

 

 

SUMÁRIO

 

1. Introdução. 2. A questão do bem jurídico; 3. O conceito de modernidade líquida e suas possíveis consequências sobre o direito penal e processual penal; 4. O inimigo no direito penal e as utilidades de sua reinvenção; 5. O papel dos meios de comunicação, as novas mídias e a possibilidade concreta de um certo autoritarismo cool; 6. O papel das garantias processuais penais na perspectiva da força normativa da Constituição; 7. A Jurisprudência dos Tribunais Superiores como indicador do estado evolutivo do processo penal no país; Considerações Finais; Referências.

 

 

INTRODUÇÃO  

 

   Tanto o direito penal, quanto, de modo mais intenso, o direito processual penal, vêm a ser, dentre os ramos do Direito, aqueles que mais sofrem influência de contextos sociológicos imediatos, na perspectiva de se tornarem alvos de vulneração da técnica jurídica científica frente às pressões imediatas de interesses de grupos, particularmente os grupos dominantes na política, no que considera-se, no presente estudo, indissociável do interesse de grupos dominantes a chamada opinião pública.

   Pode se ter como fato de que o direito penal e processual penal são ramos do direito objeto, particularmente após o advento do iluminismo, de rigorosas investigações científicas, de esforços acadêmicos buscando dar a estes ramos do direito um cariz científico, de uma impessoalidade e de uma dotação de objetividade tão mais próximas quanto possível daquelas que se têm como regra, ao menos em senso comum, nas ciências naturais.

   Simultaneamente, contudo, há questões paralelas que naturalmente afetam ao direito penal e processual penal, e dizem respeito a urgências postas à sociedade, algumas reais de fato, outras artificiais, objeto da política e suscetíveis de reverberação frente à opinião pública por instrumentos de comunicação de massa.

   O discurso secular, que se firma como discurso oficial, de o direito penal ser a ultima ratio, o instrumento mais radical, reservado para aplicação aos casos em que todos os outros ramos do direito falham em possibilidade de êxito de manter íntegra a tessitura social, a estrutura mínima de uma sociedade articulada, o que ganhou como que um jargão a denominação de paz social, como alcançar este objetivo tem sido objeto de controvérsias, de mutações históricas.

   Inegável a racionalidade do discurso de que a função do direito penal é garantir a proteção de determinados bens jurídicos, de objetos portadores de sentido fundamental para ordem social, em tal dimensão quaisquer lesões a estes teriam, de alguma forma, o condão de abalar as estruturas sociais. Seriam direitos fundamentais, como o direito à vida, à integridade pessoal, à liberdade, à propriedade, e outros tantos quanto extraídos da experiência empírica e que se mostrem merecedores de tal proteção.

Os diferentes modos como pode se interpretar, se manipular, até mesmo desvirtuar os conceitos de bem jurídico protegido e os métodos para sua proteção através de normas processuais, a ductilidade dos objetos e normas de proteção é o que vem a ser o que será objeto de análise neste breve estudo.

 

 

1. A questão do bem jurídico

 

   A definição de bem jurídico e sua centralidade dentro do direito penal, consequentemente dentro, também, do escopo do direito processual penal, vem a ser algo longe de estar em situação de abarcar unanimidade. Uma das críticas que pode se fazer ao conceito de bem jurídico é sua fluidez, um alto grau de imprecisão, e sua mutabilidade ao longo da história, quer em perspectiva de maior prazo, quer em episódios de curto prazo. Não há de se perder de perspectiva que a dogmática penal brasileira é ainda fundada no finalismo, o que não afasta a relevância da questão do bem do jurídico protegido.

Em trabalho dedicado ao tema, Claus Roxin[1] (2013, p. 16-20) procura delimitar, atrelar o conceito de bem jurídico aos direitos e garantias fundamentais dentro da perspectiva de um estado democrático de direito. Estes direitos e garantias fundamentais estariam postos como elementos essenciais, mais que mínimos, ao objetivo de se garantir entre os cidadãos uma coexistência pacífica, em condições de liberdade, sob o pálio da proteção de todos os direitos humanos. Nesta perspectiva não apenas os direitos e garantias fundamentais de primeira geração, ou dimensão, como direito à vida, integridade pessoal, liberdades individuais e propriedade, como também direitos de segunda geração, ou dimensão, como direitos sociais e econômicos, incluindo direito a uma ordem tributária justa, a proteção individual frente à ordem econômica, colocando sob proteção na condição de bem jurídico uma ordem tributária justa, a proteção dos direitos sociais, e, numa perspectiva de direitos e garantias fundamentais de terceira geração ou dimensão, direitos a um meio ambiente saudável e equilibrado, a proteção ao patrimônio histórico e cultural da sociedade. Tal perspectiva abrange para além dos bens jurídicos individuais, abrangendo bens jurídicos coletivos, compartilhados por toda sociedade.

O conceito de bem jurídico, embora as acusações de ductilidade, vagueza, volatilidade, quando atrelado ao conceito e esfera de proteção aos direitos e garantias fundamentais, tem, entre outras, uma grande vantagem em permitir a delimitação de parâmetros mais precisos, permitindo delineamento de parâmetros à sociedade, e de modo particular ao legislador, principalmente em sistemas político jurídicos onde se exerça controle de constitucionalidade das normas, inclusive das normas penais e processuais penais. Pode-se ser ventilado, a exemplo, o dever de o cidadão pagar impostos decorrente da proteção do bem jurídico da coletividade, de todos terem direito a uma ordem social justa, que garanta através da proteção mínima dos direitos à saúde e educação um equilíbrio social. Por outro lado quando se busca a penalização do não pagamento de impostos para além da proteção do bem-estar social, e passa a se buscar o enriquecimento do estado, haverá um limite ao legislador não permitindo que a lei penal tributária viabilize intento de tal natureza. O enriquecimento abusivo, logo ilícito, do estado não tem a condição de ser elevado a bem jurídico, logo não pode ser objeto de proteção pelo direito penal.

Não podem ser ignoradas críticas contundentes ao conceito de limitação de bem jurídico como objeto do direito penal, e por corolário do direito processual penal. Dentro de nossa abordagem as críticas que merecem ser observadas com mais cuidados são as tecidas pelo funcionalismo de Gunther Jakobs[2], e alguns de seus discípulos. Esta corrente do funcionalismo, em apertada síntese, defende, basicamente, que a função do direito penal, por meio da pena, seria manter a vigência e cognoscibilidade coletiva da norma em preservação ao modelo de contrato social.

A porosidade de tal concepção a elementos de cariz puramente moral, flutuante ao sabor de maiorias ocasionais em determinado momento político e histórico, indica elementos de fragilidade lógica e jurídica, em termos de volatilidade, mutabilidade e insegurança social, muito maiores que quaisquer críticas que tente se tecer ao conceito de bem jurídico. O funcionalismo de Jakobs[3] e seguidores defende que a vigência da norma seria o próprio bem jurídico. Neste viés não pode ser desconsiderado que o ato de questionar a justeza e adequação ou injustiça e inadequação da norma poderia ser visto como uma forma de ameaça a própria norma, logo, em grau mais extremado, como ameaça ou lesão ao dito bem jurídico dessa concepção do direito penal, com reflexos no direito processual penal.

A oposição de duas concepções de bem jurídico, uma entendendo o bem jurídico como inextrincável à necessidade da defesa dos direitos e garantias fundamentais os mais universalmente aceitos, isto contraposto à visão de que a proteção da vigência da norma seria o bem jurídico em si, é questão que merece uma análise frente ao conceito sociológico de modernidade líquida.

 

 

2. O conceito de modernidade líquida e suas possíveis consequências sobre o direito penal e processual penal

 

O conceito de modernidade líquida é diretamente relacionado a Zygmunt Bauman[4] (2001, passim), no que este procura, ao longo de várias páginas, não apenas descrever o fenômeno social, como lhe dar uma concretude conceitual. Pode-se apenas apresentar um breve resumo que possa dar compreensão do conceito, e, por conseguinte, a percepção de sua pertinência enquanto fenômeno social contemporâneo à realidade do direito penal e processual penal. O conceito de modernidade líquida viria da mutabilidade, da combinação do fenômeno da mutabilidade de estruturas sociais com a velocidade, o modo rápido e fácil com que as estruturas da sociedade são passiveis de modificação, de reconfiguração nos tempos contemporâneos.

A metáfora de líquido veio ser escolhida pelas propriedades físicas deste estado da matéria, as características dos fluídos, a capacidade de mudança rápida de forma a qualquer tensão externa. Em oposição ao conceito de sólidos ou ligas, que guardam capacidades como elasticidade, submetidas a algum grau de pressão ou torção, tendem a retornar à sua forma anterior, os fluídos, incluindo os líquidos, não mantém suas formas originais com facilidade, movem-se facilmente, vazam, transbordam, se dissolvem uns nos outros com facilidade.

Para se perceber mais claramente o divisor de águas de uma modernidade sólida, presente até a algumas décadas, e a modernidade líquida, a metodologia mais adequada é a comparação. Bauman[5](2001, p. 25-69, passim) discorre que antes havia símbolos sólidos e fixos no local e no tempo, como os grandes prédios da indústria. A fábrica não tão somente enquanto estrutura física, mas como símbolo da vinculação forçada entre capital e trabalho. O capital industrial dependia da força de trabalho, as tensões tinham de ser administradas para manter o corpo produtivo da economia funcional. Interesses patronais contrapostos aos confrontos sindicais, greves, luta por direitos trabalhistas, subsistiam por que a estrutura necessitava retornar à forma original para se manter funcional.

Ao longo dos anos, particularmente se acelerando a partir dos anos oitenta do século XX, o capital financeiro vai ganhando prevalência sobre o capital oriundo da indústria. A fábrica diminuiu, as linhas de montagem deixam de ser monolíticas. As fábricas diminuem de tamanho e se espalham pelo mundo em busca de locais de mão de obra mais barata e desprotegida. O “capitalismo pesado” vinculado a imagem da indústria é substituído pelo “capitalismo leve”, vinculado ao capital financeiro volátil.

Pode se buscar num país central a proteção ao registro da marca, do software, do desenho industrial, e ao mesmo tempo pode se espalhar fábricas periféricas, nenhuma manufaturando mais que uma pequena parte do produto complexo, a ser montado em outra fábrica em outro local, todas estruturas móveis, facilmente passíveis de desfazimento e de desmonte, e inviabilizando uma engenheira reversa do todo do produto manufaturado.

Regiões antes prósperas em países centrais, tornam-se “cinturões de ferrugem”, locais de grandes fábricas abandonadas, grandes prédios vazios, no que os métodos de produção se modificaram, deixando legiões de desempregados sem perspectivas de novas colocações em postos de trabalhos minimamente estáveis. O capital financeiro determina, conforme as condições que encontrem mais favoráveis, os locais onde estruturas de produção cada vez menores, mais leves, desmontáveis e transportáveis, serão provisoriamente instaladas.

Diante desta mutabilidade os governos poderiam antes alegar a perplexidade, atualmente estão cada vez mais frágeis, inclusive os governos de países centrais, mais vulneráveis aos ataques especulativos, às grandes fugas de capital, e aos lobbies políticos. O capitalismo leve se caracteriza pela mobilidade. Mesmo que um governo local se apodere da fábrica, da estrutura física da fábrica, a tecnologia pode ser retirada do local à velocidade dos sinais eletromagnéticos, fluxo de dados protegido por criptografia, e transferida para outro país que ofereça condições mais favoráveis, com menos regulamentações e restrições estatais.           Igualmente importante é a capacidade de formação de pensamento coletivo na modernidade líquida. O marketing, a manipulação da informação, a formação de crenças. No capitalismo leve não há mais lugar para os sindicatos, o trabalho e o capital não tem mais vínculos de dependência de tempos anteriores.

A política é esvaziada por um sentimento de individualismo da população, contingentes populacionais de diversos países cada vez mais açodados pelo medo, começando pelo temor de acordar sem emprego, sem renda, de ser o último a saber da sua demissão pela notificação como fato consumado, ou que a unidade industrial ou o escritório, a empresa migrou para outro estado ou para outro país sem tantas “barreiras” ao capital, oferecendo melhores arranjos legais, melhor legislação, menos regulamentação e menos taxação de lucros, mão de obra mais barata, menos entraves, menos impostos, flexibilizações nas relações trabalhistas. Neste sentido merece uma leitura crítica a matéria jornalística de Cláudia Gasparini[6](2015).

O tema modernidade líquida é amplo, se sobrepõe, enquanto questão metodológica da sociologia contemporânea, a muitos aspectos da vida cotidiana. O que vem ser adequado, como necessário, trazer a este trabalho, é a mútua influência, inextrincável, entre capitalismo leve especulativo financeiro e o direito. O próprio conceito de estado democrático de direito acaba vulnerado diante da volatilidade do capital, do nomadismo dos meios de produção, e da intrincada e íntima relação entre capital e grandes veículos de mídias sociais. 

Por um lado a pressão da comunicação social de massa, o capitalismo líquido tem seu centro não na produção, e sim no consumo. Para gerar consumo todos os meios são válidos, incluindo técnicas de psicologia cognitiva e neuromarketing para gerar algo mais que desejo, o mecanismo do desejo é lento, é necessário gerar quereres, o impulso de querer, de buscar realizar sem reflexão, a princípio ato de consumo.

Domínios que há poucas décadas pareciam solidamente controlados pelos estados nacionais, como segurança pública e prestação jurisdicional, vão cedendo a pressões de privatização, a segurança privada, a arbitragem, em alguns países compulsória até em relações de consumo (João Ozório Melo, 2015)[7]. Não pode se alegar fora de expectativas que haja pressões para conformação de um direito penal que sirva a essa nova conformação política e social, inclusive como instrumento de contenção de seguimentos sociais.

 

 

3. O inimigo no direito penal e as utilidades de sua reinvenção

 

Deve este tópico ser iniciado e concluído com referências a Günther Jakobs[8], jurista alemão que partindo de críticas ao funcionalismo teleológico de Claus Roxin, desenvolveu a estrutura teórica do dito funcionalismo sistêmico, onde o direito, incluindo o direito penal, seria parte de um conjunto de sistemas e subsistemas fechados e autopoiéticos, cabendo ao direito penal garantir a própria integridade e subsistência do sistema (Paulo Cesar Busato, 2013, p. 241-247).

Jakobs (Günther Jakobs e Manuel Cancio Meliá, 2015, p. 21-70) parte de contraposições a teorias de Rosseau e Fitche, buscando mediações teóricas em conceitos desenvolvidos por Hobbes e Kant para justificar um “direito penal do inimigo” como válido. Profundamente coerente com seu funcionalismo sistêmico, desenvolve a tese de que para aquele qual há impossibilidade de resposta cognitiva, de adequação cognitiva à norma, seja o criminoso contumaz, o líder de organização criminosa, o terrorista, diante da impossibilidade de aceitação cognitiva da norma, tais indivíduos seriam uma ameaça real e permanente ao sistema jurídico pactuado por uma sociedade.

Fundando-se na alegação de uma natureza cognitiva motivacional de uma personalidade totalmente refratária à norma comum da sociedade, dos cidadãos, a aplicação de um direito fundado em direitos e garantias fundamentais seria negar a realidade fática de ameaça real à própria sociedade que valoriza tais direitos e garantias, defendendo-se a aplicação de normas de exceção, em favor da proteção da própria sociedade. Por esta abordagem penas exacerbadas, restrições de direitos de defesa, medidas de segurança diversas estariam justificadas por uma argumentação lógica de que a exceção e afastamento de garantias de proteção constitucionais estariam operando para garantir aos cidadãos estes direitos e garantias fundamentais ameaçadas por um inimigo que ameaçaria internamente a estrutura do próprio estado democrático dos cidadãos.

Pragmaticamente, esta abordagem, mesmo que de forma não tão sofisticada, é anterior a Kant e Hobbes, referenciais teóricos filosóficos de Jakobs. Duas questões não podem ficar fora de análise, a primeira questão, quem indica quem é de  fato o inimigo, e a segunda questão, qual a função do inimigo em eventuais projetos de direito penal e processual penal contemporâneo. No aspecto histórico Eugenio Raul Zaffaroni (2007, p. 11-27)[9] realiza uma profícua análise histórica que remonta ao direito romano antigo, sobre a figura do hostis.

Dentro da perspectiva do pragmatismo romano, tinha-se duas espécies de hostis. O hostis alienigena, não cidadão romano, sujeito à tênue proteção do jus gentium, o estrangeiro, o bárbaro, aquele que compartilhava de outros costumes, falava outra língua. O hostis judicatus, o inimigo assim declarado pelas autoridades, diferente do estrangeiro o hostis judicatus vinha a ser o dissidente que se tornava inimigo inconciliável ao poder político de plantão, então o Senado podia declara-lo não cidadão, reduzido a condição semelhante à do escravo, permitindo-se que lhe fossem aplicáveis todas as penas proibidas de serem aplicadas ao cidadão.

A figura do hostis pode ser considerada como algo que nunca deixou de existir no direito ocidental, até na própria filosofia, apenas atravessou longos períodos de forma dissimulada, matizada, vindo a ressuscitar em seu formato aberto nos anos 30, particularmente no ideário jurídico de Carl Schmitt. Francisco Muños Conde[10] (2012, p. 58-64, passim), analisando o tema do inimigo e direito penal, além de Carl Schmitt, faz referência a Mezger, e projetos de direito penal do social nacionalismo onde se ressuscitava, como norma jurídica vigente, a ideia de dois ou mais direitos penais, um para a generalidade dos cidadãos, e outro, ou mais de um único outro, para determinados grupos étnicos e determinados grupos de pessoas tidas de características especiais, como por exemplo a figura do “delinquente por tendência”. O aspecto de novo nas teorias de Günther Jakobs por certo vem a ser a abordagem pelo funcionalismo penal, onde coloca como bem jurídico a ser protegido a norma penal por si mesma. A própria norma seria, por si mesma, um bem jurídico.

Há alguns problemas de ordem prática, dos quais não se pode alegar ineditismo histórico. Um primeiro problema é quem teria a função de apontar, de forma inquestionável, quem seria o inimigo. Um problema fácil de ser resolvido em regimes totalitários e sólidos, como foi o nacional-socialismo, cabendo ao führer a última palavra sobre o direito e a indicação de quais grupos seriam os inimigos, bem como no comunismo, particularmente no período stalinista, onde o líder poderia indicar, sem questionamentos, quais seriam os “inimigos do povo”.

Em regime democrático quem indicaria aquele que teria o papel do inimigo é uma questão que merece análise, embora, visto a falta de distanciamento histórico, tenha um cunho bastante especulativo. Procurar-se-á enfrentar alguns aspectos desta questão adiante, em etapa e momento mais oportunos dentro da dinâmica do presente trabalho.

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Em períodos históricos passados, idade média, onde se havia estado, este estava totalmente fragmentado em quadro de descentralizado, a figura do inimigo não deixou de existir, estando mais ligada ao imaginário coletivo de determinadas comunidades, e totalmente fora de controle de uma autoridade central. Em obra de cunho de investigação histórica sobre grupos religiosos excluídos das sociedades, Carlo Ginzburg (2012 p. 48-77)[11] oferece preciosos relatos de processos judiciais da idade média, principalmente na França, registrados nas três primeiras décadas do século XIV, compila material que dentro de uma leitura que não é o objetivo da obra, permite, contudo, extrair elementos do inimigo no direito penal medieval. São relatados elementos de diversos julgamentos de judeus e leprosos, estes últimos acusados de em complô com os primeiros, recebendo daqueles dinheiro, cuja origem seriam os muçulmanos, recorrente a figura do sultão da Babilônia ou o vice-rei de Granada, estariam a incorrer em trama de envenenamento de poços, uso de pós para causar doenças e pestes, de modo a matar os cristãos sadios.

Como rito processual estava presente a tortura, a prova por meio de confissões obtidas por tortura, incluindo pagamento de multas, expropriação de bens, e, por fim, como figura recorrente, a morte na fogueira. Em comum os meios para obter resultados processuais previamente construídos nas mentes dos julgadores. Observa Ginzburg (2012, p. 82)[12] que embora duas bulas do papa Clemente VI, condenando a tese de conspiração, esta continuou, de igual modo os julgamentos, as provas obtidas por tortura, e esse quadro se espalhou da França para a Alemanha. Como plano de fundo interesses mercantis de eliminar o quase monopólio do crédito, e a eliminação de concorrência mercantil. E, como elemento comum, o envolvimento da população cristã abraçando a tese da conspiração do inimigo muçulmano financiando judeus para financiarem atos que hoje seriam equivalentes a de terrorismo a serem executados pelos leprosos.

Trazendo a questão a tempos atuais, no que diz respeito a cisões entre autoridades locais em tese subordinadas à autoridade central, parece um tanto prematuro ainda se falar de uma dissidência entre os tribunais locais e o Supremo Tribunal Federal em questões de direito penal. O Plenário do Supremo Tribunal Federal, em julgamento de Repercussão Geral, RE 641320 / RS,[13] definiu, em 2016 que o preso que faça jus a progressão de pena não pode ser mantido em regime mais gravoso por falta de recurso do estado, devendo, na falta de vaga, ser posto em liberdade antecipadamente ou cumprir o resto da pena em prisão domiciliar.

Não foi sem reação dos tribunais locais e do Ministério Público, no que pode, como exemplo de resistência dos juízes locais, ser observado a necessidade de forma dura o Ministro Celso de Mello, em decisão monocrática em medida cautelar, Rcl 24.951/SP[14] afirmar o efeito vinculante de decisões com repercussão geral, bem como a obrigatoriedade de se respeitar a Súmula Vinculante nº 56, que acabaram desrespeitados e desafiando recurso até o Supremo Tribunal Federal.  

Necessário fazer nova referência a Jakobs (Jakobs e Meliá, 2015, p. 47-70)[15], no aspecto que este, defendendo a institucionalização do “direito penal do inimigo”, afirma que vem a ser menos perigosa esta posição do que o entrelaçamento de todo o direito penal ordinário com elementos afetos ao típico Direito Penal do inimigo, o entrelaçamento do Direito Penal da sociedade com fragmentos de regulamentações próprias do “Direito Penal do Inimigo”.

Quanto a esta consideração, com tom de advertência, os fatos apontam que pode ser algo que se incorpora a rotina processual penal, visto recentíssima decisão da Grande Câmara da Corte Europeia de Direitos Humanos, Caso Ibrahin e outros[16], enfrentando a questão de se em situações de risco de terrorismo o estado poderia privar por algum tempo acusados de contato com advogados, incomunicáveis, tomou uma decisão que vai seguindo a uma tendência de ceder ao risco de emergências como permissivo de exceções.

Analisando diversos tratados internacionais e legislações de países como EUA e Canadá, em relação a três de quatro acusados de terrorismo, diante de lei de exceção de 2000, The Terrorism Act, mantidos sob interrogatório por quarenta e oito horas sem direito a advogado e sob advertência de que silêncios e omissões poderiam e seriam usados contra os acusados, a Corte Europeia de Direitos Humanos decidiu, por maioria, não ter havido violações dos §§ 1º e 3º do art. 6º da Convenção Europeia Sobre Direitos Humanos[17], aceitando os argumentos do governo britânico de necessidade de ponderar a segurança da população diante de riscos de mortes em massa por atentados frente aos direitos individuais de acusados.

Impende suscitar uma observação de Manuel Cancio Meliá (Jakobs e Meliá, 2015, p.96)[18], quanto ao fato de que campos tidos como importantes para formulação de um direito penal do inimigo, com tráfico de drogas e cartéis, criminalidade econômica, crime organizado em sentido amplo, e terrorismo, tem recebido um tratamento pouco prudente, não tanto de cariz e acepção militar propriamente dita, mas de conformação pseudorreligiosa.

 

4. O papel dos meios de comunicação, as novas mídias e a possibilidade concreta de um certo autoritarismo cool.

 

O estado democrático de direito, um estado constitucional de direito, de modo inexorável acaba exercendo função de dique de contenção contra arroubos autoritários, os quais, pelo fato de estarem contidos e, por enquanto, limitados, encapsulados, não significa que deixaram de existir. Em um texto denominado “O fascismo eterno”, Umbert Eco (2014)[19], apresenta análises de sua experiência pessoal e como acadêmico sobre um dos regimes ícones do autoritarismo.

O texto foi apresentado, em sua primeira versão, em 1995 numa conferência na Universidade de Columbia, Nova York, Estados Unidos, num texto que o próprio autor afirma ter sido pensado para estudantes universitários estadunidenses, no clima de perplexidade dos atentados de Oklahoma, quando, na época, causava impacto a “descoberta” de grupos da dita extrema-direita, autoritários, intolerantes em relação as liberdades individuais, dentro dos Estados Unidos da América.

São apresentados alguns aspectos sobre o fascismo, começando por sua inconsistência ideológica interna. Não se tratava de uma ideologia monolítica, mas uma montagem de recortes ideológicos, e uma certa ductilidade que com algumas modificações, a exemplo, incluindo-se o racismo extremado e se estará nos limites do nazismo. Retirando-se do fascismo o componente expansionista colonialista, e tem-se as ditaduras de Franco e Salazar.

Eco (2008, p. 43-53)[20], discorrendo sobre um novo fascismo ou fascismo eterno, qual denominou de “ur fascismo”, destaca algumas características deste fascismo atemporal, insidioso. Na perspectiva do direito penal, pode ser destacadas destas características suscitadas o culto à tradição, no que pode se encaixar a segurança pública idealizada como um mito de tempos passados, algo mítico que tivesse sido usurpado, e tendo este tradicionalismo como uma das características a intolerância ao saber, ao novo, tudo que é merecimento de conhecimento já estaria definido, a autoridade não pode ser contraditada.

Outra característica, o irracionalismo, o culto da ação pela ação. A reflexão ameaça por gerar contradições, a cultura é suspeita e indesejada por gerar a crítica. Insere-se neste contexto o mito do herói fascista, num modelo quem age pela ação em si. E a necessidade de um inimigo. Isto num contexto, segundo o autor, de uma classe média amedrontada, oprimida por crises econômicas e frustrações políticas, facilmente assustadas e temerosas das pressões dos grupos proletários que teriam como “subalternos”, e dos seguimentos sociais excluídos.

Nesta esteira parece mais coerente se considerar uma análise do que Zaffaroni (2007, p. 53-87)[21], partindo do que chama de apelo völkisch, no sentido de popularesco, constrói o conceito de autoritarismo cool, como gerado pelo marketing, uma atmosfera de moda que impõe ou adesão ao pensamento dominante propagado, ou a estigmatização de estar fora de lugar.

Reduzindo ao essencial, em coerência com a análise anterior, tratar-se-ia de um apelo às massas, uma radicalização rasa, um apelo ao sentimento de divisão inconciliável entre amigo e inimigo. O autoritarismo cool surge como expressão do discurso do sistema político universal e único, neoliberal, ultraliberal, privatista, fulcrado em jargões rasos, indefesso em se manter blindado, intolerante a qualquer crítica, e sabendo se aproveitar de emergências como terrorismo, guerra contra as drogas, crime organizado.

O discurso da total liberdade de expressão como valor absoluto, numa perspectiva de concentração dos grandes meios de comunicação de massa nas mãos de conglomerados empresariais, não passou desapercebido ao olhar de historiador de Tzevan Todorov (2012, passim)[22]. Atento ao individualismo como valor dos tempos contemporâneos, lança o historiador um olhar sobre uma dimensão para além da divisão tradicional de três poderes, Legislativo, Executivo e Judiciário, colocando na discussão o poder econômico e o poder midiático.

Haveria muita ingenuidade em se subestimar o poder dos grandes meios de comunicação. Principalmente em sociedades onde a informação veiculada aos grandes seguimentos sociais não tem como característica a diversidade. Uma questão que não pode deixar de ser apresentada, e enfrentada, é quanto à possibilidade de manipulação, de articulação enganosa da informação, e seus possíveis efeitos na formação de opiniões.

Entende-se caber neste trabalho uma breve referência a estudo desenvolvido por pesquisadores de psicologia sobre falsas memórias e eventos políticos. Stven J. Frenda e colaboradores (2013)[23] organizaram um experimento com 5.269 participantes submetidos a exposição de publicações divididas em dois grupos. Três eventos políticos verdadeiros, e cinco eventos políticos falseados, notícias falsas, com modificações de imagens de participantes em relação aos eventos reais. Paralelamente se buscou recolher informações sobre tendências políticas dos participantes. Após um período de tempo de contato com o material fornecido, os participantes foram interrogados sobre o que lembravam.

Um total de 98% dos participantes se lembrava de ao menos um dos três eventos verdadeiros, e 82% dos participantes se lembravam de todos os três eventos verdadeiros. Quanto a lembrança de falsos eventos, o índice de lembrança de quais, dentre os cinco eventos falsos apresentados, eram afirmados como recordados, variou conforme o posicionamento político de cada participante.

Se há algo que não pode ser afirmado é a inexistência de tratamento científico, de investigações sobre a influência da mídia sobre o modo como a sociedade reage ao fenômeno do crime, resultando em um viés de maior clamor por punições mais duras, o que vem sendo denominado de punitivismo, termo usado, mas ainda não incluído no vocabulário oficial da Academia Brasileira de Letras, o que não teria por si só o condão de desautorizar o uso.

Em estudo sobre influência dos meios de comunicação social sobre o endurecimento punivista nos EUA, Sara Sam Beale (2007)[24] observa que embora a criminalidade venha decrescendo nas últimas décadas, considerando o período anterior ao estudo, as pesquisas de opinião demonstravam que os estadunidenses em sua maioria acreditavam num aumento de criminalidade, e tal crescimento das práticas delituosas justificariam penas mais duras que as então atuais. Aponta a pesquisadora que tal divórcio entre opiniões e realidade não é inesperado, no que um percentual muito baixo de estadunidenses acompanha ou tem conhecimento mínimo sobre políticas públicas, bem como o percentual de ignorância política da população vem se mantendo estável desde 1940, marco oferecido pela disponibilidade de estudos estatísticos confiáveis.

Avançando nas investigações nesse estudo citado, veio a ser observado que os telejornais adquirindo linguagem dita de tabloides, sensacionalista, na cobertura de crimes, conseguiram cooptar maiores audiências para as emissoras que apostaram no estilo, valorizando os espaços comerciais dos horários de transmissão de tais programas, bem como obtendo audiência, fator de valorização da venda de tempo, durante a programação, para os comerciais, com custos inferiores, em até a metade de grandes produções de séries televisivas dramáticas e de entretenimento. Os métodos de moldagem, de criação de tendências na opinião pública discutidos são vários, merecendo ser destacado a análise feita sobre o medo.

O medo merece especial atenção nesse estudo. O medo pode ser manipulado, pode ser superdimensionado em exponencial, elevado ao apresentar aspectos de crimes de tal forma que possa, a partir de repetição de imagens, de apelos a preconceitos e estereótipos, alcançar uma dimensão de verdadeiro pânico coletivo. Refere-se a pesquisadora a aquilo que estudiosos do tema citados como referência no trabalho definiram como pânico moral, episódios de aguda ansiedade coletiva diante de ameaças potenciais a um estilo de vida, e ante tal ameaça, a justificação de punições mais duras, de práticas penais mais rigorosas parece encontrar justificação por consensos.

Este modo de abordar a questão pode ser reforçado por outro estudo, conduzido na Europa, por Monica Barry and Dag Leonardsen (2006)[25]. Trata-se de um estudo comparando o punitivismo na Inglaterra em comparação à Noruega, buscando correlações do fenômeno punitivo em relação a fatores culturais, sociais, mas também buscando correlacionar o punitivismo com o fator desigualdade social, pelo viés das realidades diferentes neste aspecto em relação aos dois países.

Uma das premissas de estudo dos pesquisadores é a tese de que o neoliberalismo estaria correlato, em seu crescimento, com o crescimento de uma cultura de controle, manipulação de estados psicológicos de angústias e ansiedades por parte das classes dominantes, para os quais os únicos remédios possíveis seriam endurecimento penal e redução de garantias individuais, com forte viés de criminalização da pobreza. Suscita-se, como elemento de análise, como corte analítico, que a Noruega, embora não imune ao punitivismo, presencia um crescimento dessa tendência extremamente menos acentuado que no Reino Unido. E uma das justificativas seriam as diferenças culturais e do modo de operar das mídias, dos meios de comunicação social entre os dois países.

Como aspecto pragmático do estudo, são comparados dois casos de crianças assassinado crianças. No Reino Unido o caso James Bulger, um menino de dois anos em 1993 que foi sequestrado e assassinado por dois meninos de dez anos. A maioridade penal no Reino Unido é de dez anos, e ambos foram julgados como adultos e condenados à prisão perpétua. Observa-se que o caso foi coberto com fúria, com rompantes de sensacionalismo, divulgação de detalhes, ininterruptamente, inclusive até 2001, quando os dois menores acusados do homicídio tiveram direito à liberdade condicional ao completarem dezoito anos, recebendo identidades novas e colocados sob proteção de sigilo em diferentes locais do interior da Inglaterra, como proteção à fúria popular e a perseguição pela imprensa.

Em 1994 na Noruega aconteceu o caso Silje Redergård, uma menina de cinco anos que foi espancado com golpes de pedra por dois outros menores de seis anos de idade, e abandonado inconsciente na neve, vindo a falecer de hipotermia. Na Noruega as autoridades proibiram terminantemente qualquer divulgação de imagens do acontecimento, como a imprensa foi proibida de divulgar o nome dos acusados, o que foi sendo respeitado até a data da publicação do trabalho. As medidas tomadas pelo Governo da Noruega foram de regulamentar restrições de idades mínimas para locação de vídeos em locadoras por menores, bem como impor, por regulamentação, uma redução substancial da cobertura pelas redes de televisão de crimes violentos.

A maioridade penal na Noruega é de quinze anos, logo os autores do crime não foram conduzidos a tribunais, e nem punidos, tendo sido submetidos a intensivos tratamentos de reabilitação, conduzidos por especialistas, com objetivo da recuperação e reintegração social dos menores. Com todas as restrições, o caso acabou não recebendo cobertura da imprensa, na Noruega, por mais de duas semanas, enquanto o caso James Bulger nunca saiu da cobertura da imprensa especializada em crimes. Por outro lado, em caso do ano de 2000, não sendo divulgados os nomes das vítimas, duas meninas, de oito e dez anos de idade, foram violentadas e mortas por dois adultos jovens de 19 e 21 anos. Para este fato houve cobertura da imprensa, sendo o primeiro condenado a dezenove anos de prisão e o segundo a pena máxima do país para o crime, vinte e um anos de prisão.

Sustentada a discussão de que há defensores de que o punitivismo também alcançou a Noruega, há o contraponto defendido por diversos acadêmicos citados no estudo de que, apesar de inúmeros esforços, o neoliberalismo radical não conseguiu se implementar na Noruega, no que o país consegue reinventar, diante das pressões, o estado de bem-estar social. E, como marcador importante de um muito mais atenuado viés punitivista, estaria o percentual de confiança, conhecimento e confiança da população nos seus governantes e nas suas instituições em questão de capacidade de proteger os seus interesses, o que teria o condão de diminuir o espaço de ansiedades e medos.

Contudo observa o mesmo estudo, principalmente entre a população mais jovem, que nos períodos de maior implementação de políticas neoliberais, com crescimento de inseguranças pessoais, na Noruega, houve um aumento do ceticismo em relação à possibilidade de recuperação de criminosos, e um viés de apoiar punições mais duras para os criminosos. Considerando fatores sociais decorrentes dos fatores econômicos, especulam que quanto mais segregada uma sociedade, mais insegurança. Sem deixar de pesar os efeitos de uma imprensa sensacionalista. Tal estudo por certo, dentro da prevalência do neoliberalismo, está sujeito de críticas depreciativas como “ideológico” e “tendencioso”, embora referências a estudos estatísticos de correlação entre menores índices de desigualdades com menores índices de criminalidade.

A questão do medo nos atuais tempos líquidos modernos não passou desapercebida a Bauman (2008, p.62-63, passim)[26]. Numa perspectiva sociológica discorre sobre o fenômeno da morte, o medo da morte, e a fragilidade dos laços sociais. Define experiências reais como falecimento de cônjuge ou parente como uma experiência de morte em segundo grau. Indo além, separações, rompimentos de relacionamentos, define-os como morte em terceiro grau. Visto a volatilidade dos laços, define a situação de banalização da morte de terceiro grau como morte por procuração.

Faz-se aqui uma quase inovação teórica, uma inserção por analogia e extensão, um empréstimo conceitual. Faça-se construir a figura de uma morte por procuração de enésimo grau. O bombardeio, através de programas de violência, dos riscos, artificialmente inflados, a exposição a simbologias de morte, bombardeia-se as pessoas com experiências de morte por procuração de enésimo grau. O medo não tem racionalidade, qualquer promessa de resultados imediatos encontra permeabilidade a quem se vulnera a tal quadro de insegurança interna.

Mesmo entre defensores do funcionalismo de Jakobs há uma percepção da questão do direito penal simbólico. Cancio Meliá (Callegari et al., 2005, p. 102-113)[27] atenta para o papel da imprensa como formadora de pressão de um direito penal simbólico, artificial, sem compromisso técnico com a solução de problemas, usado precipuamente para passar a imagem de um legislador e governos atentos às urgências do momento, não sendo excluídos fatores como lucro decorrente de cobertura da imprensa em relação ao crime, correlações com a globalização, e também como administração de capital político. Cancio Meliá (Callegari et al., 2005, p. 92)[28], em nota de rodapé faz uma importante observação, ao menos na Alemanha e na Espanha há notável perda de influência dos teóricos do direito penal sobre o legislador nos últimos anos, sendo apontado como exemplo as imperfeições técnicas do código penal espanhol de 1995, bem como defeitos acentuados na reforma da parte especial do código penal alemão em 1998.

O que pode ser visto, restando por óbvio, é não apenas indicativos plausíveis de um autoritarismo cool, de viés neoliberal, fulcrado na cultura do individualismo exacerbado, extremamente autorreferente, intolerante à crítica, principalmente à crítica acadêmica, capaz de influenciar toda dogmática penal, sem descartar os seus efeitos na conformação da interpretação jurisprudencial. Este fenômeno social não pode ser ignorado, e não teria como ser abordado sem apoio de referências de outras áreas, como a sociologia e criminologia crítica.

 

 

5. O papel das garantias processuais penais na perspectiva da força normativa da Constituição

 

Se há algo que deve ser considerado de plano, vem a ser a importância efetiva do direito processual penal. Na perspectiva de Zaffaroni (2007, p. 109-110)[29], “o direito penal não toca sequer em um fio de cabelo do delinquente”, no que emenda defendendo que o direito processual penal seria um marcador, um sismógrafo de um direito penal liberal. Corolário que a legislação e a prática processual penal podem ser o sismógrafo, o marcador de abalos sobre a sociedade, igualmente, de uma concepção de direito penal autoritário.

Uma suficientemente precisa descrição de razões suficientes para construção de códigos processuais penais é dada por Aury Lopes Jr. (2016, p. 57-109)[30], no que este apresenta o “Princípio da Necessidade”. A Constituição aponta o espectro de bens jurídicos a serem protegidos num estado democrático de direito, o direito penal define individualiza estes bens jurídicos, impõe as proibições de lesão aos bens jurídicos protegidos e define as sanções, as penas. O direito penal atrela-se fundamentalmente à evolução dos fatos puníveis e a evolução das penas.

Há a necessidade de se alcançar a consecução da pena por meio de regras previamente definidas, universais a todos os submetidos a mesma legislação de um mesmo estado. O direito processual penal não pode ser desatrelado da necessidade de definição de regras pelas quais o estado, por corolário todos subordinados a sua jurisdição, estão obrigados a seguir para consecução da pena. Subordinadas às regras constitucionais, deve se ter claro que o respeito às garantias fundamentais de modo algum pode ser confundido com a impunidade.

Se é incontroverso, ou pouco controverso, que nosso modelo pátrio de constitucionalismo se inspirou no modelo estadunidense, é oportuno observar o que a Suprema Corte dos EUA mantém sustentável o sistema de garantias processuais. Em um caso de invasão não autorizada por mandado de domicílio, com busca não autorizada, Map v. Ohio[31]. O tribunal estadual entendeu que mesmo ilícitas, inconstitucionais, as provas obtidas poderiam ser usadas para persecução penal. Em jogo a Quarta Emenda[32], que protege o cidadão de buscas abusivas, arbitrárias, como determina que nenhum mandado de busca será emitido sem uma causa razoável.

Cassando a decisão da corte estadual, determinando a exclusão das provas obtidas ilegalmente, a Suprema Corte afirmou, de forma contundente, alguns pontos no julgamento. Podem os pontos principais serem resumidos ao seguinte. Afirmou-se, de forma muito assertiva no julgado, que nada é capaz de destruir um governo de estado mais rápido e eficientemente do que sua incapacidade em respeitar as próprias leis. O estado é um forte professor sobre o bem e sobre o mal, e quando o estado quebra as suas próprias leis (constitutivas), alimenta o menoscabo pela lei, e assim convida a todos, a cada se tornar senhor e executor de sua própria lei. Isto configura um convite à anarquia.

A vigente Constituição Federal da República Federativa do Brasil orienta a um sistema processual penal de cariz claramente acusatório. No contraponto permanece, vigoroso em sai cariz autoritário, ainda vigente um Código Penal de 1941, que embora todas as reformas pontuais, mantém seu cariz extremamente inquisitorial. Lopes Jr. (2016, p. 45-56)[33] defende que, embora toda evolução histórica após o iluminismo, tendo como marco histórico o Código Napoleônico de 1808, onde há um divisor de águas entre o processo medieval inquisitório, que prevalecera por séculos, surgindo o sistema processual penal dito misto, atualmente todos os códigos processuais penais podem ser vistos como mistos, defendendo que os sistemas puros, puramente inquisitorial e puramente acusatórios são apenas referências históricas.

O sistema processual que nasceu com o Código Napoleônico previa a divisão do processo em duas partes, uma fase pré-processual de caráter inquisitório, e uma fase processual, esta acusatória. É observado que no processo inquisitório há um profundo “desamor” pelo contraditório, enquanto o processo acusatório tem componentes do que deduz “declarações de amor” pelo contraditório. Pode ser sustentada e defendida a tese de que o processo penal brasileiro é essencialmente inquisitório, ou, como alguns autores defendem, numa tentativa de descolar da matriz medieval, neoinquisitório.

Difícil negar o cariz inquisitório, permissivo aos decisionismos e quebras de imparcialidade em nosso processo penal, começando quando se analisa o artigo 156 do CPP, e também do mesmo Código Processual o art. 310, II, podendo decretar de ofício prisão preventiva, art. 242, permitindo que o juiz determine de ofício buscas e apreensões, art 209, ouvir testemunhas além das arroladas pelas partes, bastante significativo o art. 209, permitindo ao juiz condenar o acusado embora explícita manifestação pela absolvição por parte do Ministério Público. E vale observar que embora a disposição expressa do artigo 212 do CPP, não é incomum o juiz interrogar a testemunha antes das partes, e firmou-se jurisprudência de que se trata de nulidade relativa, devendo ser arguida no primeiro momento processual cabível e só levando a anulação do ato mediante prova de prejuízo, o que abre espaço para imenso rol de subjetividades.

Diante do cariz exacerbadamente inquisitório do processo penal brasileiro, Gustavo Henrique Badaró (2016, p. 37-99)[34], discorrendo sobre a teoria da aparência geral de imparcialidade, no que não basta que o magistrado seja subjetivamente imparcial, como é necessário que a sociedade acredite que o julgamento foi realizado por um juiz imparcial. É preciso haver um consenso de que o julgador tenha sido imparcial. Cita julgados da Corte Europeia de Direitos Humanos, dos quais extrai que a aparência de imparcialidade seria comprometida nos casos em que havia intervenção prévia do julgador proferindo decisões que transpirassem uma antecipação quanto ao mérito da causa.

A Corte Europeia de Direitos Humanos, julgando reclamação apresentada contra a Bélgica, Caso De Cuber[35], entendeu que a excessiva concentração, quase exclusiva, de poderes de instrução processual de natureza decisória na fase investigatória por parte do mesmo juiz que adiante julgou o caso, levou a uma prévia formação de convicção por parte do magistrado, rompendo com as garantias de imparcialidade, previstas no art. 6.1 da Convenção Europeia de Direitos Humanos[36]. Em outro caso envolvendo a Dinamarca, Caso Hauschildt [37], afeto a crimes financeiros, mais uma vez a Corte Europeia de Direitos Humanos entendeu pelo comprometimento da imparcialidade do julgador que participou de atos de instrução, incluindo decretação de prisão preventiva, devido a natureza antecipatória de mérito de atos decisórios em fase de investigações.

Nesta perspectiva o viés autoritário do Código de Processo Civil pátrio é evidente por si mesmo no artigo 155. Isto visto poderes dados ao juiz de determinar produção de provas cautelares pela autoridade policial, e da dificuldade de a defesa sustentar contraditório frente a muitas das provas produzidas unilateralmente, passíveis de serem alegadas como não repetíveis. A Lei 13.245, que enfrenta fortes resistências, está longe de ter a força que a jurisprudência dos Estados Unidos, da Suprema Corte oferece à defesa técnica. Pode se falar da Brady disclosure.

  Trata-se de construção de precedente a partir do caso Brady v. Maryland[38], e que vem sendo determinante em diversos julgamentos em todos os tribunais federais e estaduais dos EUA. Vem a ser o direito da defesa técnica do réu ter acesso a todo material, inclusive informações sobre testemunhas, que possam influir de alguma forma no julgamento, e que suprimidas privem o acusado de um fair trial, de um julgamento justo.

Em caso recente a Suprema Corte Estadunidense reafirmou esta construção jurisprudencial de garantia de paridade de armas entre acusação e defesa, e julgamento justo, anulando um julgamento de um condenado à pena capital, aguardando execução no corredor da morte, devido a dolosa ocultação de evidências por parte da acusação, Caso Michael Wearry v. Burl Cain[39], que militariam em desfavor da defesa. A ocultação de evidências que enfraqueceriam a tese da acusação, ocultadas pela promotoria, levou a Suprema Corte a entender que houve um julgamento injusto, cabendo anulá-lo.

A concluir este tópico, de garantias processuais num processo acusatório, democrático, não pode deixar de ser abordado a questão da cadeia de custódia da prova penal. A matéria foi abordada por Geraldo Prado (2014, p.77-92, passim), enfrentando a necessidade de controles epistêmicos sobre a fundamentação das decisões que autorizam a produção de provas ocultas, bem como os registros técnicos da produção da prova oculta, sua guarda, e abertura desta ao desvelamento pelo contraditório. A preservação das fontes de prova é algo inextrincável, na perspectiva do direito comparado, a Bady disclosure do direito dos EUA. Esta questão merece ser abordada no próximo tópico.

 

 

6. A Jurisprudência dos Tribunais Superiores como indicador do estado evolutivo do processo penal no país.

 

 Nosso objetivo não é fazer uma apologia do realismo jurídico, no estrito sentido de crer que o direito é aquilo que os tribunais dizem que seja. Ao buscarmos a jurisprudência de tribunais superiores sobre determinados tópicos, nosso objetivo é buscar indicadores de como garantias e direitos fundamentais estão sendo efetivamente interpretados, com principal ênfase nas garantias que dizem respeito ao direito de defesa do acusado.

Tema sensível no nosso direito, a cadeia de custódia da prova penal, no panorama do direito de a defesa também investigar e questionar a produção de provas, os indicativos do Superior Tribunal de Justiça não indicam amor ao debate, e sim uma visão institucional burocrática.

A Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem apontado no sentido de supremacia do estado, dos agentes públicos, defendendo que peritos não oficiais, particulares, não estariam em condições de conformar e infirmar conclusões dos peritos oficiais, AREsp 613.419[40]. Percebe-se uma tarifação da prova, onde os laudos de peritos oficiais são tidos como pressupostamente imparciais, e invulneráveis a qualquer dissenso técnico.

Quanto ao aspecto inquisitorial e absolutamente refratário ao debate científico, chegou a julgamento no Superior Tribunal de Justiça recurso contra condenação de vários acusados por tráfico de drogas, onde, nos autos do processo, não constavam registros de apreensão de drogas, nem custódia de tais provas. As instâncias ordinárias mantiveram a condenação à alegação de que a prova testemunhal e escutas telefônicas supririam qualquer outra prova pericial, REsp 1.598.820 [41].

   Quanto as escutas telefônicas, para as quais o tribunal local recusou terminantemente qualquer perícia de espectrometria de voz, método capaz de identificar se a voz registrada era de fato a dos imputados, e se as escutas eram hígidas, alegando falta de previsão legal para tal exame. Circulus in demonstrando, criticável falácia lógica, usar da tese para demonstrar a própria tese. O que merece registro é que a absolvição do crime de tráfico de drogas veio com ressalva da Relatora que a posição dela não era a da Quinta e Sexta Turmas, que, em distintos julgamentos, definiram ser imprescindível a apreensão de droga e laudo pericial para configurar tráfico. Embora seguindo a jurisprudência da quinta e sexta turma, a Relatora fez questão de manifestar seu dissenso quanto ao tema.

Indicativo de um autoritarismo penal refratário ao contraditório científico, a decisão em recurso de impugnação, HC 268.858[42], de denegação de prova pericial sobre a autenticidade de vozes gravadas, fulcradas no argumento de ausência de previsão na Lei n.º 9.296/96, entendendo caber solucionar-se a questão por outros métodos de prova. Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça refirmou, MS 14.501/DF[43], o entendimento que na falta de menção expressa no texto legal determinando perícia forense, esta é prescindível em escutas telefônicas judicialmente autorizadas.

Como exemplo de resistência dos tribunais a um contraditório científico, pode se citar, do Superior Tribunal de Justiça, julgando caso em que a defesa queria indicar assistente técnico para acompanhar procedimentos de perícia, o Superior Tribunal de Justiça, HC 100.321,[44] fez afirmar que lei não faculta, de modo algum, direito de assistente técnico indicado pela defesa acompanhar procedimento de perícia realizado por perito oficial.

Parece ficar bastante evidente a concentração de poderes de produção, em condição de exclusividade, da prova científica que fundamentem as acusações criminais por parte de agentes do estado. O papel de contraditório científico no direito processual penal brasileiro mostra-se bastante debilitado, tendendo ao nulo. Carece o direito processual penal brasileiro de algo parecido com a Brady motion ou Brady disclosure do direito estadunidense, de cariz bastante acusatório. No direito processual penal brasileiro parece haver excessiva despreocupação com a questão da paridade de armas e julgamento justo.

Um indicador bastante objetivo do viés autoritário inquisitorial das instâncias ordinárias quanto ao direito processual penal exsurge quando se pesquisa, em sede de Superior Tribunal de Justiça, sobre responsabilidade penal objetiva. Seria para soar como absurdo surgirem resultados para tal pesquisa booliana, mas o absurdo maior surge em decisões reformando julgados dos tribunais a quo.

Julgando recurso onde o réu foi condenado por crime contra ordem econômica, adulteração de combustível, apenas pelo simples fato de ser sócio-gerente de posto de gasolina onde foi detectada a fraude, sem qualquer individualização de conduta, o Superior Tribunal de Justiça, REsp 1.222.243 / SP[45], o Superior Tribunal de Justiça, em data recente, foi obrigado, mais uma vez, contra manifestações em contrário do Ministério Público, a reafirmar que ordenamento jurídico brasileiro veda, de modo expresso, a responsabilidade penal objetiva, absolvendo o réu que vinha condenado em primeira e segunda instância.

Não se trata de um caso isolado de tal prática em sede de instâncias ordinárias, em outro julgamento de impugnação, HC 349.073 / SP[46], em julgamento onde restou vencida, por maioria, a relatora, o Superior Tribunal de Justiça mais uma vez rechaçou a responsabilidade penal objetiva, no caso tratando-se de crime ambiental. Em outro julgado bastante recente, relativo a crimes contra a ordem tributária e relações de consumo, embora tantos precedentes, o Superior Tribunal de Justiça mais uma vez julgando recurso de impugnação, RHC 60.937-RJ[47], em processo onde o réu foi denunciado como incurso na prática de crime, sem individualização de condutas, apenas por ser funcionário com cargo de gerência em empresa onde foi constatada prática ilícita, sendo determinado o trancamento de ação penal, pela reafirmação, mais uma vez repetida em sede de tribunal de vértice, da vedação do ordenamento jurídico na esfera penal e processual penal à responsabilidade penal objetiva.

Esta teratologia de responsabilidade penal objetiva, com a inversão do ônus da prova ao imputado, pretendendo desonerar a acusação de provar a conduta antijurídica e culpável do réu, transferindo ao acusado a obrigação de provar sua inocência, infelizmente foi defendida em recurso pelo Ministério Público Federal junto a colegiado no Superior Tribunal de Justiça, AgRg no REsp 1.354.416 / MG[48], apresentado pelo Ministério Público Federal contra decisão monocrática da relatora que cassou a condenação em segunda instância por crime de abandono material. O Tribunal Superior vem de antes sendo obrigado a reafirmar, ao fundamento de violação do artigo 156 do Código de Processo Penal, a vedação da condenação do réu com fulcro em inversão do ônus da prova no processo penal em desfavor do réu.

Observa-se claramente a prática jurisprudencial de reforço de um direito penal de cariz não apenas inquisitorial, como excessivamente autoritário, de pouco espaço para supremacia do texto constitucional, distante de um direito penal e processual penal constitucional. Vê-se o desamor pela paridade de armas, pelo contraditório científico, em favor de uma posição de império do estado, indefesso em manter-se blindado a contestações de seus atos persecutórios na esfera penal, isto traduzido na própria jurisprudência de tribunais superiores.

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Buscou-se analisar, neste trabalho, algumas tendências de direito penal pátrio, numa perspectiva para além da pura dogmática penal fechada em si mesma. Este esforço de abertura de análise, buscando referenciais não apenas em elementos de direito penal comparado, mas também da criminologia crítica e da sociologia, e um pouco de elementos históricos, inexoravelmente desafia um esforço muito maior para se alcançar referenciais de coerência nas conclusões possíveis, particularmente naquelas que se pretende articular como as apresentadas. O contraponto à facilidade de um esforço mais fechado na dogmática penal por si mesma seria o risco de cair em pontos cegos, situações que poderiam parecer como ideias soltas.

O Direito Penal e Processual Penal tendem de fato a ser como um sismógrafo dos movimentos sociais e políticos profundos da evolução democrática, ou da degeneração autoritária, da sociedade onde é vigente, pelo conteúdo material e pela interpretação com que é aplicado. Princípios do direito penal como da intervenção mínima e da fragmentariedade, princípios da proporcionalidade e da adequação social, princípio da segurança jurídica, e de forma mais sensível princípio proteção exclusiva de bens jurídicos com os princípios da individualização da pena, da culpabilidade e da dignidade humana, são os mais suscetíveis de desconstruções jurisprudenciais e legislativas, infraconstitucionais, em momentos sociais e políticos de guinadas autoritárias.

Diante da realidade do estado moderno, com a consolidação dos estados nacionais, pode se ter como um aforismo, não um entimema, mas um verdadeiro truísmo que, ao longo do século XX e XXI, nenhum projeto de governo, quer de viés autoritário ditatorial, quer de objetivos liberais democráticos, nenhum projeto institucional de governo conseguiu se consolidar sem um direito penal e processual penal adequado ao projeto autoritário ou democrático liberal, e sem igualmente uma estrutura judiciária com construções jurisprudenciais dando sustentação, estando o direito penal como prima ratio no projeto autoritário, ou como ultima ratio no projeto democrático. 

O Direito Penal e Processual Penal contemporâneo resistem, ainda, como monopólio do estado. Nesta perspectiva não poderia deixar de pôr em análise questões da modernidade líquida como método, oriundo da sociologia, das influências da dita pós-modernidade e seus efeitos sobre as sociedades e a política. O discurso do estado mínimo não é novo, não é inédito, mas não deve se desconsiderar diferenças entre este discurso do estado mínimo e total liberdade ao capital, os bordões do laissez faire, laissez aller, laissez pascer  antes numa realidade de meio do século XIX até o início do século XX, os elementos da dita Belle Époque, e após a primeira grande guerra mundial o crash de 1929 da bolsa de Nova York, estes não são parâmetros para a realidade social, científica e econômica atuais, embora choques e crises sejam hoje elementos de marketing político com seus inextrincáveis jogos de poder.

As transformações da natureza do capital, numa realidade de estados nacionais inextrincavelmente sustentados pela economia, quer macroeconomia, quer microeconomia atada a um capital leve, volátil e conseguindo impor fronteiras abertas, enquanto nas sociedades se observam fechamentos de fronteiras e xenofobia em níveis de crescimento exponencial, são realidades que afetam diretamente a questão dos bens jurídicos que possam ser considerados prioritários, merecedores de maior e mais efetiva defesa, chamando a realizar esta defesa o direito penal e direito processual penal.

Impositivo não desconsiderar que a doutrina de shock and awe (choque e pavor) saiu da esfera militar, e rapidamente foi absorvida pelos grandes grupos econômicos, e de forma peculiar também pelos grandes conglomerados de mídia, sendo inegável sua aplicação como instrumento de política. Pode se falar de uma cultura do medo instantâneo, medos que podem ser criados a qualquer momento, a possibilidade de criar novos inimigos, isso bem aproveitado, com largo uso do marketing, por grandes veículos de imprensa, e incorporado ao jogo da política, pois é a política, os parlamentos quem votam e aprovam as leis, inclusive penais e processuais penais.

A propagação pela grande mídia de elementos que gerem sensação de choque e pavor, uma atmosfera de medo não pode ser desconsiderada. Imagens de atentados terroristas, de morte e destruição causada por hostis, por estrangeiros de determinado grupo étnico ou religioso, ou mesmo segmentos sociais internos, sendo postas nas telas de aparelhos televisivos da imensa parcela da população, através de técnicas de neuromarketing e neurobiologia cognitiva buscando alcançar uma introjeção acrítica pelos espectadores, disseminando um sentimento de morte por procuração de enésimo grau, por uma sensação de que a morte e a violência, o risco contra vida e integridade física está próximo, iminente, imediato.

Ora é a criminalidade organizada do colarinho branco, ora é o terrorismo, vez outra é tráfico internacional de drogas, os crimes sexuais, há sempre em evidência uma pauta de imprensa tendo como tema o risco iminente, a ameaça e o causador da ameaça. Os indigitados agentes dessas ameaças, diante do medo, não seriam percebidos de modo diferente do que como inimigo.Pode até se tentar negar, mas seria difícil desfazer, frente às evidências, a realidade de um clima pseudorreligioso, de quase fanatismo, de um estado de ódio, de separação entre “nós e eles”, o cidadão e  o marginal-inimigo.

A relidade brasileira não está desinserida, alheia à realidade internacioal. O influxo de crescimento de punitivismo e legislações penais simbólicas, de maiores punições sem proporcionalidade, adequação e finalidade, de um direito penal máximo, com crescente inserção de mais e mais figuras de delitos de perigo abstrato, numa produção legislativa refratária às críticas e contribuições científicas das universidades e núcleos de pesquisa, pode ser visto como consonante a uma tendência internacional em termos de ocidente.

O ponto que merece destaque, do extraído da análise dos elementos apresentados, é a histórica natureza autoritária, inquisitorial e extremamente adversa ao contraditório e ao direito de defesa do direito processual penal brasileiro. Embora todo um rol de densas garantias e direitos fundamentais dispostos na Constituição Federal, o direito processual penal parece aplicado quase numa glosa inversa, o vetusto Código de Processo Penal parece ser interpretado como regra capaz de como se sobrepor, até, à Constituição. Nessa praxe os tribunais dão sinais de total refratariedade às críticas e constrangimentos epistemológicos da doutrina. Por outro lado os tribunais parecem cada vez mais permeáveis às pressões imediatas da imprensa.

Pode ser apresentado, como uma das conclusões, após os elementos de análise neste trabalho, de que, inclusive por bloqueio constitucional, não há com sustentar haver, de forma plena, no Brasil um direito penal do inimigo em sentido estrito, formal, por outro lado inegável haver uma grande abertura legislativa e hermenêutica para inserção ao direito penal, e, principalmente, ao direito processual penal, de elementos que seriam típicos de um direito penal do inimigo.

 Vedados pela Constituição os tribunais de exceção, difícil negar o apoio de fortes setores da grande mídia, em massificada apologia, à inserção de medidas típicas de direito penal autoritário, elementos de direito penal do inimigo no direito penal e processual penal comum, que regula a vida de toda sociedade. Propostas de medidas legislativas “para acabar com a corrupção”, mas que retiram a efetividade do direito de defesa, atingindo todos os cidadãos, circulam na mídia e nas redes sociais, reverberando em muitas assimilações acríticas.

Não se pode ter aqui, como uma conclusão em sentido estrito, mas como percepção, uma clara tendência a respeito de uma virada autoritária, afetando o direito penal, contudo parece claro uma virada autoritária visando muito mais o direito processual penal brasileiro. Mais que elementos de inaceitável platitude hermenêutica quanto ao direito constitucional, os tipos penais abertos, os esforços, com apoio de grandes veículos de imprensa, em favor de medidas de restrição legislativa aos direitos de defesa técnica dos acusados, esse arranjo de imediatismo e irresponsabilide parece fadado a conduzir a um desarranjo institucional.

Na data em que se conclui esse trabalho, vê-se na imprensa uma pauta de criminalização da política. A política representativa, os parlamentos e seus membros vulnerados e fragilizados e reduzidos a reféns das tendências escolhidas por pautas da grande imprensa, e nessa esteira vislumbram-se imposições de pretensões e metas legislativas como fim do foro por prerrogativa de função, que deixando de existir, não haverá como justificar subsistir para nenhum agente estatal.

E uma pergunta fica sem resposta imediata. O que acontecerá quando um juiz federal substituto tiver poderes de afastar, cauterlamentede, suas funções um ministro do Supremo Tribunal Federal? O que isto significaria de abalo institucional, de risco de desmoronamento da segurança jurídica? O clima de autoritarismo cool, o autoritarismo da moda, da homogeneização do pensamento pelo massacre da propaganda, demoniza este tipo de reflexão.

Como conclusão, visto o estado de fluir de informações rasas, de pautas superficiais, de marketing, de banalização da segurança como uma commoditie passível de negociação em mercados de bens e capitais, é quando estudos quantitativos e qualitativos, interdisciplinares, de curta e longa duração, bem orientados e conduzidos são mais necessários. Em contraponto não há como se suscitar um ponto de ceticismo. Se o ocidente hoje vive uma virada autoritária na política, estudos e conhecimento conduzem à crítica e a dúvida, e ao desfazimento de mitificações, ameaças naturais a qualquer forma de ditadura, mesmo a ditadura cool e dissimulada do marketing e da comunicação em massa.

 

 

REFERÊNCIAS

 

 

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Sobre o autor
Ramiro Carlos Rocha Rebouças

Advogado, Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Estácio de Sá, Mestre em Fisiologia pela FMRP-USP.

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Monografia apresentada como requisito para conclusão de curso de Especialista em Direito Penal e Procesual Penal pela Universidade Estácio de Sá.

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