Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Os princípios constitucionais tributários e o poder constituinte derivado

Exibindo página 3 de 4
Agenda 02/07/2004 às 00:00

IV – Aspectos Práticos – Análise de Recentes Alterações Constitucionais em Matéria Tributária

             As teses até o momento apresentadas são suficientes para que possamos realizar uma breve análise das recentes alterações constitucionais em matéria tributária, promovidas especialmente pelas emendas constitucionais n° 03/93, 29/2000, 33/2001 e 42/2003.

             Inicialmente, temos que as emendas constitucionais n° 29, de 13 de setembro de 2000 e n° 42, de 19 de dezembro de 2003, apresentam, como característica comum, inovação sobre um tema muito discutido no direito pátrio, e já mencionado na introdução de nosso trabalho, qual seja, a possibilidade da instituição progressiva do IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) e do ITR (Imposto Territorial Rural).

             A emenda n° 29 apresentou em seu artigo 3° nova redação a ser conferida ao artigo 156 da Constituição Federal de 1988, que em sua versão original, possuía o seguinte conteúdo:

             "Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:

             I – propriedade predial e territorial urbana;

             § 1º O imposto previsto no inciso I poderá ser progressivo, nos termos de lei municipal, de forma a assegurar o cumprimento da função social da propriedade."

             A fim de melhor interpretar o citado comando constitucional, necessário analisar em conjunto o artigo 182 da Carta Constitucional:

             "Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público Municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

             § 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.

             § 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.

             § 3º As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro.

             § 4º É facultado ao Poder Público Municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:

             I – parcelamento ou edificação compulsórios;

             II – imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressiva no tempo;

             III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais."

             Desde o advento da Constituição Federal de 1988 muito se discutiu, doutrinária e jurisprudencialmente, sobre da possibilidade de instituição de alíquotas progressivas de IPTU - e outros impostos reais como o ITU - em razão do valor venal do imóvel ou de outras características dos imóveis, diversas de sua função social prevista no Plano Diretor dos respectivos municípios.

             Pela leitura dos comandos constitucionais supracitados pode-se verificar que o texto constitucional, antes da Emenda Constitucional nº 29, apenas previa a possibilidade de alíquotas progressivas para o IPTU numa relação com o cumprimento da função social da propriedade, o que somente poderia ocorrer mediante a verificação da destinação do imóvel em consonância com o previsto no Plano Diretor da cidade e nos termos do previsto em lei federal (artigo 182, § 4º da CF).

             Mister destacarmos, portanto, que existia, sim, a permissão constitucional de aplicação de alíquotas progressivas ao IPTU, mas, diferentemente do entendimento adotado por inúmeros municípios brasileiros, tratava-se exclusivamente da progressividade extrafiscal, com vistas ao atendimento da função social da propriedade privada, adstrita, ainda, aos termos do respectivo plano diretor.

             Não obstante a clareza do texto constitucional foi travada intensa discussão jurídica a fim de que fosse admitida a possibilidade de outro tipo de progressividade, diversa da previsto expressamente na Constituição, isto é, a progressividade das alíquotas de acordo com o valor venal do imóvel, de tal maneira que quanto maior fosse o valor venal maior seria a alíquota do IPTU, ou ainda a progressividade de acordo com a destinação, ou de acordo com o tipo de edificação do imóvel.

             Certo é que, antes do advento da Emenda Constitucional 29 tal discussão foi praticamente encerrada, com inúmeras decisões do Pleno do Supremo Tribunal Federal que, por maioria (quase que por unanimidade, pois só houve um voto contrário), entendeu ser vedada constitucionalmente a adoção de alíquotas progressivas do IPTU.

             Tal entendimento, aliás, restou cristalizado na edição da recente Súmula 668, "in verbis":

             "Súmula 668 - É inconstitucional a lei municipal que tenha estabelecido, antes da Emenda Constitucional 29/2000, alíquotas progressivas para o IPTU, salvo se destinada a assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana". Grifamos.

             Fora utilizado como paradigma para a edição da mencionada Súmula, entre outros Acórdãos, a decisão do Pleno do Supremo Tribunal Federal que, por maioria (RE 153.771-0/MG), entendeu que é vedada constitucionalmente a adoção de alíquotas progressivas do IPTU, entendimento este reiterado no julgamento do RE 204.827-SP:

             Recurso Extraordinário nº153.771-0

             "EMENTA: IPTU. PROGRESSIVIDADE.

             -No sistema tributário nacional é o IPTU inequivocamente um imposto real.

             -Sob o império da atual Constituição, não é admitida a progressividade fiscal do IPTU, quer com base exclusivamente em seu artigo 145, § 1º, porque esse imposto tem caráter real que é incompatível com a progressividade decorrente da capacidade econômica do contribuinte, quer com o arrimo na conjugação desse dispositivo constitucional (genérico) com o artigo 156, § 1º (específico).

             - A interpretação sistemática da Constituição conduz inequivocamente à conclusão de que o IPTU com finalidade extrafiscal a que alude o inciso II do § 4º do artigo 182 é a explicação especificada, inclusive com limitação temporal, do IPTU com finalidade extrafiscal aludido no artigo 156, I, § 1º.

             - Portanto, é inconstitucional qualquer progressividade, em se tratando de IPTU, que não atenda exclusivamente ao disposto no artigo 156, § 1º, aplicado com as limitações expressamente constantes dos § § 2º e 4º do artigo 182, ambos da Constituição Federal.

             Recurso extraordinário conhecido e provido, declarando-se inconstitucional o subitem 2.2.3 do Setor II da Tabela III da Lei 5.641 de 22.12.89, no município de Belo Horizonte. (D.J.U. 1 de 5.9.97, p. 41892)"

             Recurso Extraordinário n° 204.827-5/SP

             "EMENTA: MUNICÍPIO DE SÃO PAULO. TRIBUTÁRIO. LEI N° 10.921/90, QUE DEU NOVA REDAÇÃO AOS ARTIS. 7°, 87 E INCS. I E II, E 94 DA LEI N° 6.989/66, DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO. IMPOSTO SOBRE A PROPRIEDADE PREDIAL E TERRITORIAL URBANA. TAXAS DE LIMPEZA PÚBLICA E DE CONSERVAÇÃO DE VIAS E LOGRADOUROS PÚBLICOS.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

             Inconstitucionalidade dos dispositivos sob enfoque.

             O primeiro, por instituir alíquotas progressivas alusivas ao IPTU, em razão do valor do imóvel, com ofensa ao art. 182, § 4°, II da Constituição Federal, que limita a faculdade contida no art. 156, § 1°, à observância do disposto em lei federal e à utilização do fator tempo para a graduação do tributo.

             (...)"

             Assim é que, o princípio constitucional que fundamenta tais decisões pode ser externado na seguinte sentença: "É vedada a progressividade do IPTU (e demais impostos reais), salvo, quanto a este (IPTU), se destinada a assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana".

             Desta feita, a única conclusão a que nos pode conduzir o raciocínio lógico é a que sendo a vedação da progressividade fiscal dos impostos reais um princípio extraído da constituição federal (admitida tão somente a progressividade extrafiscal do IPTU), tal princípio nada mais faz do que expandir os direitos fundamentais dos contribuintes pátrios, sendo imperioso incluí-lo sob o manto da perenidade, característico das cláusulas pétreas, conforme expressamente previsto no artigo 60, § 4°, IV da Constituição Federal.

             Resta certo, portanto, quer ao tentar suprimir tal garantia, cometeu o constituinte derivado o insanável vício da inconstitucionalidade, com a edição da emenda constitucional n° 29/2000 que expressamente revogou o princípio (direito fundamental), previsto na redação original da Carta Magna de 1988.

             Com a nova redação, o artigo 156 da Constituição Federal passou a ter a seguinte redação:

             "Art.156 (...)

             § 1º Sem prejuízo da progressividade no tempo a que se refere o art. 182, § 4º, inciso II, o imposto previsto no inciso I poderá:

             I – ser progressivo em razão do valor do imóvel; e

             II – ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel."

             O que se viu, portanto, com a edição da mencionada emenda foi uma tentativa de burlar as incontáveis decisões do Pretório Excelso que sabiamente asseguravam ao contribuinte o gozo do princípio que veda a progressividade fiscal dos impostos reais, dado seu nítido caráter de direito fundamental, e, conseqüentemente, de cláusula pétrea, bem como outros princípios, os quais foram expressamente utilizados para fundamentar tal entendimento, como os princípios da isonomia, da capacidade contributiva, etc.

             Sobre o assunto, pertinente trazer a lume trechos de julgado do Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, Apelação N° 1.138.141-0,:

             "Ementa – Progressividade do IPTU cobrado pela Municipalidade de Campinas, referente ao exercício de 2001 – Ementa 29 em vigor não legitima o lançamento com base em norma anteriormente inconstitucional – Inconstitucionalidade, conforme jurisprudência da Suprema Corte – Progressividade do citado imposto com base no valor do imóvel tributado – Ofensa ao art. 182, § 4°, inciso II, da Constituição Federal, o qual limita a faculdade contida no art. 156, § 1°, quanto à obediência do disposto em lei federal e à utilização do fator tempo para a graduação do tributo.(...)

             E, é certo que, no caso dos autos, os descontos escalonados do IPTU, incidentes sobre a sua alíquota possuem nítido escopo de progressividade às avessas, ou seja, parte de um patamar para conceder reduções diferenciadas, com base nos critérios da Lei Municipal que instituiu os descontos.

             Ao assim proceder, acaba por efetuar tratamento desigual de forma escalonada, portanto, progressiva, dentre os contribuintes, sem que se tenha amparado como já demonstrado na Constituição a norma legal que criou os descontos. (...)

             Mas, não bastasse isso, tem-se o entendimento de que a Emenda 29 da CF de 88, não pode validar essa lei municipal, pois essa Emenda é portadora de inconstitucionalidade introconstitucional.

             É que cuida de matéria que somente poderia ser deliberada pelo poder constituinte originário e não pelo derivado.

             Com efeito. A municipalidade impetrada sustenta que referida Lei Municipal preexistente à Emenda Constitucional n° 29 que alterou a redação primitiva do parágrafo 1° do artigo 156, da Carta Magna de 88, teria sido revigorada constitucionalmente por essa mencionada Emenda.

             É certo que, com essa nova redação trazida pela citada Emenda, foi equivocadamente excluída a limitação da progressividade do IPTU ser com fincas apenas na função social, para permiti-la, também, com base no valor, uso e localização do imóvel tributado.

             Dessarte, como já explicitado nesta decisão, a progressividade verberada na impetração é de natureza fiscal, sem cunho de punição decorrente do descumprimento da função social do imóvel. (...)

             Em suma, é cristalino o entendimento jurisprudencial quanto a ser indevida a tributação pelo patrimônio do contribuinte para os tributos de natureza real, e, portanto, se a lei isso não observa, e se a própria emenda constitucional isso também não observa, tem-se, inconstitucionalidade, como já dito, introconstitucional, posto colidir a progressividade fiscal do IPTU erigida pela citada emenda constitucional com os princípios constitucionais pétreos e basilares atrás mencionados." (Grifamos).

             E, ainda, o Acórdão exarado na Apelação Cível n° 1.136.483-5:

             "TRIBUTO – IMPOSTO PREDIAL E TERRITORIAL URBANO – Município de São Paulo – Exercício de 2002 – Lei Municipal n° 13.250/2001, que instituiu desconto ou acréscimo calculado sobre o valor venal de imóvel – Hipótese em que ocorre a progressividade – Legislação baseada na Emenda Constitucional n° 29/2000 – Ocorrência de alteração de cláusula pétrea – Inadmissibilidade – Inobservância da função social da propriedade – Ilegalidade reconhecida – Recurso provido. (...)

             Primeiramente é de se definir que se constitua o IPTU em tributo de natureza real, conforme ensina o Ministro MOREIRA ALVES em RE n° 153.771/MG, quando conclui:

             ‘Ora, no Sistema Tributário nacional, é o IPTU inequivocamente um Imposto real, porquanto tem ele como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de imóvel localizado na zona urbana do Município, sem levar em consideração a pessoa do proprietário, do titula do domínio útil ou do possuidor, tanto assim que o CTN ao definir o seu fato gerador e sua base de cálculo não leva em consideração as condições da pessoa do sujeito passivo’.

             Em razão da definição trazida acima é de se entender que o fato gerador do IPTU não venha a se constituir na renda do contribuinte, mas no fato de que o imóvel tributado existia e, esteja localizado em área urbana do Município, daí porque o entendimento de que tenha este caráter real, motivo pelo qual a mensuração da capacidade do contribuinte, como instituído pela Emenda Constitucional n° 29, está plenamente adotada pela Lei Municipal n° 13.250/2001, não se mostre adequada à realidade, não merecendo, assim, ser imposta ao contribuinte que, ao correr dos anos, vem sendo excessivamente penalizado pela sede tributária do Estado. (...)

             Resta evidente que a municipalidade de São Paulo ao instituir a progressividade com base no valor venal do imóvel, não observou a função social da propriedade, baseando-se, exclusivamente, na capacidade contributiva de cada indivíduo.

             Ademais, tem-se que as alterações ocorridas pela Emenda Constitucional n° 29/2000 e Lei Municipal n° 3.250/2001, são inconstitucionais, pois ofenderam cláusula pétrea da Constituição Federal e instituíram a progressividade sobre impostos de natureza real, quando a mesma só é possível no que tange aos impostos pessoais.

             Assim, a progressividade do IPTU é hoje tão contrária quanto era anteriormente à Emenda Constitucional n° 29/2000, sabido que uma emenda à constituição pode estar eivada de inconstitucionalidade, confirme já reconhecido pelo pretório excelso no julgamento do ação direta de inconstitucionalidade n° 939-7 – Tribunal Pleno – DJ – 18/03/94 – JSTF – 186/69" (grifamos).

             Ademais, mister ser faz destacar que como corolário lógico da violação ao princípio que veda a progressividade fiscal dos impostos reais, a emenda constitucional n° 29, ao possibilitar que o IPTU seja progressivo em razão do valor venal do imóvel, violou outros princípios constitucionais, quais sejam, os da capacidade contributiva e da isonomia.

             Assim é que, se a progressividade é própria dos impostos pessoais, isto ocorre porque se considera uma série de circunstâncias relativas à pessoa do contribuinte e que permite distingui-lo dos demais que se encontram em situação distinta bem como permite que pessoas numa mesma situação sejam atingidas da mesma forma pela incidência tributária.

             A relevância prática de tal distinção implica em que, ao se determinar a incidência de alíquotas maiores para imóveis com valores venais maiores, só se considera o imóvel isoladamente e não o conjunto patrimonial do contribuinte. Esse fato ocorre porque se pretende utilizar um instrumento próprio de impostos pessoais num imposto real.

             Daí que provavelmente existirão muitas situações que ferem o princípio da igualdade, de tal forma que duas pessoas que possuam bens patrimoniais no valor, por exemplo, de R$ 100.000,00 pagarão IPTU diversos, se uma delas tiver um único imóvel no valor de R$ 100.000,00 pagará valor muito maior do que a outra que possui 10 imóveis no valor de R$ 10.000,00 cada um.

             Por esse singelo raciocínio já se depreende, sem maiores divagações, que a emenda constitucional 29/2000, no que tange à imposição da progressividade do IPTU, viola outro direito e garantia individual fundamental da Constituição que é o princípio da igualdade, argumento que, aliás, também serviu de fundamento para as decisões do Primeiro Tribunal de Alçada Civil, conforme se aduz da leitura dos trechos suso transcritos.

             Conclui-se pelos argumentos até aqui aduzidos que tanto a Emenda Constitucional n° 29/00 que acrescentou ao parágrafo 1º do artigo 156 o inciso I, como a legislação municipal – Lei 11.111/01 – que permitiu a progressividade do IPTU, ainda que as avessas, é inconstitucional por ferir cláusula pétrea, merecendo ser extirpada do ordenamento jurídico pelo Pretório Excelso.

             O mesmo se diga em relação a emenda constitucional n° 42, de 19 de dezembro de 2003, que expressamente introduziu em nosso direito positivo a possibilidade de instituição progressiva do Imposto Territorial Rural, incluindo o § 4° ao artigo 153 da Carta Magna de 1988, "in verbis":

             "Art. 153... .................

             § 4º O imposto previsto no inciso VI do caput:

             I - será progressivo e terá suas alíquotas fixadas de for-ma a desestimular a manutenção de propriedades improdutivas;"

             Em que pese a patente tentativa de "reforma" da Constituição Federal, resta certo que tal alteração igualmente feriu o já citado princípio da vedação à instituição progressiva de impostos reais, entre os quais inclui-se, seguramente, o Imposto Territorial Rural (ITR), razão pela qual o mencionado parágrafo quarto, incorporado ao artigo 153 da lei Maior, deverá ser suprimido de nosso ordenamento jurídico positivo, por meio do Poder Judiciário.

             As hipótese mencionada já seriam bastantes para demonstrar a utilização da tese segundo a qual os princípios constitucionais tributários, que exteriorizem direitos e garantias individuais, podem ser perfeitamente utilizados como instrumentos hábeis para promover o controle de constitucionalidade das Emendas Constitucionais envolvendo matéria tributária, mas, não são os únicos.

             Podemos mencionar, ainda, a alteração constitucional promovida pela Emenda nº 03/93, que acrescentou o § 7º ao artigo 150 da Magna Carta, positivando, em nível constitucional, a chamada "substituição tributária para frente", que se verifica quando a lei atribui ao sujeito passivo da obrigação tributária o dever de recolher o imposto ou contribuição, cujo fato gerador ainda não ocorreu, mas deve ocorrer posteriormente.

             Neste caso, poderíamos invocar a ofensa de direitos e garantias individuais consubstanciados em princípios constitucionais tributários já mencionados como os da igualdade, da segurança jurídica e da capacidade contributiva, como fundamento para o questionamento da citada Emenda.

             Não poderíamos deixar de citar, como último exemplo, a alteração promovida pela Emenda Constitucional nº 33, de 11 de dezembro de 2001, que alterou a redação anteriormente conferida à alínea "a" do inciso IX, § 2º, art. 155 da Constituição Federal, por meio da qual se pretendeu incluir todo e qualquer bem ou mercadoria importados do exterior no âmbito de incidência do ICMS-Importação, cuja abrangência, segundo entendimento reiterado do Supremo Tribunal Federal antes da malfadada Emenda, não alcançava as pessoas físicas e jurídicas que não fossem contribuintes habituais do imposto.

             Ocorre que, segundo respeitável doutrina, a mencionada alteração constitucional implicou em patente violação ao princípio da não-cumulatividade do ICMS (art. 155, § 2º, I, CF), haja vista ser direito individual do contribuinte a possibilidade de compensar o que for devido em cada operação de circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores, direito que não poderá ser exercido pela pessoa física ou jurídica que não seja contribuinte habitual do imposto, posto que esta, por não praticar outras operações, não poderá se creditar do que pagou.

             Desta feita, o princípio da não-cumulatividade do ICMS, verdadeira cláusula pétrea Constitucional, não pode ter seu alcance diminuído ou, o que é pior, ser efetivamente extirpado, mesmo que para tanto se valha o Poder Legislativo de Emenda Constitucional.

             A importância deste princípio exsurge com meridiana clareza na doutrina do Professor Sacha Calmon Navarro Coelho (15):

             "O princípio da não-cumulatividade é praticamente universal, sendo adotado pelos países latino-americanos e por todos os países da Unidade Européia. (...)

             Em rigor, o sistema de não-cumulatividade repousa em um princípio fundamental: o de que se deve deduzir do imposto exigível em cada operação aquele imposto que gravou os elementos do preço (créditos financeiros).

             Somente a compensação total dos impostos pagos na aquisição de insumos, produtos intermediários, máquinas e demais bens do ativo fixo possibilita a não-cumulação, a competitividade dos preços e a desoneração total do produtor ou comerciante. (...)

             Apesar de o art. 155, § 2°, XII, ´´c´´, estabelecer que cabe à lei complementar disciplinar o regime de compensação do imposto, é claro que a regulamentação infraconstitucional permitida não poderá restringir, alterar ou prejudicar o princípio da não-cumulatividade, que na própria Constituição tem ampla guarita. (...)

             A Constituição manda considerar todos os créditos suportados pelo contribuinte relativamente às operações anteriores. Tais créditos serão dedutíveis do imposto devido. A compensação se dá por período. Assim, o princípio da não-cumulatividade, tal como formulado na Constituição, não comporta nenhuma restrição, sendo com ela incompatível qualquer limitação que imponha o direito à compensação de mercadoria a mercadoria e demais reduções opostas em convênios interestaduais ou pela legislação infraconstitucional, aí incluída a Lei Complementar n° 87/96".

             A violação ao princípio ocorre ao pretender-se, com a nova redação dada ao texto constitucional, estender a sujeição passiva do tributo com o fito de alcançar aqueles que não são contribuintes do ICMS, ou seja, pessoas físicas ou jurídicas que não se enquadram na categoria de comerciantes, industriais, produtores e prestadores de serviços de transporte e telecomunicações.

             De fato, não se pode olvidar que os contribuintes do ICMS sempre têm assegurado o direito de creditar-se do imposto pago nas operações anteriores, deduzindo tal valor na operação subseqüente. A expressão "compensando-se o que for devido..." constante do texto constitucional confere-lhes o direito de abater, do montante de tributo a pagar, tudo o que foi recolhido, a título de ICMS, nas operações ou prestações anteriores.

             Ocorre que, ao ser cobrado o ICMS daqueles que não atuam no comércio, indústria ou prestação de serviços, implementa-se verdadeiro óbice para que, na prática, estes possam se creditar ou abater o ICMS incidente nas operações posteriores, simplesmente porque, pelo fato de não exercerem tais atividades, jamais haveria crédito a ser abatido.

             Assim, esta garantia esvai-se quando, sob pretextos vários (salvo os apontados no próprio art. 155, § 5º, II, da mesma Lei Maior), é negada aos contribuintes a faculdade constitucional de realizar in concreto, tal abatimento.

             Idêntico é o posicionamento de Marcelo Viana Salomão (16):

             "... não sendo contribuinte do ICMS a pessoa (física ou jurídica) não tem com o que abater o crédito que teria surgido com a importação. Assim, estaríamos realmente diante de uma violação à Garantia Expressa e obrigatória contida no Princípio da Não-cumulatividade do ICMS em todas as suas Incidências.

             Se se aceitasse tal incidência para não contribuintes, teríamos então uma indisfarçável violação ao Princípio da Não-cumulatividade, isto é, um tributo com efeito cascata (cumulativo) e, além disso, monofásico. Vale dizer, deformação total do ICMS desenhado na Carta Magna.

             Assim, face à vinculação absoluta do ICMS ao Princípio da Não-Cumulatividade, por ser um dos princípios específicos que lhe disciplinam, sua incidência só pode se dar sobre pessoas aptas a desfrutar da garantia contida no princípio, ou seja, permitindo o sistema de crédito e débito per ele estabelecido. (...)

             É que, como dito neste trabalho, não há como se pensar na exigência da ICMS pelos Estados sem o respeito ao Princípio da Não-Cumulatividade, sob pena de notória inconstitucinalidade. (...)

             Sendo a não-cumulatividade um princípio, que traz garantia a todo cidadão/contribuinte do ICMS (de que ele não será cumulativo) em todo território nacional, podemos afirmar, com base no art. 60, § 4°, IV da Constituição, ser ele também cláusula pétrea.

             Para nós, portanto, face às premissas levantadas já no início deste artigo, nenhuma lei neste País, seja de que nível for, pode alterar, burlar, reduzir o alcance de um princípio constitucional, seja ele fundamental, geral ou específico.

             A questão em exame gera, aparentemente, um pouco mais de complexidade pelo fato de a alteração ter vindo via Emenda Constitucional. É que estamos acostumados com a triste realidade de cotidianamente, no Brasil, a legislação infraconstitucional desrespeitar a Constituição.

             Em termos de ICMS mesmo, temos vários exemplos recentes, onde leis complementares veicularem terríveis transgressões às regras constitucionais deste impostos, como, por exemplo, a autorização para tributar o envido de mercadoria de matriz para filial no mesmo Estado, ou, ainda, a vedação/mitigação do creditamento de bens do ativo, energia elétrica.

             Nestes casos, é muito mais tranqüilo se demonstrar o desrespeito à Constituição, porém, no presente caso, estamos diante de uma regra constitucional inconstituicional.

             O raciocínio é o mesmo, mas implica a aceitação das premissas levantadas e defendidas no decorrer deste estudo: a hierarquia entre as normas constitucionais.

             Respeitada esta premissa, natural concluirmos que é impossível juridicamente, no Brasil, que uma regra oriunda do Poder Constituinte Derivado possa desrespeitar um princípio constitucional estabelecido pelo Poder Constituinte Originário. (...)

             Cumpre acrescentar mais um dado de extrema relevância: a Carta Magna já criou as exceções ao Princípio da Não-cumulatividade em seu próprio corpo originário. Isto é, ciente de que um Princípio instituído pelo Poder Constituinte Originário só poderá ter suas exceções criadas pelo mesmo poder, a Assembléia Constituinte estabeleceu expressamente as duas únicas exceções a este princípio, a saber as hipóteses de não-incidência e isenção" Grifos postos.

             Enfim, ao procurar alcançar a importação de bens realizada por pessoa física ou jurídica que não seja contribuinte habitual do imposto, independentemente da finalidade, incorreu o legislador em flagrante inconstitucionalidade, ante a nítida ofensa à cláusula pétrea consubstanciada no princípio da não-cumulatividade, intrínseco ao ICMS, cuja ocorrência restará afastada em razão da impossibilidade prática de se sua efetivação.

             Acreditamos que os exemplos supra mencionados, embora envolvam apenas pequena parcela das várias alterações constitucionais promovidas por meio da constante edição de Emendas Constitucionais, são suficientes para demonstrar a importância da utilização dos princípios constitucionais tributários como fundamental instrumento dos operadores do direito na fiscalização da legitimidade da atuação do Poder Constituinte Derivado Reformador, haja vista possibilitarem a retirada de nosso ordenamento jurídico, das normas que não respeitem tais princípios.

Sobre o autor
Paulo Andreatto Bonfim

advogado em Campinas (SP), especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, pós-graduando em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BONFIM, Paulo Andreatto. Os princípios constitucionais tributários e o poder constituinte derivado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 360, 2 jul. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5416. Acesso em: 23 nov. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!