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Princípio da impessoalidade na Administração Pública:

importância, necessidade e consequências de sua não-observância

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Agenda 21/12/2016 às 13:24

A grande dificuldade no exercício e no respeito à impessoalidade refere-se à existência de uma cultura nacional que não consegue ver dissociados os interesses particulares de um pequeno grupo das necessidades coletivas de todos os governados.

RESUMO: Este artigo versa sobre o princípio da impessoalidade na administração pública, buscando avaliar a importância deste como aspecto essencial a um modelo de gestão que se pretende ancorado na isonomia, na justiça material e na boa fé das decisões. Em todo o texto será defendida a necessidade de se atentar a tal princípio que, expresso no artigo 37 da Constituição Federal, norteia e orienta um novo modelo de gestão. Tal modelo deve adequar-se à premissa de que ao administrador incumbe-se a tarefa de aplicar recursos humanos e materiais para o alcance do bem comum. A partir de breve e sucinta análise do surgimento e da evolução da Administração Pública, pretende-se demonstrar a importância e as implicações do princípio da impessoalidade para uma gestão delimitada pela legalidade, pela justiça e pela isonomia das decisões. O escopo final é a demonstração de que não pode a Administração Pública servir de espaço para a satisfação de interesses pessoais ou de grupos específicos. Em sede de conclusão, o estudo reafirma a necessidade de um paradigma de administração que de fato priorize o interesse público e a igualdade de oportunidades para acesso aos serviços ofertados, sob pena de vermos perpetuar modelos de gestão que servem meramente a benefícios pessoais e ao locupletamento dos grupos que se encontram no poder.

PALAVRAS-CHAVE: Administração pública. Princípios. Impessoalidade


INTRODUÇÃO

A Administração Pública é faculdade exercida mediante a expressa observância de uma ampla legislação que regulamenta atos e disciplina todas as ações do governante. Assim, durante o exercício do poder, o administrador está condicionado a agir somente a partir do respeito e obediência a princípios que devem balizar e orientar todas as ações por ele gerenciadas. No cenário brasileiro esta diretriz se fortaleceu sobremaneira com a sanção da Constituição Federal, que em seu artigo 37 determina a obediência permanente do administrador a princípios básicos que irão orientar-lhe no exercício do poder. Ao mesmo tempo, tais princípios garantirão a proteção e a primazia dos interesses coletivos em detrimento de opções e preferências pessoais do governante ou de seu grupo político.

Nasce daí a inegável importância dos princípios contidos no artigo 37: tais princípios são, em última análise, um conjunto de garantias de que o bem público não deve ser confundido como ferramenta destinada à promoção e enriquecimento pessoal ou ao favorecimento dos governantes. A importância destes se justifica, à medida que a realidade prática ainda está, em muitos casos, em dissonância com a legislação sobre a matéria.

Ou seja, no cenário brasileiro ainda são recorrentes os exemplos de utilização do bem público e do poder como alternativa para garantia de interesses pessoais e de grupos. Atenta a esta questão, esta pesquisa discute a importância do princípio da impessoalidade como instrumento que busca fortalecer a primazia do interesse público. Considerando que a impessoalidade deve ser a marca de todos os projetos de governo, torna-se, pois, explícito, que ao governante é defeso o direito de se utilizar do poder e dos recursos a ele inerentes para promoção pessoal ou para favorecimento material.

As discussões aqui propostas serão iniciadas a partir de uma concisa digressão histórica em que se retoma o surgimento da Administração Pública, passando por sua evolução, até a consolidação do momento histórico em que hoje nos encontramos. Posteriormente, será discutida a importância dos princípios que informam e orientam a Administração Pública, sempre destacando que a existência destes tem como justificativa clara o pressuposto de que o exercício do governo na esfera pública deve ser norteado por diretrizes que garantirão a primazia dos interesses coletivos.

Finalmente, o texto enfatiza a complexidade e a ampla extensão do princípio da impessoalidade na Administração Pública, avaliando a crucialidade do mesmo em todas as esferas de poder. Na avaliação deste princípio, a abordagem proposta buscará enfatizar o papel do administrador e do bem público como instrumento garantidor do bem estar da coletividade; ao mesmo tempo, tal princípio será tratado como mecanismo que impõe a este administrador uma obediência permanente a ditames legais.

As considerações feitas reforçam e reconhecem a evolução histórica que buscou desconstruir um modelo de administração que garantia ao governante poderes absolutos e ilimitados, ao mesmo tempo em que confundia os interesses deste com os interesses coletivos: sempre, evidentemente, com a prevalência final dos interesses do governante. Entretanto, a despeito desta evolução histórica, as reflexões pontuam que apesar das orientações legais já expressas na Constituição Federal, a realidade observada ainda denuncia a perpetuação de modelos e de governantes que não reconhecem o exercício do poder como estratégia para garantia do bem comum. Esta constatação demonstra que ainda se faz necessária uma ampla mobilização social para que o cidadão se reconheça como legítimo detentor de direitos, ao mesmo tempo em que fará reconhecer que o gestor público deve ser visto como agente à serviço do bem estar coletivo, como já preconizara a Constituição Federal.


GÊNESE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A Administração Pública, no modelo como hoje a conhecemos, é fruto das mudanças históricas advindas com o fim do Absolutismo. De fato, foi somente a partir da consagração do Estado de Direito, que se define o modelo que, no dizer de MELLO (2009) traduz-se em uma antítese ao período histórico precedente- o do Estado de Polícia, ao disciplinar o exercício do Poder, sua contenção e a inauguração dos direitos dos, já agora administrados- não mais súditos.

De fato, a passagem do Absolutismo para o Estado de Direito consagra um modelo onde o cidadão não mais se curva unilateralmente à vontade do soberano. O surgimento da “Lei”, enquanto essência e sustentáculo das decisões tomadas é um dos grandes marcos do período: assim, a vontade unilateral do soberano é substituída por diretrizes de ação que, quando desobedecidas ou não observadas implicam na aplicação de sanções, tais como anulação dos atos ou responsabilização dos governantes.

Paulatinamente o fenômeno da Administração Pública se reveste de princípios legais que orientam a tomada das decisões. Deste modo, acima da vontade dos governantes paira um arcabouço teórico, legal e político, socialmente construído, que serve de norte e diretriz para que estes desempenhem a função administrativa.

Assim, na atualidade, o Estado deve encontrar na Administração Pública todos os instrumentos indispensáveis à execução das tarefas para as quais foi criado, dentre elas, a gestão e tutela dos interesses e do bem-estar da coletividade, com vistas ao progresso social de todos.

Neste raciocínio de intelecção DI PIETRO (2002) leciona que a Administração Pública pode ser definida como a atividade concreta e imediata que o Estado desenvolve, sob regime jurídico de direito público, para a consecução dos interesses coletivos. (DI PIETRO, 2002, p.61)

Deste modo compreende-se que a expressão “administrar” refere-se à gestão de interesses segundo diretrizes emanadas da lei e da moral, com o intuito de proteger e resguardar corretamente os bens entregues à guarda e conservação daquele que ocupa cargo público. Assim, mais precisamente, a Administração Pública pode ser definida como a gestão de bens e interesses pertencentes à comunidade, seja em âmbito federal, estadual ou municipal. O conceito se amplia quando percebemos que tal gestão deverá guiar-se em consonância com preceitos oriundos do Direito e da Moral.  O objetivo final deste modelo de gestão, alicerçado nos princípios ora explicitados é a busca do bem comum.

Portanto, nesta nova seara, consagrada especialmente a partir do fim do Absolutismo, o surgimento de princípios fundamentais que orientam a ação dos administradores é um marco considerável, visto que a partir deles, deverá o governante, adequar decisões, planejamentos e estratégias de atuação e de ação, conformando a utilização dos recursos humanos e materiais aos mesmos. A disposição em contrário implica em diversas consequências legais para os gestores, vez que a legislação cada vez mais busca proteger o bem público e impor sanções àqueles que dele se utilizam de maneira diversa.

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Em importante reflexão, CAMARGO, (2014), assim afirma:

A transcendência dos princípios fica cabalmente demonstrada em especial nas relações jurídicas administrativas nas quais, aparentemente, o predomínio pende para a Administração Pública. É dos princípios constitucionais a responsabilidade de equilibrar o contexto das relações em respeito à dignidade de homens e mulheres ou dos cidadãos ou, em outros termos, é o princípio que transforma a relação Administração-pessoa física e jurídica em um processo equitativo e unânime, obstando eventuais abusos do poder público. (CAMARGO: 2014, 29-30)

No caso brasileiro, a Constituição Federal de 1988 consagra, em seu artigo 37 sólidos princípios que orientam a atuação dos administradores em todas as esferas. O artigo assim afirma, in verbis:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte (...) (BRASIL, Constituição Federal de 1988)

Assim, embora em todo o corpo da Constituição Federal possam ser encontrados outros princípios implícitos, o artigo em comento tornou-se uma referência obrigatória para administradores e para a gestão pública em geral, vez que apresenta, de forma clara e explícita, um rol taxativo de diretrizes obrigatórias para o administrador público. O caráter de obrigatoriedade e de imposição dos quais se revestem os princípios, não permitem, pois, ao administrador o exercício do livre-arbítrio na opção por segui-los, uma vez que são atores determinantes para a realização de uma administração pública que se adéqua aos moldes legais.

Citando KELSEN (1999), podemos afirmar que a constituição representa o escalão de Direito positivo mais elevado (KELSEN, 1999:247): assim, os dispositivos dela emanados devem condicionar as diretrizes governamentais. Avaliando a riqueza desta proposição, podemos retomar as discussões propostas por ZANOTTI (2016), quando o autor menciona o grau de importância dos princípios contidos na Constituição Federal. Afirma o autor que:

Tal estrutura busca, precipuamente, a manutenção de certos princípios, ou, ainda, da estrutura do Estado, os quais são valores superiores aos demais presentes em leis infraconstitucionais ou atos administrativos. O sistema constitucional brasileiro tem na Constituição o seu núcleo máximo e fundamentador de toda uma ordem jurídica, encontrando nela o suporte de validade de qualquer enunciado normativo ou decisão judicial. (ZANOTTI, 2016: 33)

Destarte, os preceitos constitucionais traduzem-se em princípios orientadores e informadores de todas as ações executadas pelo gestor. Ou, conforme já explicitado por CAMARGO (2014):

São os princípios constitucionais e infraconstitucionais que indicam o caminho a seguir na elaboração da resposta à situação em tensão e essa lacuna, entre a norma e a práxis, deverá ser preenchida pela apreciação valorativa das circunstâncias, adaptando-se a lei ao caso concreto ou à realidade relacional do mundo da vida. (CAMARGO, 14: 26)

Em suma, a obrigatória observância dos princípios é condição indispensável para que a Administração Pública atue com justiça, com padrões éticos e moralmente aceitáveis. A imposição de um dever-poder ao gestor público, enquanto reflexo desta realidade, demonstra, como já fora explicitado, que as decisões a serem tomadas pela administração não devem deixar a descoberto mínimas garantias de bem estar da coletividade e do interesse público.

A faculdade de oferecer padrões de segurança jurídica aos cidadãos é elemento que reforça e legitima a necessidade dos princípios, justificando, pois, a imprescindibilidade destes para a concretização do Estado de Direito, conforme preceitua ESPÍNDOLA (1988)

Os Princípios Constitucionais não apregoam apenas uma natureza jurídica, mas também política, ideológica e social, porém, estas características encontram-se normativamente predominantes, e são entendidas como a concretização do Direito no sentido mais amplo possível, alcançando as diversas organizações e procedimentos vigentes. (ESPÍNDOLA: 1998, p 76)

Aduzimos, pois, que a “função” dos princípios que informam a Administração Pública tem relação direta com uma faculdade de regulação e controle das ações propostas pelo gestor e pela equipe de comando que com ele governa. Assim, desde o momento histórico em que fazem nascer e difundir um novo modelo em que o Estado e seus recursos não são propriedade exclusiva dos governantes que deles podem dispor, os princípios informadores da Administração Pública são um marco definitivo do paradigma de que o Poder Público não é espaço ou caminho para promoção pessoal ou lugar de exercício de preferências ou opções particulares: desconstrói-se, por fim, o paradigma que confunde a vontade pessoal dos governantes com a noção de bem estar coletivo.


O PRINCÍPIO DA IMPESSOALIDADE NA ADMINSITRAÇÃO PÚBLICA

Feitas as considerações iniciais sobre os princípios contidos no artigo 37 da Constituição Federal, a avaliação criteriosa da impessoalidade na Administração Pública nos permite vislumbrar que a busca do bem comum e da igualdade de oportunidades deve nortear permanentemente as políticas de gestão desenvolvidas por administradores em todas as esferas de poder.

FERREIRA (2004) nos ensina que o vocábulo impessoal significa o que não se refere ou não e dirige a uma pessoa em particular, mas às pessoas em geral (FERREIRA, 2004, 837). Opõe-se, pois, ao uso pessoal e particular da máquina pública para que, através dela, o administrador concretize vontades pessoais: as diretrizes adotadas pela administração deslocam-se da vontade do administrador - modelo tão em voga nos Estados Absolutistas- para a consagração da soberania popular como orientação para a tomada de decisões.

Assim, inicialmente podemos nos reportar às reflexões de ÁVILA (2010), quando esta disserta que:

A impessoalidade restará como o princípio que impõe à Administração Pública o dever de respeitar o direito de igualdade dos Administrados e de não se valer da máquina pública para lograr proveito pessoal ou de outrem; o dever de proceder com objetividade na escolha dos meios necessários para a satisfação do bem comum; o dever de imparcialidade do administrador quando da prática de atos e decisões que afetem interesses privados perante a Administração, e, inclusive, na decisão sobre o conteúdo dos interesses públicos em concreto; o dever de neutralidade do administrador, que deve caracterizar a postura institucional da Administração e determinar aos agentes públicos o dever de não deixar que suas convicções políticas, partidárias ou ideológicas interfiram no desempenho de sua atividade funcional; e, ainda, na sua exteriorização, o dever de transparência. (ÁVILA, 2010)

Conforme já fora citado, o fortalecimento do atual modelo de Administração Pública determina um novo paradigma de gerenciamento e de gestão: desconstrói-se o perfil em que existem “súditos”, ante o surgimento de “administrados”. Assim, administrar gradativamente assume um caráter de cuidado com os bens públicos, o que difunde e fortalece o paradigma de que o ao administrador foi chancelada a tutela dos interesses coletivos e da comunidade, de modo que todas as decisões por ele tomadas terão como fim a defesa e a garantia de tais interesses.

Ademais, o próprio enquadramento de princípios que implícita ou explicitamente regem a Administração Pública demonstra que o gestor público possui uma liberdade de agir e de gerenciar moldada em diretrizes às quais deverá sempre respeitar. Assim, a liberdade para agir e tomar decisões fica adstrita à permanente obediência a tais princípios.

Diante do que foi versado em razão dos Princípios Constitucionais, não há como negar a sua natureza de Norma, de lei, de preceito jurídico, ainda que com características funcionais e estruturais distintas de outras Normas, como as regras de direito. No entanto, os Princípios Constitucionais expressam opções políticas fundamentais, configuram eleição de valores éticos e sociais como fundantes de uma ideia de Estado e de Sociedade. (ESPÍNDOLA: 1998, p 76)

Entretanto, a publicidade recente tem dado espaço cada vez maior aos casos de desvios de comportamento que reduzem a Administração Pública a uma clara oportunidade para a promoção pessoal, a defesa de interesses particulares ou de grupos específicos, e, ainda pior, para o enriquecimento pessoal a partir do uso do dinheiro público.

Assim, embora a literatura sobre o tema já apresente farto material acerca da observância imperiosa dos princípios constitucionais implícitos e explícitos para uma boa gestão do patrimônio público, a realidade ainda vai de encontro aos ditames legais: as recorrentes denúncias de má gestão, de desvio de finalidade e de aproveitamento pessoal do bem público não são a exceção, especialmente no cenário brasileiro.

A herança patrimonialista brasileira, tradição fortemente arraigada em nossa “cultura’ ainda não difundiu totalmente a ideia de que o bem público servirá prioritariamente aos interesses da coletividade. Assim, recorrentes são os episódios em que o gestor, valendo-se dos supostos “benefícios” que lhe concede o cargo, utiliza a função pública como estratégia ou caminho para promoção e benefício de grupos, ou, ao contrário, para punição e exclusão de outros.

A jurisprudência pátria é farta em julgados acerca da matéria, o que demonstra, de forma inequívoca que ainda persiste na cultura da administração pública brasileira a dificuldade em separar o bem público dos interesses pessoais. Ademais, a própria construção do paradigma de que os cargos públicos, principalmente aqueles preenchidos pela via eletiva são uma oportunidade de “emprego” para indivíduos sem colocação no mercado do trabalho reforça e reitera a perpetuação de práticas dissonantes da moderna concepção legal de Administração Pública e de gestor público em sua verdadeira essência.

Para autoras como FIGUEIREDO (1988) é essencial buscar a relação entre o princípio da impessoalidade e imparcialidade, tendo em vista a imperiosa obrigação de que o administrador dê primazia à mais completa isenção pessoal durante o exercício das funções que legalmente lhe foram atribuídas a partir do binômio dever-poder. O exercício desta isenção, de acordo com a autora, fortalecerá a neutralidade do administrador independentemente de quaisquer interesses pessoais, políticos ou partidários.

 Esta avaliação permite-nos aprofundar e visualizar o paradigma de que o princípio da impessoalidade sustenta a primazia da neutralidade do administrador e de toda a gestão pública, dando sustentáculo ao sentimento de segurança jurídica que deve ser percebido e incorporado por todos os cidadãos.

Para autores como ANDRADE (2003) o princípio da impessoalidade pode estar ligada a três ideias ou concepções, a saber: vedar o subjetivismo da vontade e dos atos do administrador, delimitar a finalidade pública, ou, finalmente, equiparar a tal princípio à igualdade (ANDRADE, 2003, p. 85). Em todos os casos percebe-se a ideia de que acima da vontade pessoal do administrador paira a primazia do bem comum e do respeito aos interesses coletivos como referência para a Administração Pública.

Aduzimos, portanto que na Administração Pública o respeito cogente ao princípio da impessoalidade instrumentaliza a primazia dos interesses coletivos, mitigando ou proibindo quaisquer situações que sejam favorecedoras ou detrimentosas para outrem ou para grupos. Assim, em última análise, o respeito a este princípio fundamenta a proibição a resultados imbuídos de razões pessoais. Ademais, a literatura sobre o tema também é unânime em afirmar que o respeito a tal princípio não se reduz a mera obrigação jurídica, mas reveste-se de dever ético e moral.

Reportamo-nos, pois às reflexões de ZANOTTI (2016) quando este se refere ao Estado Democrático de Direito como guardião da igualdade e da justa aplicação dos bens públicos, quando este afirma que:

a primeira característica do Estado de Direito diz respeito ao asseguramento de direitos e garantias fundamentais a todos da sociedade, sem distinção de classe ou sem concessão de benesses a determinados grupos, (ZANOTTI, 2016:32)

A importância do princípio da impessoalidade traz a lume as sérias implicações e consequências de modelos de gestão que reduzem o patrimônio e os interesses públicos a estratégia e mecanismo para o alcance de favores e para a concretização de benefícios pessoais De acordo MEIRELLES (2013), ao desrespeitar tal princípio o agente incorre em desvio de finalidade, podendo, além disso, ser sancionado em atos tipificados como claro abuso de poder.

Em sede de definição compreendemos que o abuso de poder ocorre quando a autoridade, embora seja competente para praticar o ato, ultrapassa os limites de suas atribuições ou se desvia das finalidades administrativas (MEIRELLES, 2003).

O autor ainda faz alusão a dispositivos infraconstitucionais que, em resposta ao disposto no artigo 37 da Constituição Federal, disciplinam o exercício da Administração Pública, elencando rol explicativo de condutas que ferem diretamente o princípio da impessoalidade e configuram abuso de poder por parte dos gestores.

Como exemplo, cite-se o artigo 11 da lei n° 8.429/92 que assim dispõe:

Artigo 11- constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:

I- Praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência;

II- Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício;

III- Revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições e que deva permanecer em segredo;

IV- Negar publicidade aos atos oficiais;

V- Frustrar a licitude de concurso público;

VI-Deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo;

VII-  Revelar ou permitir que chegue ao conhecimento de terceiro, antes da respectiva divulgação oficial, teor de medida política ou econômica capaz de afetar o preço de mercadoria, bem ou serviço;

VIII-  Descumprir as normas relativas à celebração, fiscalização e aprovação de contas de parcerias firmadas pela administração pública. (BRASIL, Lei 8.429/92)

O amplo leque de condutas elencadas no rol acima nos permite uma clara visão de que o gestor público, no exercício das funções que lhe competem na Administração Pública não pode olvidar de sua função e responsabilidade em garantir a igualdade, a isenção nas decisões e a justiça material.

A não-observância ao princípio da impessoalidade pode ser a causa de inúmeros episódios de corrupção na Administração Pública. Para alguns autores, a probabilidade de desrespeito ao princípio em tela avoluma-se especialmente nos casos em que o administrador se ampara na discricionariedade para a tomada de decisões. Assim, em muitos casos, servirá a discricionariedade como escopo para o desrespeito ao princípio da impessoalidade, embora a própria lei determine que a discricionariedade difira de liberdade ampla e irrestrita.

Antes mesmo, nas próprias disposições preambulares de nossa Constituição Federal já se percebe um forte compromisso do legislador que, atento aos apelos de uma conjuntura social e política fortalecida com o fim da ditadura, buscou sedimentar a noção de bem público como interesse principal a ser defendido, garantido e buscado em todas as esferas da Administração Pública.

As mais recentes discussões acerca do desrespeito ao princípio da impessoalidade na Administração Pública fatalmente fazem alusão à Operação Lava Jato, que deflagrada pela Polícia Federal em março de 2014, ainda apresenta desdobramentos cujas consequências para os cofres públicos se mostram cada vez mais danosas. O rol de políticos envolvidos e de empresas citadas extrapola o mero partidarismo, vez que há claros indícios do envolvimento de políticos de diversos grupos e orientações, de acordo com as investigações feitas.

As notícias reiteradamente veiculadas acerca de tal operação revelam, pois, sistemáticos ataques ao princípio da impessoalidade na Administração Pública, visto que as denúncias permanentemente giram em torno da distribuição de privilégios, defesa de interesses particulares ou de grupos, a partir de desvios de altas quantias.

A constatação de argumentos deste jaez demonstram que ainda há conflitos entre o que diz a legislação e a doutrina e a realidade prática. Colacionam-se aqui, como exemplo, as reflexões de CUNHA (2016), quando este avalia o papel e a “função” do Estado, para compreendermos tal dissonância:

Quando o Estado atua, o que se dá por meio dos órgãos da Administração Pública, o faz vinculado à sua própria vontade manifestada por meio da lei. Mas qual é a vontade do Estado? Resumidamente, podemos afirmar que o Estado atua para garantir o bem comum por meio da manutenção da ordem e da criação de condições para que os indivíduos atinjam seus próprios fins de acordo com a ordem pré-estabelecida. Ou seja, o Estado não é um fim em si; atua sempre visando a um fim que lhe é superior. (CUNHA, 2016: 158)

Em interessante discussão sobre o tema da impessoalidade na Administração Pública, FILHO (2013), propõe reflexões acerca da necessidade de seleção deste princípio como balizador das atividades do gestor público. A justificativa para tais discussões centra-se, nos dizeres do autor, na premissa de que se do princípio da igualdade pode ser retirado que é vedado à administração pública tratar de modo discriminatório os administrados, qual a razão para falar-se em princípio da impessoalidade? (FILHO, 2003: 2)

A partir desta reflexão inicial o autor discute de forma bastante ampla acerca dos elementos que se coadunam para concretizar a existência do princípio da impessoalidade, decompondo o referido princípio em três desdobramentos principais:

Impessoalidade na Administração Pública >

- dever de objetividade

- dever de neutralidade

- dever de imparcialidade

A pertinência de tal desdobramento permite-nos verificar, ainda conforme este autor, que quando os tribunais devem enfrentar questões referentes à observância ou infração a tal princípio, quase sempre o fazem associando a impessoalidade a outros princípios, tais como a legalidade, a igualdade ou a moralidade, por exemplo. (FILHO, 2013: 2).

O amplo rol de argumentos e exemplos propostos pelo autor em tela nos dá, em síntese, a exata dimensão do tema para a Administração Pública, especialmente quando o autor é enfático ao afirmar que o comportamento da administração pública deve ser estabelecido previamente por intermédio de normas gerais e abstratas, produzidas democraticamente. (FILHO, 2013:4).

Esta urgência constitucional em tornar a impessoalidade um caminho para garantir que o comportamento da administração pública seja regulado por normas de conduta anteriormente estabelecidas, justificam, por exemplo, a posterior sanção da Lei 866/93: de fato, a Lei de Licitações pode ser considerada um dos mais claros e expressivos desdobramentos infraconstitucionais do artigo 37, XII, da Constituição Federal.

Assim, ao disciplinar todo o trâmite burocrático dos procedimentos licitatórios, aduz-se que o princípio da impessoalidade daí exsurge, quando se considera que

A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a administração, devendo ser processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos. (FILHO, 2013:5)

A pertinência de tais reflexões adquire consistência quando se constata que quaisquer procedimentos licitatórios devem tramitar sem surpresas ou mudanças bruscas para os interessados, especialmente após o início das atividades que compõem todo o processo. Ou, como bem pontuara FILHO (2013), o princípio da impessoalidade determina que a administração pública deve se apoiar na observância de parâmetros racionais de comportamento, restando excluídos atos, procedimentos e decisões administrativas subjetivas, arbitrárias, fundamentadas em critérios pessoais. (FILHO, 2013: 6)

Ademais, os critérios que determinam a escolha ou a eliminação dos interessados devem ser ampla e previamente conhecidos dos participantes, especialmente quando historicamente se constata que a licitação ainda é sobremaneira utilizada para finalidades diversas do interesse público e da coletividade.

Cite-se como exemplo o recente balanço divulgado pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo com dados relativos ao ano de 2015. Os dados coletados pelo balanço demonstram a preocupante informação de que um quarto dos 1.135 editais analisados pelo TCE no ano passado apresentava irregularidades. Com relação aos contratos firmados entre administrações públicas e empresas, a situação se mostra mais grave: dos 2.905 vistoriados, 45% apresentavam problemas.

Assim, a discussão em torno do princípio da impessoalidade, bem como de seus amplos desdobramentos para o administrador e para toda a coletividade, perpassa inúmeros modos de ação, atuação e princípios decisórios. Os desdobramentos poderão, por ação ou omissão, determinar a oferta de privilégios em relação a uns, ou posições detrimentosas em relação a outros, apoiadas em critérios de julgamento extremamente subjetivos ou pessoais. Finalmente, é mister considerar que passados mais de vinte anos da sanção de uma Constituição Federal que consolidou a Administração Pública como via de acesso para a garantia de igualdade entre todos os cidadãos, a realidade observada cada vez mais se distancia dos ditames constitucionais: assim, as discussões sobre a importância da matéria não estão esgotadas, tendo em vista que ainda se reproduzem episódios de utilização escusa do poder público.

Sobre os autores
Douglas Luis de Oliveira

Mestre e graduado pela Universidade Federal de Viçosa, coordenador do programa de pós-graduação em Direito e Gestão Pública, professor a área de Direito Público, nas Faculdades Univiçosa e Dinâmica.

Giana Braga

Bacharelanda em Direito na Faculdade Dinâmica de Ponte Nova/MG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Douglas Luis; BRAGA, Giana. Princípio da impessoalidade na Administração Pública:: importância, necessidade e consequências de sua não-observância. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4921, 21 dez. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/53869. Acesso em: 5 nov. 2024.

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