3.A DOUTRINA DO NÃO PRAZO
No processo penal, o problema da duração irrazoável é bastante grave, vez que acaba por violar diversas outras garantias constitucionais e direitos do acusado, ainda mais por prejudicar seu jus libertatis em havendo prisão preventiva, tornando-se mais que evidente a urgente necessidade de estabelecerem-se limites normativos (nulla coactio sine lege).
Ao não fixar um prazo certo, o legislador deixou uma enorme lacuna, não determinando instrumentos a serem empregados em caso de o prazo processual ser dilatado injustificadamente. Segundo a crítica de Paulo Hoffman:
“É lamentável constatar que, sem antes tomar medidas de ordem prática e sem que nada na ineficiente estrutura e nas condições do Poder Judiciário fosse alterado, a EC 45 simplesmente acresceu o parágrafo LXXVIII ao artigo 5º da Constituição Federal, para garantir o direito constitucional da razoável duração do processo no sistema brasileiro. Infelizmente, o simples acréscimo da Constituição Federal não modificará em nada a duração do processo. Trata-se, por ora, somente de mais uma garantia constitucional vazia.” [14]
O simples acréscimo de tal inciso no texto constitucional não tornou eficaz o princípio da celeridade do processo por não ter fixado prazo certo ao término do mesmo, havendo a necessidade de retificações de cunho legal.
Um exemplo de limite normativo interno encontra-se no Código de Processo Penal do Paraguai (Ley n. 1.286/1998). Ele, em sintonia com a CADH, estabelece que o prazo máximo de duração do processo penal será de 4 anos (arts. 136 e ss.), após o qual o juiz o declarará extinto, ex officio ou a requerimento do interessado, adotando este Código uma solução processual extintiva. Todavia, não permanece a vítima desamparada, vez que o art. 137 estabelece: “Quando se declarar extinto o processo pela morosidade judicial, a vítima deverá ser indenizada pelos funcionários responsáveis e pelo Estado. Presumir-se-á a negligência dos funcionários atuantes, salvo prova em contrário”.
Prevê também o art. 136 do Código paraguaio que: “Todos os incidentes, exceções, apelações e recursos pleiteados pelas partes suspendem automaticamente o prazo, que volta a correr assim que resolvido o que foi pleiteado. Esse prazo somente poderá estender-se por 12 meses quando houver uma sentença condenatória, a fim de permitir a tramitação recursal. A fuga ou rebeldia do imputado interromperá o prazo de duração do procedimento. Quando comparecer ou for capturado se reiniciará o prazo.” Além disso, fixa em seu art. 139 limite à fase pré-processual que, se superado, impede o exercício da ação penal.
Sem a definição dos prazos, a primeira garantia que cai por terra é a da jurisdicionalidade (nulla poena, nulla culpa sine iudicio), porque o processo se torna uma sanção penal anterior à sentença, através da estigmatização, da prolongada angústia, das prisões cautelares e da restrição de bens do acusado.
Além disso, fulmina-se a credibilidade acerca da defesa do acusado e juntamente a ela a presunção de inocência, ficando o direito de defesa e o próprio contraditório também afetados, na medida em que a excessiva prolongação do processo ocasiona graves dificuldades ao eficaz exercício da resistência processual, implicando também em sobrecusto financeiro ao acusado.
O que se tem hoje é a denominada doutrina dos três critérios, a saber: a) complexidade do caso; b) a atividade processual do interessado (imputado) e; c) a conduta das autoridades judiciárias, critérios estes sistematicamente invocados tanto pelo TEDH como pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Mas deve-se ressaltar, contudo, que a mera e isolada inobservância de algum prazo por si só não conduz, automaticamente, à violação do direito fundamental em análise, como ensina o Tribunal Constitucional da Espanha.[15]
Além dos três critérios apontados, é imprescindível analisar a questão do prazo à luz dos princípios da proporcionalidade ou razoabilidade, chamado este de “princípio dos princípios”. O conceito de razoabilidade é abstrato e aberto a ser analisado em face do caso concreto, sendo empregado como elemento integrador.
Por exemplo, é evidente que o acúmulo de serviço não pode ser admitido como escusa de responsabilidade perante a duração razoável do processo, vez que incumbe ao Estado organizar-se para satisfazer a demanda de tutela, não podendo beneficiar-se se sua própria torpeza. Se a demora ocorrer por atos de natureza manifestamente procrastinatória por parte do imputado, não há que se falar em dilação indevida, senão em atraso gerado e imputável à parte. Por outro lado, nos moldes da razoabilidade, se a demora for ocasionada por atividade da defesa, a dilação não se caracteriza como indevida, vez que a Constituição Federal brasileira assegura a ampla defesa ao acusado e todos os meios a ela inerentes.
No tocante à doutrina dos três critérios, têm-se a natureza do delito, a pena cominada e a complexidade do caso. Quanto à complexidade estrutural, fala-se em processos com grande número de partes ou corréus[16], ou a presença de uma fase instrutória autônoma no iter processual.[17] O art. 80 do CPP brasileiro permite a separação no caso de excessivo número de acusados, com o fito de não lhes prorrogar a prisão provisória. O STF já considerou haver excesso de prazo na prisão, violando o direito ao processo no prazo razoável, num caso em que o processo permaneceu paralisado, por aproximadamente 09 meses, aguardando o retorno de carta precatória expedida visando o interrogatório do corréu, sem que tenha sido determinado o desmembramento do feito.[18]
Quanto ao comportamento processual do imputado, dispõe o art. 8.2, “c”, da CADH, sobre as garantias judiciais, que:
“2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: c) concessão ao acusado do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa”.[19]
O comportamento processual do imputado, principalmente no processo penal, tem sido destacado tanto na jurisprudência quanto na doutrina para medir a duração razoável do processo. Primeiramente, a conduta do acusado é definida pelo mero exercício de direitos que a lei atribui a ele, como o direito ao silêncio, e consequentemente o direito de não produzir prova contra si mesmo, não podendo ser considerado como uma forma de retardar o processo, não se exigindo também a ativa cooperação do acusado para com a autoridade judiciária, não podendo ser punido por sua inércia.
Já o critério do comportamento das autoridades no processo e dos serventuários da Justiça deve ser analisado porque muitos dos atrasos na condução processual ocorrem, mormente, em razão da forma como foi conduzida a instrução por eles. Esse problema do “tempo morto” no processo judicial brasileiro, no que diz respeito à condução do processo, pode ter sua origem quer na deficiente direção da autoridade judiciária, quer na carência de meios ou de organização apta dos Tribunais dos estados. Neste caso, a responsabilidade é transferida do Poder Judiciário ao Executivo.[20]
Sugere-se como solução paliativa, a superar dificuldade momentâneas, que a ordem de escolha dos processos a ser julgados primeiramente tenha por critério norteador o grau de urgência e/ou a relevância do interesse debatido, ao invés do critério da ordem cronológica de suas distribuições. Todavia, em se tratando de crise estrutural, como a brasileira, não podendo a administração da Justiça adotar outras providências eficientes, responderá o Estado pelo retardamento processual.
Entre nós, grande parte do tempo morto poderia ser suprimida mediante uma maior racionalização da burocracia em demasia dos cartórios e secretarias de foros e tribunais, com o intuito de acelerar o tempo do processo sob o prisma de quem o sofre, diminuindo assim a pena-processo. Ressalta-se, contudo, que não se deve buscar uma agilização utilitarista, pela mera supressão de atos e atropelo de garantias processuais.
Até mesmo a esfera material carece de reformas. Dever-se-ia repensar nos limites e nos próprios fins do Direito Penal, manifestamente maximizado e inflado, e em muitas das vezes ultrapassado e até anacrônico com o dinamismo social na atualidade. Isso porque existe uma nítida relação entre o crescimento da demanda processual penal, decorrente da panpenalização, conhecida como “direito penal máximo”, e o tempo pelo qual eles acabam perdurando.
4.EM BUSCA DE SOLUÇÕES FRENTE À (DE)MORA JURISDICIONAL
A pergunta que se faz aqui é: “Qual a consequência da violação da obrigação estatal de proporcionar uma justiça tempestiva?”
Como espécies de possíveis soluções, têm-se as compensatórias (no âmbito civil e penal), as processuais e as sancionatórias. Quanto às compensatórias, na esfera civil, a solução seria a indenização dos danos materiais e/ou morais sofridos, mesmo em não tendo havido prisão preventiva. Porém, principalmente no Brasil, não se preocupa tanto com atos judiciários no tocante a omissões e erros judiciários ou atos que importem no retardamento da prestação jurisdicional. Embora a própria Constituição Federal preveja que “O Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença”, em seu art. 5º, inc. LXXV, infelizmente nosso ordenamento ainda não previu expressamente o ressarcimento de tais danos.
Sintetizando, são dois os problemas entre nós: a dificuldade que os tribunais têm em reconhecer e assumir o anormal funcionamento da justiça, no caso pela demora irrazoável do processo, e a elevada timidez dos valores fixados, frequentemente bastante aquém do mínimo que seria devido.
Quanto às soluções compensatórias de natureza penal, tenta-se eliminar o plus sancionador ocasionado pela demora processual. Não se trata apenas da detração em havendo prisão cautelar[21], como também em estando o réu em liberdade, constituindo-se em circunstância atenuante inominada, nos termos do art. 66[22] do Código Penal brasileiro, como uma relevante circunstância posterior ao crime.[23]
Desta forma, assumido o caráter punitivo do tempo, deveria o juiz compensar a demora ao reduzir a pena aplicada, vez que parcela da punição já foi efetivada pelo tempo, além da eventual detração em caso de prisão cautelar.
A 6ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul adotou uma solução compensatória de natureza penal completamente inovadora. No julgamento da apelação n. 70019476498, relatada pelo Des. Nereu José Giacomolli, j. 14.06.2007, o réu foi absolvido, para tentar compensar a duração irrazoável do processo. O acórdão, in verbis:
“ROUBO. TRANSCURSO DE MAIS DE SEIS ANOS ENTRE O FATO E A SENTENÇA. PROCESSO SIMPLES EM COMPLEXIDADE. ABSOLVIÇÃO. 1. O tempo transcorrido, no caso em tela, sepulta qualquer razoabilidade na duração do processo e influi na solução final. Fato e denúncia ocorridos há quase sete anos. O processo, entre o recebimento da denúncia e a sentença demorou mais de cinco anos. Somente a intimação do Ministério Público da sentença condenatória tardou quase de cinco meses. Aplicação do artigo 5º, LXXVIII. Processo sem complexidade a justificar a demora estatal. 2. Vítima e réu conhecidos; réu que pede perdão à vítima, já na fase policial; réu, vítima e testemunha que não mais lembram dos fatos”(grifos próprios).
Tratava-se de roubo qualificado pelo concurso de agentes em que foram subtraídos R$ 60,00 (sessenta reais), tendo o fato ocorrido em julho de 2000 e transcorrido 7 anos até o julgamento da apelação. O acórdão, além de invocar o inc. LXXVIII da CF, faz também expressa referência à Convenção Americana de Direitos Humanos, à Convenção Europeia de Direitos Humanos e ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, sendo que o art. 386, inc. VI, do CPP também poderia ter empregado, pelo qual o juiz absolverá o réu desde que reconheça circunstância que exclua o crime ou isente o réu de pena, ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência.
Já no tocante às soluções processuais, tem-se como a melhor resolução do problema em tela a extinção do feito, embora ela encontre sérias resistências. Alguns países determinam o arquivamento, vedando-se nova acusação pelo mesmo fato, ou a declaração de nulidade dos atos praticados após o limite da legítima duração processual. Porém, via de regra, há grande resistência em entender que a instrumentalidade processual visa coibir uma pena sem o devido processo legal, não havendo essa exigência quando não se aplicará pena nenhuma.
Assim, conforme Aury Lopes Junior[24], o Estado pode prescindir do instrumento se ele não for aplicar pena, absolvendo desde logo o imputado, apontando-se outras soluções processuais como a suspensão da execução, ou dispensabilidade da pena, o indulto[25] e a comutação[26].
Outra forma, mais atenuada, de dar uma solução processual seria o juiz, assim que fosse alcançado o prazo máximo de duração do processo, eventualmente previsto em lei, julgar o processo no estado em que ele se encontrasse, porém sem prejuízos para a defesa.
Na esfera das soluções sancionatórias, haveria influências no direito administrativo, civil e penal, neste último caso se a conduta configurar crime. Trata-se de punir o servidor ou a autoridade (juiz, promotor, e outros) que sejam os responsáveis pela dilação indevida. A Emenda Constitucional 45/2004, além de ter inserido o inc. LXXVIII no art. 5º da CF, no tocante à garantia do processo em prazo razoável, previu possível sanção administrativa ao juiz que der causa à demora, sendo a atual redação do art. 93, II, alínea e, da CF, in verbis:
“e) não será promovido o juiz que, injustificadamente, retiver autos em seu poder além do prazo legal, não podendo devolvê-los ao cartório sem o devido despacho ou decisão;”
Observa-se, porém, que há dificuldade para fazer valer essa norma, à medida que os tribunais demonstram altas doses de compreensão com a demora ocasionada pelos juízes.
No mesmo sentido, o art. 801 do Código de Processo Penal brasileiro estabelece que: “Findos os respectivos prazos legais, os juízes e os órgãos do Ministério Público, responsáveis pelo retardamento, perderão tantos dias de vencimentos quantos forem os excedidos”, sendo aplicável também pelo excesso de prazo isolado a cada ato processual, não demandando a superação global. Até em casos de o habeas corpus ser considerado prejudicado, pela revogação da prisão ou pela absolvição do acusado, seria possível cogitar tal responsabilização.[27]
Contudo, tal previsão nunca foi aplicada, especialmente hoje, em razão da vedação da irredutibilidade salarial constitucionalmente assegurada a essas autoridades, constante do art. 95, III, e 128, §5º, I, c, da CF.