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Bem de família

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Agenda 11/07/2004 às 00:00

8. Bem de família involuntário e o regime da lei 8.009/90.

8.1. Constitucionalidade da lei 8.009/90.

Quando da promulgação da lei 8.009/90, questionou-se a sua constitucionalidade, em face do princípio da sujeição patrimonial do devedor à execução da dívida, que deflui do art. 5º, LXVII, CF/88, que proíbe a prisão por dívidas (exceto nos casos de dívida de alimentos e depositário infiel). De fato, o patrimônio do devedor é a garantia do credor.

Entretanto, o próprio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já decidiu pela constitucionalidade da lei, pois seu intuito é a proteção da família, base da sociedade e merecedora da proteção especial do Estado, segundo o art. 226, caput, da própria CF/88. Assim, a lei 8.009/90 está no âmbito dessa proteção especial à família devida pelo Estado. Na verdade, a lei não está protegendo o devedor, mas a família. Também entende dessa forma a doutrina majoritária.

8.2. Forma de instituição.

O bem de família involuntário provém da lei 8.009/90, que regulamenta especialmente essa espécie em oito artigos. Assim, pode-se considerar o estado como o próprio instituidor. A instituição não depende de ato de previdência do proprietário, não depende da ação deste. Essa pode ser considerada uma segunda distinção entre as espécies bem de família voluntário e involuntário.

Considerando-se que o Estado, através da lei, institui o bem de família involuntário, tem-se como conseqüência que este não pode ser estabelecido por terceiros. Além disso, como a lei é pública, não há também a exigência de registro para a validade da instituição, a validade é automática.

8.3. Objeto do bem de família involuntário.

Segundo o art. 1º, p.u., da lei especial, os objetos do bem de família involuntário podem ser os imóveis e móveis que o guarnecem. Já o art. 2º, p.u., estabelece que no caso de imóvel locado ou dado em comodato, a proteção recai sobre os móveis que o guarnecem, de propriedade do locatário.

Vê-se, de logo, a primeira distinção entre o bem de família voluntário e o involuntário. Os bens de família móveis involuntários não são valores mobiliários, e sim mobília e utensílios domésticos. Por outro lado, a proteção do bem de família móvel involuntário não está atrelada à existência do bem de família imóvel, como está claro no parágrafo único, do art. 2º, da lei.

No caso da família possuir vários imóveis residenciais, o art. 5º, p.u., estabelece que a impenhorabilidade recai sobre o de menor valor. Contudo, a lei não exclui a possibilidade da constituição do imóvel de maior valor como bem de família voluntário. Nesse caso, prevalece o bem de família constituído voluntariamente.

8.4. Elementos essenciais para a constituição do bem de família involuntário.

8.4.1. Propriedade do bem.

Assim como acontece no bem de família voluntário, a propriedade do bem é requisito essencial para a constituição do bem de família involuntário. O art. 1º e p.u., da lei especial, estabelecem que o imóvel deve ser próprio e os móveis devem estar quitados.

Não haveria necessidade da menção expressa da lei sobre a propriedade, pois, logicamente, se o bem não for de propriedade do devedor, não pode responder por suas dívidas.

8.4.2. Destinação do bem.

Os arts. 1º e 5º, da lei 8.009/90, são expressos ao afirmar que a destinação do imóvel deve ser a residência da família, assim como ocorre no bem de família voluntário.

Discute-se na doutrina a possibilidade de existir bem de família involuntário no caso de executado que tenha destinado imóvel residencial para a moradia do ex-cônjuge com a prole comum. Entendemos que sim, pois se resguardaria o domicílio dos filhos do devedor, sua família, sendo que o devedor deixa a residência apenas por ocorrência do desfazimento da sociedade conjugal. Essa posição também nos parece justa por estar de acordo com a finalidade do instituto.

8.4.3. A questão da solvabilidade.

Na instituição do bem de família voluntário se exige a solvabilidade para evitar que ao constituir o bem de família o devedor venha a fraudar seus credores. Como o bem de família involuntário foi estabelecido por lei, no primeiro momento da vigência da lei não se configura, em tese, a fraude aos credores, sendo que a própria lei determina que a regra se aplique inclusive às penhoras em curso quando da promulgação da lei (art. 6º).

O art. 6º usa uma terminologia imprópria porque emprega a expressão "cancelamento da execução", mas nem esta, nem o débito em si, podem ser cancelados. O que, de fato, pode ser cancelada é a penhora, para que sejam penhorados outros bens do devedor que não o que a lei passou a considerar bem de família.

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Obviamente, as penhoras que existiam àquela época eram provenientes de cobranças de débitos anteriores à lei. Assim, beneficiaram-se as dívidas anteriores à instituição, que ocorreu no momento do início da vigência da lei. A questão da solvabilidade em relação às dívidas anteriores à instituição não é, dessa forma, requisito essencial para a constituição do bem de família involuntário, o que representa uma terceira distinção em relação ao bem de família voluntário.

Grande polêmica se gerou em torno desse dispositivo porque alguns autores consideram a penhora ato jurídico perfeito e o art. 5º, XXXVI, da CF/88, proíbe a retroatividade da lei em prejuízo do ato jurídico perfeito.

Houve uma divisão da doutrina e da jurisprudência. A controvérsia está dirimida perante o STJ, o que resultou na súmula 205, que permitiu a aplicação da lei para o cancelamento das penhoras em curso quando do início da vigência da lei. Prevaleceu, então, o entendimento que priorizava a finalidade social da norma e reconhecia a penhora como ato preparatório, não autônomo, ato-meio de outro ato complexo que é a expropriação do bem, este sendo o ato-fim.

Isso não quer dizer que a lei 8.009/90 não tenha meios de coibir a má-fé e a fraude a credores. A regra do art. 4º, caput e § 1º, pune os casos de aquisição de imóvel residencial mais valioso de má-fé, usando a lei para fraudar credores. Nesses casos, se o primeiro imóvel, menos valioso, ainda se encontrar em propriedade do devedor, a impenhorabilidade recairá sobre ele; mas se o primeiro imóvel foi alienado, desconstitui-se o ato para que a impenhorabilidade recaia sobre ele.

Álvaro Villaça 30 critica esse dispositivo legal por considerar que pode prejudicar o adquirente de boa-fé, sendo mais prático e mais proveitoso para o credor que se permita a penhora do imóvel de maior valor sem anular o negócio com terceiro de boa-fé.

8.5. Extensão e valor do bem.

Na lei 8.009/90 não há qualquer limitação em relação ao valor ou extensão do bem de família involuntário. Desde que haja a moradia da família, há a isenção por execução de dívidas sobre o imóvel e os móveis que guarnecem a habitação.

Não vale, nesse caso, a limitação do CC/2002 de que o valor do bem não pode ultrapassar um terço do patrimônio líquido total do proprietário para que possa se transformar em bem de família. Essa pode ser considerada uma quarta distinção entre bem de família voluntário e involuntário.

8.6. Efeitos do bem de família involuntário.

8.6.1. Impenhorabilidade e sua extensão.

O principal efeito do bem de família involuntário é a impenhorabilidade que recai sobre ele. O art. 1º, p.u., da lei 8.009/90, dispõe que o imóvel, plantações e benfeitorias de qualquer natureza, equipamentos, inclusive os de uso profissional, e móveis que guarnecem a residência estão isentos de execução por dívidas do proprietário que vive em família.

8.6.2. Exceções à impenhorabilidade.

Entretanto, a impenhorabilidade que recai sobre o bem de família involuntário também não é absoluta. Pelo contrário, nesse caso a impenhorabilidade sofre mais exceções do que no caso de bem de família voluntário, o que pode se considerar uma quinta distinção entre as duas espécies.

O art 2º exclui da impenhorabilidade os veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos. Entretanto, segundo a profa. Maria Helena Diniz 31, se o automóvel estiver a serviço da residência, como ocorre freqüentemente em propriedades rurais, também é impenhorável.

Quanto à definição do que sejam adornos suntuosos, temos que nos recorrer à jurisprudência. O STJ tem considerado que as linhas telefônicas e aparelhos eletrodomésticos que não tenham caráter de ostentação, inclusive televisão, conservam a impenhorabilidade, pois fazem parte da normalidade da residência, estando presente num número imenso de lares.

O art 3º também estabelece, em seus sete incisos, outras exceções à impenhorabilidade. Comentadas a seguir.

O inc. I exclui a impenhorabilidade se a dívida provir de créditos de trabalhadores da própria residência e respectivas contribuições previdenciárias. Considera-se como trabalhador da própria residência não apenas a empregada doméstica, mas pedreiro, eletricista e etc.

O inc. II trata da hipótese de crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou aquisição do imóvel, nos limites do contrato. Desconstitui-se a impenhorabilidade no caso para evitar o enriquecimento sem causa. Já o inc. III cita o crédito de pensão alimentícia também como exceção, pelo caráter existencial da pensão.

O inc. IV dispõe como exceção o crédito de impostos, taxas e contribuições devidas em função do imóvel. Aí se incluem as despesas de condomínio. Há a exclusão em virtude de se tratar de obrigações geradas pela própria existência da coisa, propter rem, pelas quais o próprio imóvel deve "responder".

O inc. V permite a desconstituição do bem de família para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou entidade familiar. Essa exceção se fundamenta no fato de que a instituição de bem de família legal não retira a alienabilidade do bem, sendo que, se o proprietário pode aliená-lo ou gravá-lo com ônus real livremente, não seria justo que o bem não fosse entregue em cumprimento da dívida com essa natureza.

O inc. VI permite a penhora do bem de família se o imóvel foi adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens, estabelecendo uma ligação entre direito penal e direito civil, para ressarcimento da vítima.

Mais polêmica é a exceção do inc. VII, que permite a penhora do bem de família para a satisfação de crédito decorrente de fiança concedida em contrato de locação. Aparentemente trata-se de uma incongruência, pois a fiança é, em regra, uma garantia pessoal, fidejussória, que não vincula bem específico do fiador. Mesmo a simples exibição de documentos que provem a propriedade de bens visando atestar a solvabilidade do fiador não vincula esses bens, pois para que isso seja possível deve haver toda uma formalidade específica.

Mas o que ocorre na fiança locatícia é diferente, apresenta natureza jurídica diversa, pois a lei do inquilinato (lei nº 8.245/91) permite nesse caso que se estabeleça a vinculação de um bem especifico imóvel, que fica gravado como verdadeira hipoteca na matrícula desse imóvel. Há toda uma formalidade e a concordância do fiador com a vinculação do bem específico. Adquire, assim, natureza de direito real, equiparando-se ao caso da hipoteca.

O que parece mais injusto nesse caso é que, ao perder, o fiador, o seu bem de família e exercitar o seu direito de regresso contra o afiançado, este pode opor ao fiador a exceção de impenhorabilidade do bem de família. Isso é possível porque o afiançado não vincula o bem específico, de maneira solene, ao pagamento da dívida, não recaindo sobre o mesmo o gravame de natureza real.

Esse inc. VII, acrescentado pela lei 8.245/91 (lei do inquilinato), segundo Sérgio André Rocha Gomes da Silva 32, é inconstitucional, ferindo o art. 5º, da CF/88 (princípio da isonomia), uma vez que estabelece uma distinção entre o devedor da obrigação principal e o fiador, que se vinculam pela mesma dívida. Ademais, como afirma ainda o mesmo autor, o inc. VII confere exarcebada proteção ao locador, estando em contramão com a postura atual de proteção ao hipossuficiente.

8.6.3. Benefícios da ausência da inalienabilidade.

Não há na lei 8.009/90 qualquer dispositivo determinando direta ou indiretamente a inalienabilidade do bem de família involuntário ou restringindo a possibilidade de alienação. Assim, conclui-se que o bem não fica excluído da livre disposição do proprietário, podendo este negociá-lo livremente. Pode, inclusive, o proprietário vender seu imóvel e morar de aluguel se entender que é melhor para a segurança da família, abdicando do benefício concedido pela lei.

Essa foi uma grande inovação trazida pela 8.009/90, constituindo-se numa sexta distinção entre bem de família voluntário e involuntário. Dessa forma, o proprietário não terá o seu crédito prejudicado no mercado em virtude de ter o imóvel excluído do patrimônio que responde por suas dívidas.

8.7. Extinção.

Aqui encontramos uma sétima distinção entre bem de família voluntário e involuntário. A lei 8.009/90 não especifica forma de extinção do bem de família involuntário, do seu contexto depreende-se que ele cessa automaticamente quando cessar a moradia permanente no imóvel instituído. Se no momento em que deve se efetivar a penhora não se encontrarem presentes os requisitos exigidos pela lei especial, o devedor não pode opor ao credor a impenhorabilidade do bem de família.


9. Conclusão

Hoje, no nosso sistema, coexistem dois regimes diversos para bens de família voluntário e involuntário. Este é regulado pela lei 8.009/90; aquele, pelo código civil. Inegavelmente, com a instituição do bem de família involuntário, pela lei especial, o instituto do bem de família passou a ter maior alcance do que o que tinha sob o regime do código civil.

Com a lei especial, a constituição deixou de depender da iniciativa dos chefes de família, que nem sempre tinham tal atitude de previdência ao pensar no futuro da família, sendo que a maioria não tinha nem mesmo conhecimento da norma que lhe beneficiava no código civil. Por outro lado, o bem de família deixava de ser obrigatoriamente de ser gravado pela inalienabilidade, que impedia a alienação emergencial e diminuía o crédito do proprietário, desencorajando a instituição do bem de família voluntário.

Já o novo código civil, ao estabelecer a limitação de que o bem de família voluntário, para constituir-se, deve representar no mínimo um terço do patrimônio líquido total do proprietário, acabou por limitar a instituição de bem de família voluntário a famílias mais abastadas. Vale lembrar que essa limitação não se aplica ao bem de família involuntário.

Mas mesmo com o surgimento da lei 8.009/90 e apesar da importância que todos os autores atribuem ao instituto do bem de família, é inegável a sua pouca utilização prática. A maioria dos autores liga a inutilidade prática ao fato de que o instituto está ligado à idéia de que o bem de família é um patrimônio imobiliário. E como a realidade brasileira é a de que nem todas as famílias são proprietárias de imóveis, apenas uma minoria privilegiada, o bem de família não corresponde à proteção de todas as famílias, ficando uma grande parte ao desamparo da lei, como argumenta o prof. Álvaro Villaça 33.

Concordamos, entretanto, com o posicionamento brilhante de Clóvis Beviláqua 34 que, ao defender o instituto, afirma que se o instituto não tem virtudes miraculosas como se esperava dele, não deixa de ser um certo amparo que a lei oferece à família, sendo mais uma proteção a essa instituição, e essa consideração nos deve mover em favor do instituto.

Sobre a autora
Mariana Ribeiro Santiago

Advogada. Mestre e doutoranda em Direito Civil pela PUC-SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTIAGO, Mariana Ribeiro. Bem de família. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 375, 11 jul. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5428. Acesso em: 19 dez. 2024.

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