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A inconstitucionalidade da CPMF

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Agenda 19/06/2004 às 00:00

A LEGALIDADE:

Questão que se coloca é saber se pode ou não uma Emenda Constitucional instituir tributos.

Seguindo nesta esteira, temos que o art. 150, inc. I da CF/88 consagra, no capítulo das limitações ao poder de tributar, o princípio da estrita legalidade, ao asseverar que é vedado aos Entes Federados, exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça. Assim também determina o art 97. do CTN.

Pois bem, entendemos que a Norma Constitucional não é o comando para a instituição de tributos. Cabe, de fato, ao constituinte derivado, dispor sobre a delimitação de competências tributárias, autorizando o legislativo a criar, por meio de lei, os tributos que lhe forem próprios. Contudo, não lhe comete exercer, diretamente, o poder de tributar, obstaculizando o processo legislativo.

"Admitir que o Legislador Constituinte possa dispor, sobre alíquotas ou sobre a incidência de certo tributo parece somente possível no caso em que, por força de promulgação de uma nova Constituição, a necessidade de uma transição harmônica entre o velho e o novo sistema tributário justifique que o próprio Legislador Constituinte originário, que tudo pode, disponha, transitoriamente e em termos concretos, sobre determinado tributo, como ocorreu no artigo 56 do ADCT, a respeito do Finsocial.

Não se tendo dado tal hipótese, não pode o Legislador Constituinte derivado pretender, sem que se viole o princípio da reserva absoluta da lei formal inscrita no inciso I do art. 150, cláusula pétrea da Constituição, ‘prorrogar’ tributo e aumentar sua alíquota, independente de posterior ato normativo infraconstitucional – no caso, a lei ordinária – próprio para instituir ou majorar tributo" [9].

Em precedente jurisprudencial, o STF havia decidido pela inconstitucionalidade de dispositivo da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, que fixava multa tributária, exatamente sob a alegação de que esta matéria deve ser reservada à lei formal. Assim decidiu a Egrégia Corte:

"Ação Direta de Inconstitucionalidade. Parágrafos 2º e 3º do art. 57 do ADCT do Estado do Rio de Janeiro, que dispõem sobre multa punitiva nas hipóteses de mora e sonegação fiscal. Plausividade da irrogada inconstitucionalidade, face não apenas à impropriedade formal da via utilizada, mas também ao evidente caráter confiscatório das penalidades instituídas. Concorrente o risco de dano, de difícil reparação, para o contribuinte. Cautelar deferida".

Assim como não poderia instituir-se multa em preceito constitucional de ordem tributária, tampouco a regra constitucional poderia prorrogar ou, como preferem alguns, reinstituir tributo, bem como alterar alíquota anteriormente estabelecida em lei formal, como de fato ocorreu.

Sequer poderia prosperar, a nosso ver, argumento no sentido de que o art. 97 do CTN não estabelece, no rol dos itens submetidos à reserva da lei formal, a prorrogação de um tributo, mas tão somente a sua instituição.

Ora, o comando da norma, por certo, não previu a hipótese tendo em vista que não é da natureza dos tributos a provisoriedade ensejadora da prorrogação em tela.

Ademais, prorrogar um tributo nada mais é do que uma nova instituição deste, ainda mais no presente caso, em que houve solução de continuidade.

Destarte, a nosso sentir, tanto a prorrogação como a majoração da CPMF deveria ter ocorrido através de lei.

Há ainda que se considerar que o processo legislativo atinente à aprovação de leis e de emendas é absolutamente diverso.

Não se alegue que estaria legitimada a criação deste tributo via emenda, na medida em que a aprovação do tributo por meio de lei seria concentrada no mesmo poder, qual seja o legislativo federal.

Veja, a competência do legislativo é absolutamente diversa ao aprovar uma lei e uma emenda constitucional.

À luz de melhor doutrina, temos que:

"Por determinação constitucional, no Brasil, o Constituinte derivado, é o mesmo legislador ordinário da União, mas esses dois são órgãos distintos, que não podem ser confundidos. São órgãos autônomos, mesmo se concentrados na mesma pessoa, cada um exercendo função própria:aquele, com poderes para alterar a fisionomia constitucional, criando ou modificando competências; o legislador ordinário, a partir das atribuições materiais de competências emanadas daquele, estabelecendo as tipificações das condutas, por leis específicas. O fato de estarem, ambos, concentrados na mesma pessoa, não pode servir como justificativa para qualquer espécie de ‘economia processual’ (do processo legislativo), por estarem exercendo funções distintas (mesmo se as emendas estejam qualificadas como produto do processo legislativo), com competências materiais autônomas, e segundo processos também autônomos".

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E, mas adiante, assim complementa o autor:

"... os atos do Congresso Nacional, enquanto legislador federal, devem ser compatíveis materialmente, com os atos expedidos pelo Congresso Nacional enquanto Constituinte Derivado, não como simples ‘execução’, mas como realização da competência atribuída, na continuação do processo de positivação do direito, agora, mediante a ponência das leis que lhe cabe criar, tipificando as hipóteses de incidência e as conseqüências para os comportamentos normados" [10].

Assim, temos para nós que a Emenda não é o veículo apto a introduzir tributos novos no sistema jurídico e, para nós, o procedimento é, pois, inerente à criação de normas válidas, não podendo ser afastado do órgão competente.

"Significa que a emenda à Constituição se mostra idônea, sim, para outorgar a uma ou a outra entidade político-administrativa (União, Estados ou Municípios) competência para criar determinado tributo; não, porém, presta-se a instituir o tributo ou aprovar a elevação de alíquota, em obséquio ao princípio da reserva legal (Carta da República, art. 150, I)" [11].

Veja que esta limitação imposta no art. 150, I da CF/88 ao poder tributante é uma garantia dos contribuintes e, como tal, não pode deixar de ser observada. Na verdade, como garantia e direito individual, sequer pode ser objeto de emenda, por se tratar de cláusula pétrea, inserta no bojo do art. 60, §4º da Lei Maior.

Saliente-se, também, que as Emendas Constitucionais não se submetem ao veto do Presidente da República e o art. 48, caput e inc. I da CF/88 prevê, expressamente, a necessidade de sanção presidencial, em se tratando de matérias atinentes à tributação.

Assevera, com a costumeira pertinência, Luciano da Silva Amaro:

"Ademais, criação ou aumento de tributo estão sujeitos ao princípio da reserva legal (art. 150, I, da CF). O art. 48, item I, por sua vez, reza caber ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, dispor sobre matéria tributária; trata-se, portanto, de matéria que só pode ser veiculada por lei, observando-se o processo legislativo prescrito pela Constituição. Ora, o veículo utilizado para o aumento da contribuição das instituições financeiras não atende ao processo constitucionalmente fixado para a criação e aumento de tributos; na emenda só o Congresso se manifesta, sem a possibilidade de veto do Executivo" [12].

Veja que a sanção presidencial prevista no citado art. 48 não se trata de mera prerrogativa do Presidente da República, mas de um mecanismo que vai ao encontro do princípio da separação dos poderes, que constitui uma das cláusulas pétreas elencadas no art. 60, §4º da Lei Maior.

A separação de poderes, consagrada por Montesquieu, é princípio arrimado no sistema de freios entre os poderes, direcionado a evitar a tirania e consagrar a liberdade.

"Ora, se a necessidade do veto presidencial é instrumento a serviço da separação de poderes, que por sua vez, consolida-se em um sistema, um mecanismo de freios mútuos de um poder em relação a outro, com o objetivo de preservar a liberdade do povo, evitando, ou, pelo menos, dificultando as tiranias, é evidente que aos poderes não é permitido, segundo sua vontade, contornar este sistema, deixando de aplicar um de seus componentes - no caso, a necessidade de veto presidencial -, quando lhe convier. Caso assim ocorresse, um Poder Executivo que contasse com a maioria do Poder Legislativo, poderia, sem alterar um vírgula da Constituição, fazer desmoronar todo o sistema garantidor da separação de poderes, hipótese esta absurda, já que, não podendo a separação de poderes ser tocada sequer por emenda constitucional, com muito mais razão não pode ser mitigada pela vontade do intérprete.

Assim, considerando-se que a necessidade do veto presidencial não é uma prerrogativa do Presidente da República, mas uma garantia da liberdade decorrente da separação de poderes, é inconstitucional a regulação por emenda constitucional, desacompanhada de lei, de matéria tributária, sujeita ao veto do Presidente da República" [13].

Não bastasse isso, frise-se ainda que, uma vez que o projeto da Emenda 21 votado e aprovado pelo Senado, seguiu para a Câmara dos Deputados, onde teve sua redação alterada nos §§1º e 3º, não retornou ao Senado, para que este apreciasse a mudança.

"Ora, a simples confrontação da Emenda Constitucional n. 21/99 com o texto aprovado pelo Senado Federal facilmente revela que há um descompasso entre ambos.

Deveras, a Câmara dos Deputados excluiu as expressões ‘ou restabelecê-la’ e ‘hipótese em que o resultado da arrecadação verificado no exercício financeiro de 2002 será integralmente destinado ao resgate da dívida pública federal’, dos §§1º e 3º, respectivamente. Houve, pois, duas substanciais alterações no texto oriundo no Senado. E, a despeito disso, o projeto aprovado pela Câmara não retornou àquela Casa Legislativa, para a imprescindível reapreciação.

Logo, a Emenda Constitucional n. 21/99 não resultou do consenso das duas Casas Legislativas.

Esta flagrante inconstitucionalidade formal também impede que a CPMF tenha validade exigida" [14].

Esta atitude feriu um dos preceitos basilares do processo bicameral, elencado no art. 65 da Magna Carta.

Quanto à Emenda Constitucional nº 37, há que se ressaltar que o processo legislativo também restou viciado, pois a retirada, pelo Senado do período de noventa de vacatio legis, não foi apreciada pela Câmara, em flagrante desrespeito ao procedimento legislativo e a princípio do Bicameralismo.

Como destacado em matéria aqui transcrita, (...) "após ter sido aprovada na Câmara dos Deputados em dois turnos, a Emenda foi encaminhada ao Senado Federal onde ‘sofreu alteração substancial de conteúdo’, nos termos da ação do Partido Socialista Brasileiro – PSB, com a retirada do dispositivo que previa o período de ‘noventena’ para a cobrança. Depois da alteração, a Emenda não retornou à Câmara dos Deputados para apreciação e votação em dois turnos da mudança realizada e, por isso, desrespeitou o procedimento legislativo correto" [15].

Analisemos, neste contexto, se o vício formal que decorreu da produção da emenda pode ser objeto de apreciação pelo Poder Judiciário, com vistas a preservar o princípio da independência e separação dos poderes.

Por certo, o Congresso Nacional deve obediência à Constituição, às leis e a seu regimento interno.

Destarte, a validade de seus atos está condicionada à conformidade com o ordenamento jurídico acima mencionado.

Não obstante, convém destacar que, há alguns atos, denominados de interna corporis, que se relacionam à sua organização interna, que não são passíveis de apreciação judicial.

Nas lições, sempre atuais, de Hely Lopes Meirelles, denominam-se atos interna corporis aqueles que se relacionam:

"... direta e indiretamente com a economia interna da corporação legislativa, com seus privilégios e com a formação ideológica da lei, que, por sua própria natureza, são reservados à exclusiva apreciação e deliberação do Plenário da Câmara. Tais são os ato de escolha da Mesa (eleições internas), os de verificação dos Poderes e incompatibilidades de seus membros (cassação de mandatos, concessão de licenças, etc.) e os de utilização de preorrogativas institucionais (modo de funcionamento da Câmara, elaboração de regimento, constituição de comissões, organização de serviços auxiliares, etc.) e a valoração das votações"  [16].

Ocorre que, a nosso ver, as normas atinentes à observância do processo legislativo, bem como do sistema bicameral, sobre a qual já discorremos, não se tratam de ato interna corporis.

"(...) a análise atenta do dispositivo constitucional revela-nos que na ocorrência de emenda pela Casa revisora ao Projeto Originário, a norma constitucional estabelece uma única alternativa possível: a de retornar à Casa Iniciadora.

In casu, a atuação do Congresso nacional é absolutamente vinculada ao comando do art. 65 e parágrafo único, porquanto tal dispositivo não deixou opções outras, senão aquela contida em seu preceito.

Não se trata, pois, de ato interna corporis, pois a norma constitucional referida utiliza comando preciso, vocábulos unissignificativos, não conferindo ao Legislativo qualquer margem de apreciação subjetiva."

E adiante se conclui:

"Não integrando o comando do art. 65, e parágrafo único, da CF os denominados atos interna corporis do Congresso Nacional, concluímos que ao Poder Judiciário não haverá qualquer restrição em seu exame, podendo, inclusive, decretar nulidade quando ausente a conformidade do ato à Lei" [17].

De tal sorte que, para nós, tais vícios poderiam ser objeto, como já ocorreu, de apreciação judicial.

Por fim, quer ainda nos parecer que sequer estaria no campo da lei ordinária a instituição do tributo em estudo.

A nosso ver, a CPMF deveria ser instituída mediante lei complementar.

Com efeito, entendemos que a CPMF é uma contribuição para a Seguridade Social que se enquadra no art. 195, §4º da CF/88 e deve observância, pois, aos preceitos do art. 154, inc. I da CF/88.

Corroborando dita assertiva, diz Roque Antônio Carraza:

"Muito bem, a CPMF é, sem dúvida, uma contribuição social para a Seguridade Social, que, não estando prevista nos incisos I a III do art. 195 da Constituição Federal, só podia encontrar fundamento de validade no §4º deste mesmo artigo.

Assim, devia ter sido criada por meio de lei complementar, que: a) a submetesse ao princípio da não-cumulatividade; b) não lhe desse hipótese de incidência e base de cálculo idênticas às dos impostos arrolados nos arts. 153, 155 e 156 da Constituição Federal; e c) destinasse 20% do produto de sua arrecadação aos Estados e ao Distrito Federal.

Ora, nada disso aconteceu, porquanto a CPMF, em função da Emenda Constitucional n. 12/96, foi criada por meio de lei ordinária ( a Lei n. 9.311/96, ao depois ‘prorrogada’ pela Lei n. 9.539/97), que a tornou cumulativa, imprimiu-lhe base de cálculo coincidente com a do IOF ( um dos discriminados na Constituição, mas precisamente em seu art. 153, V) e não destinou 20% do produto de sua arrecadação aos Estados e ao Distrito Federal. Esta situação inconstitucional foi mantida pela Emenda Constitucional n. 21/99" [18].

Sobre a autora
Gisele Clozer Pinheiro Garcia

advogada em Campinas (SP), especialista em Direito Tributário pela PUC/Campinas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCIA, Gisele Clozer Pinheiro. A inconstitucionalidade da CPMF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 347, 19 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5306. Acesso em: 5 nov. 2024.

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