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Considerações acerca da migração sob o panorama da nova Lei de Migração

Uma análise crítica sobre o futuro da migração no Brasil frente ao cenário atual do Direito Internacional

Agenda 02/11/2016 às 20:48

Uma nova lei que trata sobre a questão da migração no Brasil pode entrar em vigor. Trata-se do projeto que institui a Lei de Migração, cujo propósito é revogar o Estatuto do Estrangeiro, que já não atende as demandas do atual cenário internacional.

Introdução

Tramita na Câmara dos Deputados o texto do PL nº 2.516/2015, que se propõe a ser o mais novo marco jurídico brasileiro no que se refere ao migrante. Conhecido originalmente como PLS nº 288/2013, de autoria do Senado Federal, o texto desse projeto de lei visa revogar a atual legislação sobre migração no país e instituir uma nova lei, denominada Lei de Migração[1].

A legislação atualmente em vigor que aborda o assunto, conhecida como Estatuto do Estrangeiro, é considerada por muitos críticos como incompatível com o paradigma jurídico vivido pelo Brasil e pelo mundo no que implica à questão da migração. Desse modo, o texto do projeto de lei, se aprovado, pode ser considerado um grande avanço em termos de migração no país. Nesse sentido, é possível questionar quais são as barreiras e enfrentamentos que a Lei de Migração terá que superar, bem como qual o papel que ela visa assumir diante do estrangeiro no contexto mundial de hoje.

Para tanto, busca-se por meio desse artigo fazer um paralelo entre a atual legislação, o Estatuto do Estrangeiro, e o projeto da Lei de Migração, analisando de maneira crítica alguns panoramas divergentes entre essas duas legislações.


A MIGRAÇÃO E O ESTRANGEIRO, SEGUNDO O ESTATUTO DO ESTRANGEIRO

Seja para o Estatuto do Estrangeiro ou para o projeto da Lei de Migração, o principal objeto de regulamentação desses textos é o estrangeiro e sua forma de migração. De tal modo, faz-se indispensável algumas considerações sobre essa temática.

Entender o estrangeiro requer entender, previamente, o nacional. Foge ao propósito deste artigo esmiuçar os detalhes referentes à nacionalidade, mas será explanado o necessário para compreensão do tema originalmente proposto. No entendimento de Rezek, nacionalidade pode ser compreendida como o vínculo político que constitui a relação entre o Estado, na condição de soberano, e o indivíduo[2]. Em síntese, nacionalidade é uma livre atribuição feita por parte do Estado, seja pelo critério jus solis, que considera o território, seja pelo jus sanguinis, que leva em conta a relação de parentesco.

Do mesmo modo, também é de livre atribuição do Estado a denominação do estrangeiro. Segundo Varella, “Ainda que alguém tenha nascido no território de um Estado, ele não será necessariamente considerado nacional deste”[3]. Portanto, entende-se que a definição de estrangeiro é faculdade de um Estado, isto é, uma liberdade de escolha do Direito Interno.

Cumpre-se ressaltar que o Direito Internacional Público confere tratamento e tutela ao estrangeiro, não estando este desamparado pelas normas internacionais. Varella também nos destaca que o Direito Internacional possui métodos de conferir proteção ao estrangeiro, e que o Estado deve garantir os direitos fundamentais do indivíduo não nacional, mesmo que este esteja apenas de passagem pelo país[4].

Uma vez entendidos os conceitos básicos, porém fundamentais, do que é o estrangeiro frente ao Direito Internacional, é possível prosseguir para o entendimento do contexto histórico e político no qual o Estatuto do Estrangeiro se encontrava à época de sua criação, bem como o modo que essa legislação aborda o estrangeiro e a migração.

Conhecida simplesmente por Estatuto do Estrangeiro, a lei nº 6.815/80 é a principal legislação da ordem nacional que versa sobre o estrangeiro e, por consequência, sobre a imigração. Criado em 19 de agosto de 1980, o Estatuto do Estrangeiro foi uma lei promulgada dentro do regime militar pelo qual o Brasil passou, mais especificamente sob o governo de João Figueiredo.

Por conta desse contexto histórico, o Estatuto do Estrangeiro herdou diversas das características que também estão presentes nas demais produções normativas desse período, dentre as quais é possível citar o protecionismo, o nacionalismo e, em alguns pontos, a discriminação a grupos sociais ou políticos.

No momento de sua edição, o Estatuto do Estrangeiro tinha como foco a proteção nacional, atribuindo ao estrangeiro a perspectiva de que este era um possível inimigo dos interesses nacionais. Nesse segmento, de forma prévia e antecipada, o estrangeiro tinha aplicado contra si um tratamento policialesco e preconceituoso, ou seja, não havia uma visão neutra e amistosa, mas uma visão de desconfiança.

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O principal a se entender da forma como o Estatuto do Estrangeiro dispendia tratamento ao estrangeiro era a noção de que, como ameaça, o não nacional teria a sua entrada condicionada aos aspectos subjetivos de interesse do governo. Em caso de estrangeiro já presente no Brasil, mas que, por algum motivo, não se enquadrava dentro dos interesses nacionais da época, o Estatuto do Estrangeiro possuía institutos como o da expulsão, que foram utilizados como forma de discriminação política e social de estrangeiros.


A NOVA LEI DE MIGRAÇÃO: A TROCA DE VELHAS PERSPECTIVAS POR NOVOS CONCEITOS.

Antes de qualquer análise sobre a Lei de Migração, é preciso esclarecer que os aspectos e pontos de vista críticos aqui abordados são frutos de um projeto de lei e que alterações nesse projeto podem ocorrer até sua promulgação. Ainda assim, dado o avançado trâmite no qual o texto do projeto da Lei de Migração se encontra dentro do Congresso Nacional[5], são improváveis de acontecer mudanças substanciais capazes de alterar o sentido dos pontos de abordagem deste artigo.

Dentre os diversos pontos de destaque que o projeto de lei que objetiva instaurar a nova Lei de Migração apresenta, alguns merecem uma melhor apreciação, como o seu objetivo fundamental e as principais mudanças que podem ocorrer futuramente.

O primeiro ponto de menção é o objetivo principal e maior do projeto da Lei de Migração: superar o paradigma definido do Estatuto do Estrangeiro. Abandonando princípios típicos da época do regime militar e adotando normas compatíveis com o paradigma moderno do Direito Internacional Público, o projeto da Lei de Migração possui um texto que se assemelha mais aos propostos dos direitos humanos consagrados no mundo, bem como atende de maneira muito mais eficiente os princípios da Constituição Federal de 1988.

Como antes explanado, o Estatuto do Estrangeiro possui uma visão protecionista e fechada para si sobre o estrangeiro. Não bastasse, ainda existem diversas modificações de leis complementares, resoluções do Conselho Nacional de Imigração, portarias, disposições dos órgãos de migração, como o Ministério das Relações Exteriores e a Polícia Federal, todos com intuito de tentar adequar o Estatuto do Estrangeiro ao novo período democrático instituído em 1988.

Portanto, a inadequação da atual legislação ao contexto moderno não se limita somente a termos principiológicos, mas também a termos de produção normativa. Trata-se de uma legislação que sobrevive em total discordância com uma boa eficiência normativa e não se sustenta corretamente com os princípios de um estado democrático de direito.

Outro assunto a ser colocado sob foco quanto ao projeto da Lei de Migração é o fato de que este possui abrangência muito superior ao Estatuto do Estrangeiro. A abrangência de que aqui se trata está relacionada ao fato de se adotar não apenas a figura do imigrante, mas do migrante como um todo. Assim, inclui-se as duas principais facetas da migração, quais sejam: o imigrante e o emigrante, esta última negligenciada pelo Estatuto do Estrangeiro.

Essa característica de universalidade decorre do novo cenário mundial, fruto da integralização entre as nações, o que destaca as mudanças de pensamentos sobre como os países estão lidando com as mudanças nos fluxos migratórios.

Enfatiza-se que diversas normas internacionais inspiraram o projeto da Lei de Migração, dentro do aspecto de observar o estrangeiro de uma forma mais abrangente, como antes mencionado. Dessas produções normativas do Direito Internacional Público, é possível citar o Acordo de Residência do Mercosul e Associados[6], que permite que nacionais de Estados membros do Mercosul possuam tratamento de entrada e residência temporária ou permanente diferenciado no Brasil.

Um outro ponto de vista que a Lei de Migração se propõe a superar em relação ao Estatuto do Estrangeiro é a noção da não criminalização da migração. Cumpre-se ressaltar que a adoção do princípio da não criminalização da migração, implementado pela Lei de Migração, não está relacionado ao migrante que comete algum crime no Brasil, mas tão somente à tentativa de se evitar a criminalização da mobilidade.

Para fundamentar esse argumento, cita-se a expulsão. Presente no Estatuto do Estrangeiro, a expulsão, sob certas condições, permite penalizar por meio de pena privativa de liberdade o estrangeiro que retorne ao país. Portanto, o que se considera crime é o fato de regressar ao Brasil enquanto na condição de expulso, ou seja, tipificando o deslocamento, a mobilidade. Aponta-se, inclusive, a possível inconstitucionalidade desse instituto sob essa perspectiva, visto que é impossível o retorno legal ao país enquanto a expulsão vigorar. Essa imprevisibilidade de duração da expulsão pode ser avaliada como uma pena de caráter perpétuo, que, apesar de se aplicar ao estrangeiro, entra em discordância com os princípios republicanos da Carta de 1988 e demais tratados ratificados pelo Brasil.

Há, sim, segundo o projeto de lei, a possibilidade de instituir fatos relacionados à migração como crime, como é o caso do “coiote”. Todavia, não se trata de criminalizar a mobilidade do migrante, mas, sim, as práticas de não migrantes que violam direitos humanos e exploram a dignidade da pessoa humana.

Outro aspecto de grande relevância para o Direito Internacional trazido pelo projeto da Lei de Migração é a atenção conferida ao apátrida. Segundo Varella, os apátridas são os indivíduos que não possuem nacionalidade ou que tiveram essa condição negada por um Estado. Trata-se de um conflito negativo de nacionalidade, situação considerada extremamente prejudicial pelos Estados e Organizações Internacionais, que pode provocar instabilidades de nível internacional[7].

Considerado de forma irrisória e paralela pelo Estatuto do Estrangeiro, o apátrida passa a receber o devido tratamento normativo, considerando-se inclusive normas internacionais provenientes de tratados, como a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954, ratificado pelo Brasil[8]. O projeto da Lei de Migração reconhece a existência do apátrida, que pode até ter sua nacionalidade reconhecida por um Estado, mas que não possui amparo e proteção por parte deste.

Um último ponto de destaque do projeto da Lei de Migração é com relação à recepção do migrante no país. O sistema de vistos é, talvez, o tema que possui aplicação prática mais direta para o estrangeiro. Pelo projeto de lei, será feita uma reformulação da política de vistos no país, com instituição de novos modelos e extinção de outros.

Diversas mudanças substanciais foram feitas nesse quesito, como o estabelecimento de um novo conjunto de vistos temporários, bem como a extinção do visto de permanência em virtude de uma nova política de residência. Novas modalidades de vistos foram criadas, dentre as quais é possível citar os vistos de saúde, de trabalho sem vínculo de emprego e de acolhida humanitária.

A questão da renovação do sistema de vistos, principalmente com a substituição do visto de permanência por uma política de residência, pode gerar alguns questionamentos quanto a uma possível facilidade para o aumento de imigrantes em situação irregular no Brasil. Todavia, o efeito é justamente o contrário, afinal, com a nova política e novos tipos de vistos para o trabalhador estrangeiro, mais possibilidades de adequação de fato ao direito ocorrerão. A consequência direta é a redução de pessoas irregulares, maior arrecadação para o governo e maior observância aos direitos humanos.


CONCLUSÃO

A migração é um fenômeno muito antigo e que passou por inúmeras mudanças com o passar do tempo. As normas jurídicas que regulam a migração devem, do mesmo modo, acompanhar essas mudanças. No contexto brasileiro, o Estatuto do Estrangeiro se encontra em desarmonia com o modelo normativo migratório atualmente proposto pelo Direito Internacional Público.

Se aprovado, o projeto da Lei de Migração assume o importante papel de superar o legado que o Estatuto do Estrangeiro impôs. Esse artigo se propôs a apresentar alguns dos principais motivos pelos quais o projeto da Lei de Migração se constitui como uma necessária mudança pela qual as normas migratórias brasileiras precisam passar. Nesse sentido, entende-se pelos pontos de vista críticos aqui expostos que, apesar de não estar acima de reprovações, o projeto da Lei de Migração é mais um importante passo para que o Brasil se integre mais no paradigma atual da comunidade internacional.


Notas

[1] O PLS nº 288/2013 é o projeto de lei iniciado no Senado Federal, que ganhou designação de PL nº 2.516/2015 na Câmara dos Deputados.

[2] REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 218.

[3] VARELLA, Marcelo D. Direito internacional público. 4 ed. São Paulo, 2012, p. 196.

[4] VARELLA, Marcelo D. Direito internacional público. 4 ed. São Paulo, 2012, p. 196.

[5] O PL nº 2.516/2015 se encontra, no mento de produção desse artigo, em regime de prioridade de tramitação, sujeito à votação pelo plenário da Câmara dos Deputados.

[6] O Acordo de Residência do Mercosul e Associados foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto nº 6.975/2009.

[7] O que é a apatridia? Disponível em: <http://www.acnur.org/portugues/quem-ajudamos/apatridas/o-que-e-a-apatridia/>.

[8] Promulgado no Brasil pelo Decreto nº 4.246/2002.

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