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Ação afirmativa.

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Agenda 14/06/2004 às 00:00

3. Discriminação

A Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, em seu art. 1º conceitua a discriminação como sendo: "Qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha o propósito ou o efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública." 29

Percebe-se que esta definição elencou características que são mais utilizadas para discriminar os seres humanos, contudo, não se trata de um rol taxativo, mas apenas exemplificativo, não excluindo portanto, outras formas de discriminação

3.1. Classificação das Discriminações

Utilizaremos neste tópico a classificação criada por Joaquim B. Barbosa Gomes. 30

3.2. Discriminação Intencional ou tratamento discriminatório

A discriminação intencional ocorre quando uma pessoa recebe um tratamento desigual em razão de sua raça, sexo, origem etc, que a diferenciem da classe dominante.

Este tipo de tratamento engloba a maioria dos casos de discriminação, e é contra ela que se dirigem as normas constitucionais e infraconstitucionais.

3.3. Exceções: hipóteses de discriminação legítima

Apesar deste tipo de discriminação ser normalmente uma situação ilícita, em determinadas circunstâncias pode ser ela permitida, mormente quando for ela necessária ao exercício de uma atividade que exija habilidades específicas, ou que deva ser exclusivamente realizada por indivíduos de um determinado sexo.

"Por exemplo, com a exigência que se faz de que uma pessoa, para o exercício da advocacia, tenha recebido o grau de bacharel em direito e sido aprovada no exame da Ordem dos Advogados do Brasil. A discriminação feita atende a uma finalidade pública e moralmente sustentável, pois é necessário um mínimo de qualificação técnica para o manejo adequado de ações e uma base acadêmica considerável para as atividades em que há operação com o direito. Cite-se, outrossim, com os mesmos fundamentos, a possibilidade de haver, em um concurso público para agente penitenciário de presídio feminino, a exigência, em edital, de que os candidatos sejam todos do sexo feminino, a fim de evitar constrangimentos de natureza moral nas atividades de contato direto como revistas e freqüência a locais onde as presidiárias terão a sua vida privada necessariamente exposta e controlada por terceiros. O mesmo raciocínio com sinal trocado seria aplicável a presídios masculinos, a fim de evitar eventuais abusos sexuais ou violência das mais variadas espécies baseadas na diversidade de gênero." 31

No mesmo campo desta discriminação intencional legítima, estão as discriminações positivas ou ações afirmativas. Tal hipótese ocorre quando se põe em prática uma política, quer seja pública ou privada, destinada a promover a igualdade material de parcelas da população historicamente discriminadas, permitindo-lhes concorrer em igualdade com aqueles que se beneficiaram com a sua exclusão.

Essa modalidade de discriminação tem duas características básicas: perseguição da justiça social, vez que se busca colocar os indivíduos em patamares de igualdade material; e temporariedade, pois uma vez atingido o equilíbrio deve cessar o uso da ação afirmativa.

3.4. Teoria do Impacto Desproporcional

Esta teoria "é uma derivação do princípio constitucional da proporcionalidade, tal como concebido modernamente na doutrina como exigência da adequação, necessidade e razoabilidade constitucionais materiais das leis". 32 E pode ser conceituada como sendo: "Toda e qualquer prática empresarial, política governamental ou semigovernamental, de cunho legislativo ou administrativo, ainda que não provida de intenção discriminatória no momento de sua concepção, deve ser condenada por violação do princípio constitucional da igualdade material, se em conseqüência de sua aplicação resultarem efeitos nocivos de incidência desproporcional sobre certas categorias de pessoas." 33

Como exemplo dessa teoria, tem-se o famoso caso Grigs v. Duke Power Company, 34 proposto por pessoas negras contra uma empresa de fornecimento de energia elétrica, que reservava para os negros funções subalternas e após uma forte pressão dos empregados, criou um mecanismo interno de promoção. Tal mecanismo era oferecido indistintamente a negros e brancos, e baseava-se em testes de inteligência.

Como já era de se esperar, poucos eram os negros que conseguiam a promoção, tendo em vista que eles estudaram em escolas segregadas de menor qualidade, e por isso tinham um aproveitamento sempre inferior aos brancos.

Os funcionários negros ingressaram com uma ação no Judiciário Federal do Estado da Carolina do Norte, tendo a corte verificado que apesar do ponto de vista formal, o mecanismo de promoção não feria o princípio da igualdade, do ponto de vista material ele produzia impactos raciais desproporcionais

3.5. Discriminação na aplicação do Direito

Muitas vezes, a norma jurídica é, em seu texto, isonômica, mas no momento de sua aplicação percebe-se um resultado discriminatório. No direito norte americano, aponta o clássico caso YICK WO: "Nesse caso, o que estava em jogo era a aplicação manifestamente discriminatória da lei que regia o procedimento de permissão municipal para a exploração de lavanderias na cidade de San Francisco (sic), na Costa Oeste do EUA, que conta em sua população, desde a segunda metade do século XIX, com um percentual de aproximadamente 25% de pessoas de origem Asiática. No cacos YICK WO, a discriminação na aplicação do Direito ficou caracterizada em função da simples disparidade estatística: 99% dos pedidos de permissão formulados por pessoas brancas eram deferidos, ao passo que apenas 1% dos pedidos feitos por asiáticos obtinham decisão favorável." 35

Joaquim B. Barbosa Gomes, aponta ainda a dificuldade no acesso das mulheres à Magistratura, e dos negros à Diplomacia. Neste último caso, a ausência de negros é tão grande que o próprio Itamaraty, no ano passado, instituiu um programa de ação afirmativa destinado a custear bolsas de estudo para que os negros pudessem concorrem em igualdade com os demais candidatos.

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3.6. Discriminação de fato

Este tipo de discriminação é o resultado da indiferença do poder público para com os grupos marginalizados. As autoridades permanecem inertes, se abstendo de implementar políticas sociais que verdadeiramente promovam a igualdade material, é, v.g., o caso das multidões de excluídos que nem sequer aparecem nas estatísticas, por não ter ao menos certidão de nascimento, morrendo, não raras vezes, sem nunca ter existido juridicamente.

Assim, a sociedade termina por se habituar com aquela situação discriminatória, ocorrendo "uma naturalização das desigualdades, que nem sequer é notada e passa a ser tida como uma forma de discriminação inconsciente, ou, se se preferir uma expressão mais irônica, uma discriminação cordial, fundada em um exercício de poder simbólico pelos agentes da exclusão." 36

3.7. Discriminação manifesta ou presumida.

Em certas situações e especialmente no campo das relações de trabalho, a discriminação é tão perceptível que se torna incontestável, a ponto da doutrina considerá-la como presumida, é o que os americanos chamam de Prima Facie Discrimination 37.

Essa teoria tem o condão de desincumbir os grupos vítimas da discriminação do ônus de prová-lo, e é largamente usado no direito norte-americano, em ações declaratórias ou medidas de caráter injuntivo. Todavia, quando a demanda é de natureza indenizatória, o ônus da prova continua a ser do autor, pois em tal situação a discriminação é individual, não atingindo da mesma forma todas as pessoas, e portanto a necessidade da individualização do dano causado.

Para a constatação deste tipo de discriminação é largamente utilizada a disparidade estatística que "consiste basicamente em demonstrar ausência ou a sub-representação de certas minorias em determinados setores [...] que seja incompatível com o percentual do respectivo grupo na sociedade ou no respectivo mercado de trabalho". 38

Ressalte-se por fim, que a Suprema Corte norte-americana utiliza freqüentemente o critério da disparidade estatística, mas o faz com extrema prudência: "noutras palavras, ela se limita a analisar o elemento estatístico juntamente com outros fatores, sancionando severamente as disparidades flagrantes, isto é, classificando-as como prova irrefutável de tratamento discriminatório." 39


4. Ações Afirmativas

As ações afirmativas podem ser conceituadas como sendo:

"políticas públicas (e também privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física [...] visam a combater não somente as manifestações flagrantes de discriminação, mas também a discriminação de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade [...]. Em síntese, trata-se de políticas e de mecanismos de inclusão concebidas por entidades públicas privadas e por órgãos dotados de competência jurisdicionais, com vistas à concretização de um objetivo constitucional universalmente reconhecido – o da efetiva igualdade de oportunidades a que todos os seres humanos têm direito." 40

As ações afirmativas foram criadas nos Estados Unidos inicialmente como uma forma de enfrentamento da discriminação às minorias nas relações empregatícias e nas escolas. O seu surgimento põe fim a inércia do Estado Liberal, e transforma numa verdadeira obrigação do poder público e da sociedade como um todo, a busca pela igualdade material.

Cabe neste ponto, observar que as ações afirmativas não se confundem com o sistema de cotas (ou quotas) 41, mas abrange-o, podemos dizer que toda ação, seja ela pública ou privada, que reconhecendo uma situação desfavorável a uma minoria, procura atingir uma situação de igualdade, pode ser caracterizada como uma ação afirmativa.

As cotas são apenas uma modalidade de ação afirmativa, quiçá, a mais radical delas, porquanto, termina por excluir o direito dos privilegiados para favorecer os excluídos.

Existem diversas outras formas de ações afirmativas, tais como incentivos fiscais, aumento de pontos em licitações "a empresas que favoreçam a contratação multiracial (sic) de empregados." 42

Outrossim, ação afirmativa não é apenas ação estatal, mas também pode ocorrer por iniciativa de um particular, mesmo sem receber nenhum tipo de favorecimento governamental.

4.1. Ação afirmativa e as cotas

As cotas são, sem sombra de dúvida, a forma mais polêmica de ação afirmativa, pois, ao tempo em que inclui as minorias nos espaços a que antes não tinham acesso, exclui indivíduos que não pertence a grupos minoritários e que, pelo menos diretamente, não são culpados pela exclusão.

Como se vê, não é uma questão simples, refletindo sobre o tema Ronald Fiscus, ensejou a indagação que foi batizada de argumento das pessoas inocentes (innocente persons argument). 43

Tal argumento baseia-se no fato de que os indivíduos integrantes da maioria não são os culpados pela discriminação histórica que os grupos minoritários sofreram, mas com uso da cota acabam por ser prejudicados no presente.

Fiscus salienta ainda que a maioria pode suportar algum ônus em beneficio da minoria, mas não qualquer ônus, "is that only ‘some of the burden’ may constitutionally be placed on these ‘innocent persons’. For these justices, affirmative action was acceptable in hiring but not in firing." (somente alguns sacrifícios e ônus podem ser impostos constitucionalmente a essas pessoas inocentes. Para os Ministros da Suprema Corte, a ação afirmativa era aceitável na contratação de pessoal, mas não na demissão). 44

Chega-se portanto uma situação crucial que é muito bem analisada por Alexandre Vitorino: "A situação, de fato, contém um paradoxo, pois, para implementar-se o princípio da igualdade material e aplicar um critério de justiça distributiva capaz de reverter, no plano dos fatos, os efeitos presentes de uma discriminação pretérita, a solução aventada é a de reduzir as chances de acesso de integrantes da maioria, pelo simples fato de pertencerem a ela. Com isso, há no mínimo uma aparente violação ao princípio da igualdade formal, que precisa ser analisada no caso concreto segundo o mecanismo de ponderação de princípios para que se possa saber se a medida restritiva da igualdade formal é aprovada no teste constitucional da proporcionalidade. 45

Não há portanto, uma solução pronta e abstrata a questão das cotas. Destarte, existem algumas regras que podem ser utilizadas para verificar a constitucionalidade ou não das cotas.

Pode-se recorrer, como regra inicial, à razoabilidade, já que havendo outro método capaz de atingir o fim almejado, dever-se-á abrir mão da cota.

Outra regra é analisar se a cota se baseia numa discriminação pretérita de um grupo definido, e é capaz de surtir efeitos modificadores no presente. Este critério pode ser usado também para saber o momento de cessar o uso da cota, pois uma vez atingida uma situação de igualdade entre a maioria privilegiada e a minoria excluída, não haverá necessidade de ação afirmativa. 46

O insigne mestre Celso Antônio Bandeira de Mello por seu turno, também apresenta um critério para distinguir se a cota é ou não constitucional: "O que se tem que indagar para concluir se uma norma desatende a igualdade ou se convive com ela é o seguinte: se o tratamento diverso outorgado a uns for justificável, por existir uma correlação lógica entre o fator de discrimen tomado em conta e o regramento que se lhe deu, a norma ou a conduta são compatíveis com o princípio da igualdade; se pelo contrário, inexistir esta relação de congruência lógica — ou o que ainda seria mais flagrante — se nem ao menos houvesse um fator de discrimen identificável a norma ou a conduta serão incompatíveis com o princípio da igualdade." 47

O uso de cotas é portanto uma situação passageira, que tende a cessar à medida que corrige a distorção, igualando os desiguais, e deve ser verificado com prudência para que atenda ao princípio da igualdade.

4.2. Fundamentos Constitucionais da Ação Afirmativa

Apesar do principio da igualdade estar presente em todas as constituições brasileiras 48, foi na Constituição Federal de 1988 que se atingiu o ápice e passamos a ter uma constituição que não só traz a igualdade formal, mas que autoriza, impele a busca por uma isonomia material.

De início destaca-se o art. 5º que cristaliza a igualdade material, "todos são iguais perante lei" 49, e no seu inciso I "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações" 50. Para um interprete desavisado, poderia parecer que se fala apenas na igualdade formal porém, como adverte José Afonso da Silva: "A compreensão do dispositivo vigente, nos termos do art. 5º, caput, não deve ser assim tão estreita. O interprete há que aferí-lo juntamente com outras normas constitucionais [...] e, especialmente com as exigências da justiça social, objetivo da ordem econômica e da ordem social." 51

E neste mesmo sentido, Nery e Nery, para quem a "igualdade no sentido de garantia constitucional fundamental quer significar isonomia real, substancial, não meramente formal". 52

Todavia, o princípio da igualdade não fica adstrito ao art. 5º, mas permeia toda a constituição, o próprio preâmbulo já conclama os constituintes a "instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar [...] a igualdade e a justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos" 53, constitui um reconhecimento da existência das desigualdades (o que já havia nas constituições anteriores) e o dever de combatê-las (essa é a novidade trazida pela Constituição de 1988). Afirmando Alexandre Vitorino que "Trata-se de um fato normativamente presumido, portanto, e malquisto". 54

Temos ainda no art. 3º uma ênfase ao combate a discriminação e ao tratamento igualitário, reforçado pelo art. 170, inciso VII, dispositivos que merecem serem transcritos:

Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

[...]

III – erradicar a pobreza e marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, de raça, sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminação."

[...]

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

[...]

VII – redução das desigualdades regionais sociais. 55 (grifos nossos)

Diante desses dispositivos, Carmen Lúcia Antunes Rocha observa com muita propriedade que: "Verifica-se que todos os verbos utilizados na expressão normativa – construir, erradicar, reduzir, promover – são de ação, vale dizer, designam um comportamento ativo. O que se tem, pois, é que os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil são definidos em termos de obrigações transformadoras do quadro social e político retratado pelo constituinte quando da elaboração do texto constitucional." 56

A constituição não se limita a elencar objetivos, ela mesma instituiu ações afirmativas, com intuito de favorecer os deficiente físicos que se submetem a concursos públicos, ao determinar no art. 37, inciso VIII que "A lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiências físicas e definirá os critérios de sua admissão." 57

Com relação às mulheres, o legislador constituinte determinou no art. 7º, inciso XX, "a proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei." 58

Além disso, como forma de coibir o preconceito racial, o art. 5º, inciso XLII, dispõe que "a prática do racismo constitui crime inafiançável, imprescritível sujeito à reclusão nos termos da lei." 59

Sobre o autor
Osias Tibúrcio Fernandes de Melo

Técnico Judiciário do Tribunal de Justiça de Pernambuco

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, Osias Tibúrcio Fernandes. Ação afirmativa.: o problema das cotas raciais para acesso às instituições de ensino superior da rede pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 348, 14 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5301. Acesso em: 23 dez. 2024.

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