SUMÁRIO. 1. INTRODUÇÃO. 2. Origem e finalidade. 3. Conceito. 4. Introdução do instituto no direito brasileiro. 5. Natureza jurídica. 6. Classificação: 6.1. Bem de família voluntário; 6.2. Bem de família involuntário. 7. Bem de família voluntário e o regime do CC/16 e do CC/2002. Estudo comparativo: 7.1. Quem pode instituir o bem de família voluntário; 7.2. Objeto do bem de família voluntário; 7.3. Elementos essenciais para a constituição do bem de família voluntário: 7.3.1. Propriedade do bem, 7.3.2. Destinação do bem, 7.3.3. Solvabilidade do instituidor; 7.4. Forma de constituição; 7.5. Extensão e valor do bem; 7.6. Efeitos do bem de família voluntário: 7.7.1. impenhorabilidade, 7.7.2 inalienabilidade; 7.7. Extinção. 8. Bem de família involuntário e o regime da lei 8.009/90: 8.1. Constitucionalidade da lei 8.009/90; 8.2. Forma de instituição; 8.3. Objeto do bem de família involuntário; 8.4. Elementos essenciais para a constituição do bem de família involuntário: 8.4.1. Propriedade do bem, 8.4.2. Destinação do bem, 8.4.3. A questão da solvabilidade; 8.5. Extensão e valor do bem; 8.6. Efeitos do bem de família involuntário: 8.6.1. Impenhorabilidade e sua extensão, 8.6.2. Exceções à impenhorabilidade, 8.6.3. Benefícios da ausência da inalienabilidade; 8.7. Extinção. 9. Conclusão. 10. BIBLIOGRAFIA.
1. INTRODUÇÃO.
A importância da família para o equilíbrio do ser humano é imensurável, pois é no seio familiar que o indivíduo aprende os conceitos de amor, ética, caráter, respeito ao próximo, solidariedade e etc, ou seja, aprende a viver em sociedade. É esse aprendizado que torna possível uma sociedade digna, e é por isso que se diz que a família é a base da sociedade.
E como a sociedade sustenta o próprio Estado, este tem o dever de conferir proteção especial à família, dever esse que está consagrado na própria Constituição federal de 1988, art. 226, caput. No âmbito dessa proteção especial é que são editadas as normas de proteção à família, entre elas as que se referem especificamente ao bem de família.
O bem de família está regulado no sistema jurídico nacional pelo Código Civil de 1916, pela Lei 8.009/90 e pelo Código Civil de 2002. Todas essas normas partem do pressuposto de que resguardar o domicílio da família, garantindo-lhe um teto, é fundamental para a sua segurança, evitando, conseqüentemente, sua desestruturação. Assim, o nobre objetivo dos dispositivos legais referentes a esse instituto no Brasil é a proteção da família.
O tema "bem de família", tratado superficialmente pelos manuais, encerra algumas questões controvertidas, talvez por conta da regulamentação reduzida na lei e por sua pouca utilização prática. O intuito deste estudo é justamente, além de trazer ao conhecimento do leitor as linhas gerais do instituto, elucidar esses conflitos doutrinários, instigando o debate.
2. Origem e finalidade.
O instituto do bem de família que se conhece hoje, no Brasil e no mundo tem origem no homestead americano. Em meados do século XIX se desenvolveram paralelamente nos Estados Unidos as figuras do homestead federal e do homestead estadual, este último tendo nascido no Texas. Álvaro Villaça Azevedo (1), em sua brilhante obra sobre o bem de família, é quem melhor contextualiza historicamente o instituto.
Com o final da colonização inglesa, nesse período, os Estados Unidos enfrentavam uma luta para consolidar sua independência econômica e política. Para tanto, era preciso povoar e colonizar os territórios inabitados do seu oeste. Tendo em vista esse objetivo de colonização de terras improdutivas, surgiu em 1862 a lei do homestead federal.
Instituiu-se, então, naquele país uma política de concessão de terras situadas na região oeste, com características agrícolas, às famílias que transferissem seu domicílio para as terras doadas. Dessas famílias, todavia, exigia-se que tornassem a terra concedida produtiva, para que, ao final de cinco anos, adquiririam o domínio definitivo. Essa porção de terra era denominada homestead federal, e, durante os cinco anos de cultivo da terra, o imóvel era inalienável e impenhorável.
O panorama político e econômico no Texas em meados do século XIX, por outro lado, era diverso. O Texas passava por uma crise de superpopulação, devido ao acentuado número de imigrantes que recebia em seu território. A desestabilidade econômica também era acentuada, mesmo antes da sua anexação aos Estados Unidos. Foi nessa situação que, em 1839, surgiu a figura do homestead estadual.
Com a crise que estava gerando a quebra contínua das empresas da região e a problemática conjuntura econômica, as famílias texanas estavam ameaçadas pela miséria. A lei texana veio a proteger as suas famílias do desabrigo e conseqüente desestruturação, tornando impenhorável, por qualquer execução judicial, a porção de 50 acres de terra rural ou um lote de terreno na cidade, de valor não superior a 500 dólares, habitados pelas famílias radicadas na República do Texas.
Foi com esse intuito de proteção à família que o homestead estadual se desenvolveu no Texas, espalhando-se pelos outros estados dos Estados Unidos, quando da anexação do Texas ao seu território, e, posteriormente, influenciando a adoção do instituto por outras legislações do mundo. É mais ou menos com as mesmas características que o bem de família persiste até hoje nos EUA e no resto do mundo, inclusive no Brasil, com pequenas alterações.
Pode-se, conseqüentemente, concluir que a finalidade reconhecida ao bem de família hoje no Brasil é ser mais um meio de proteção da família, garantindo-lhe, por esse meio, um teto relativamente intocável. O instituto e sua finalidade estão de pleno acordo com o próprio art. 226, caput, da Constituição Federal de 1988, que eleva a família à condição de base da sociedade e merecedora de proteção especial do próprio Estado.
3. Conceito.
Eduardo Zannoni (2), ilustre jurista argentino, professor titular de direito civil na Universidade de Buenos Aires, conceitua: "El bien de familia constituye una auténtica institución especial que puede coexistir con el régimen patrimonial del matrimonio, aunque, en puridad, opera autónomamente y se rige por normas propias. Consiste en la afectación de un inmueble urbano o rural a la satisfacción de las necesidades de sustento y de la vivienda del titular y su familia y, en consecuencia, se lo sustrae a las contingencias económicas que pudieran provocar, en lo sucesivo, su embargo o enajenación."
A lei brasileira não traz uma definição expressa de bem de família. Entretanto, oferece todos os elementos essenciais para a configuração do instituto, o que permite aos autores se utilizarem desses elementos para proceder à conceituação.
Segundo Limongi França (3), bem de família é "o imóvel urbano ou rural, destinado pelo chefe de família, ou com o consentimento deste mediante escritura pública, a servir como domicílio da sociedade doméstica, com a cláusula de impenhorabilidade".
Cabe destacar que em face do art. 226, § 5º, da CF/88, tal conceituação restou desatualizada, pois, ao estabelecer a igualdade entre homem e mulher, esse artigo coloca os cônjuges em pé de igualdade, não existindo mais em nosso direito a figura do chefe de família.
A profa. Maria Helena Diniz (4), enfatizando a finalidade do bem de família, o define como "um instituto originário dos Estados Unidos, que tem por escopo assegurar um lar à família ou meios para o seu sustento, pondo-a ao abrigo de penhoras por débitos posteriores à instituição, salvo as que provierem de tributos relativos ao prédio, ou de despesas condominiais."
Já na conceituação primorosa de Carvalho de Mendonça, bem de família seria "uma porção de bens definidos que a lei ampara e resguarda em benefício da família e da permanência do lar, estabelecendo a seu respeito a impenhorabilidade limitada e uma inalienabilidade relativa" (5).
O grande mérito desse conceito está em deixar de especificar quem é o instituidor, a forma de constituição do instituto e seu objeto, permitindo que nele se englobem todas as espécies de bem de família. Mostra-se, ainda, atualizado à nova visão constitucional de igualdade entre os cônjuges e ao alargamento do conceito de família. Outro ponto positivo está em ressaltar o caráter limitado da impenhorabilidade e inalienabilidade que incidem no caso em tela.
Também merece destaque o conceito de Álvaro Villaça (6), para quem bem de família "é o meio de garantir um asilo à família, tornando-se o imóvel onde a mesma se instala domicílio impenhorável e inalienável, enquanto forem vivos os cônjuges e até que os filhos completem sua maioridade".
Esse conceito também tem a virtude de não especificar quem é o instituidor e a forma de constituição do instituto. Todavia, peca em se referir especificamente ao bem de família imóvel, em detrimento do bem de família móvel, que surgiu no nosso sistema com a lei 8.009/90.
Embora não se mostre de boa técnica definir um instituto pela sua finalidade, vale ressaltar que é exatamente a finalidade do bem de família que o diferencia de outros bens impenhoráveis e inalienáveis.
4. Introdução do instituto no direito brasileiro.
A regulamentação do bem de família não constava inicialmente do projeto de código civil de Clóvis Beviláqua, sendo inserida durante sua tramitação no Congresso Nacional. Nesta oportunidade, muito se discutiu a respeito do melhor posicionamento para o instituto do bem de família dentro da sistemática do código. Também é merecedora de elogios a retrospectiva histórica feita a esse respeito por Álvaro Villaça (7).
Primeiramente, o instituto foi inserido na parte geral do projeto do código, no livro das pessoas, logo após a regulamentação das fundações. Após críticas veementes a esta inserção, inclusive do senador Justiniano Serpa, para quem tal ato era como se "denominasse sujeito a um predicado", o instituto foi transferido para o livro dos bens, em seguida a regulamentação dos bens fora do comércio, e assim foi aprovado o Código Civil de 1916.
De fato, de péssima técnica foi a tentativa de reger o bem de família no título das pessoas, tendo em vista que o bem de família não tem personalidade jurídica e não é sujeito de direito.
A inserção do instituto no título dos bens, dentro da parte geral do código, também foi muito criticada. Autores como o próprio Clóvis Beviláqua (8), Washington de Barros (9) e Silvio Rodrigues (10) defendiam a posição de que o melhor lugar para inserir a regulamentação do bem de família era o direito de família, devido a sua finalidade, ou, quando muito, no direito das coisas, na parte especial do código, pois as relações que regula são de caráter específico, e não genérico.
Enfático na defesa dessa tese, Washington de Barros (11) argumenta que "Bem de família é relação jurídica de caráter específico e não genérico. Seu lugar apropriado seria o direito de família, já que a finalidade do instituto é a proteção da família, proporcionando-lhe abrigo seguro".
Essa foi, mais acertadamente, a orientação que vingou no novo Código Civil, de 2002, que regula o bem de família no âmbito do direito patrimonial de família.
5. Natureza jurídica.
Espinhosa é a tarefa de precisar a natureza jurídica do bem de família. Os manuais de direito civil não tratam do assunto e a maioria dos livros específicos também não enfrenta diretamente a questão. Cabe, previamente, tentar obter resultado por um breve estudo comparativo do bem de família com outros institutos similares, para se definir, por exclusão, a sua natureza.
Não se trata de contrato, pois esse, segundo a profa. Maria Helena Diniz (12), é o acordo de duas ou mais vontades em conformidade com a lei, que visa regulamentar interesses das partes, no sentido de criar modificar ou extinguir relações jurídicas, de caráter patrimonial.
Ora, em primeiro lugar, não existem interesses conflitantes a serem apaziguados contratualmente no caso de bem de família; por outro lado, a beneficiária do instituto é a entidade familiar e, não sendo esta sujeito de direito, não possui vontade a ser manifestada, não podendo ser parte num contrato, mesmo que este seja unilateral, pois nesses também se faz necessário o acordo de vontades para a constituição.
Também não se deve confundir bem de família e fideicomisso. Naquele caso, diferente do que ocorre no fideicomisso, o instituidor goza dos mesmos direitos do beneficiário, a instituição ocorre sem sujeição a qualquer condição, por ato inter vivos e não há a possibilidade de se fixar por duas gerações.
Do mesmo modo, não se deve considerar o bem de família como condomínio, pois no momento da instituição do bem de família não se tornam os familiares co-proprietários. Por ocasião da instituição, o bem não chega a sair da propriedade do instituidor, embora assuma uma destinação específica.
Não prevalece, ainda, a tese de que o bem de família tem natureza de direito real de uso, usufruto ou habitação, sendo que nestes casos não há o interesse coletivo maior no bem que, inclusive, dificulta sua alienação, trata-se de interesse particular, diferente do que ocorre no bem de família.
O prof. Álvaro Villaça (13), que tem tese própria sobre o assunto, defende a posição de que se trata de um patrimônio especial, que, apesar de não sair do patrimônio do instituidor, diferencia-se do restante do seu patrimônio pela sua função e pela regulamentação específica a que se sujeita. Essa parece ser a posição menos nebulosa.
Não se confunda, no caso, patrimônio especial com patrimônio com afetação especial, como as fundações, pois estas têm personalidade jurídica por determinação legal expressa.
6. Classificação.
O critério que a doutrina levam em consideração para classificar o bem de família é a forma de constituição do instituto. De acordo com esse critério, o bem de família se classifica em voluntário e involuntário, sendo que o bem de família voluntário, conforme o novo código civil, pode ser móvel ou imóvel; e o bem de família involuntário, também se subdivide em móveis e imóveis.
Divergem alguns autores quanto a essa terminologia, preferindo a denominação "bem de família legal" ao invés de "involuntário", como a profa. Maria Alice Lotufo (14); ou a denominação "bem de família facultativo", ao invés de voluntário, e "bem de família obrigatório", ao invés de involuntário, como Ricardo Arcoverde Credie (15). Entretanto, o conteúdo da classificação é o mesmo.
A nomenclatura que será que será a adotada no decorrer deste estudo é a utilizada pelo professor Álvaro Villaça (16), "bem de família voluntário" e "bem de família involuntário".
6.1. Bem de família voluntário.
Bem de família voluntário, que será mais detalhadamente estudado a seguir, é o que se constitui por atitude voluntária do proprietário, como um ato de previdência no intuito de proteger sua família de oscilações econômicas futuras.
Historicamente, o bem de família voluntário surgiu primeiro, antes do bem de família involuntário. Foi regulado pelo Código Civil de 1916, nos arts. 70 a 73, e pelo Código Civil de 2002, nos arts. 1.711 a 1.722, este trazendo algumas inovações ao tema, inclusive a subdivisão da espécie em móveis e imóveis.
6.2. Bem de família involuntário.
O bem de família involuntário, que será detalhado adiante, se constitui independentemente da iniciativa do proprietário do bem, a constituição é involuntária. Está regulamentado pelos dispositivos da lei especial 8.009/90, específica para bem de família involuntário e também se subdivide em móveis e imóveis.
Historicamente, a lei 8.009/90 surgiu com o intuito de tornar o instituto do bem de família, do ponto de vista prático, mais eficiente no seu intuito de proteção à família.
No entanto, a lei 8.009/90 não revogou os dispositivos do código civil sobre o bem de família voluntário, as duas espécies coexistem. Inclusive a própria lei 8.009/90, em seu art. 5º, p.u., faz referência a possibilidade de instituição de bem de família voluntário.
Por outro lado, o novo código civil, que trata de bem de família voluntário e é posterior à lei de 1990, também não revogou a referida lei. No seu art. 1.711, o código civil de 2002 dispõe que continuam mantidas as regras da lei especial.
É possível ainda a coexistência das duas espécies de bem de família, no caso do particular instituir bem de família voluntário imóvel e, no silêncio sobre os móveis, haver aplicação a esse respeito das normas do bem de família involuntário móvel.
7. Bem de família voluntário no regime do Código civil de 1916 e do Código civil de2002. Estudo comparativo.
7.1. Quem pode instituir o bem de família voluntário.
Como dito anteriormente, a instituição do bem de família voluntário é ato de previdência do proprietário do bem visando à futura proteção da família, evitando a penhora do imóvel em que esta reside.
O art. 70, do CC/16, é expresso em determinar que quem pode instituir o bem de família é o chefe de família. Entretanto, esse artigo foi prejudicado pelo art. 226, § 5º, CF/88, que estabelece a igualdade entre homens e mulheres, o que se aplica também ao direito de família, tornando-se o art. 70 ultrapassado mesmo antes das disposições do novo código. Hoje não existe mais a figura do chefe de família.
Já segundo o CC/2002, no art. 1.711 e p.u., a instituição do bem de família cabe aos cônjuges, à entidade familiar ou terceiros. O artigo está em conformidade com o art. 226, CF/88, pois coloca os cônjuges em pé de igualdade e confere à união estável e a família monoparental o status de entidade familiar, equiparada à família tradicional.
Assim, numa interpretação sistemática do nosso ordenamento, pelo art 226, da CF/88, já se permitia que na união estável e na família monoparental também se instituísse bem de família. O novo código veio apenas reproduzir o pensamento que já se mostrava dominante na prática, o que não quer dizer, não obstante, que a questão deixou de ensejar polêmica.
A discussão ainda não foi completamente dissipada porque há quem sustente a equiparação do concubinato e da sociedade homoafetiva com a entidade familiar, o que, conseqüentemente, implicaria na possibilidade de constituição de bem de família.
No caso de concubinato, a posição que domina hoje na doutrina é que não há equiparação à união, não se tratando de família. União estável é a que permite a conversão da união em casamento, o que não é possível no concubinato. O novo código civil, ao regular a união estável, deixa claro tal distinção no art. 1.727.
Quanto à união de homossexuais, também há óbice legal, pois a CF/88 (art. 226, §§ 3º e 5º) e o código civil de 2002 (art. 1.565) legalizam apenas a união entre homem e mulher. Não se pode, assim, de acordo com a lei, considerar a união homoafetiva como entidade familiar (17).
Também se questionou na doutrina a possibilidade de instituição de bem de família voluntário no caso de avós que, com o falecimento do filho, fica com a guarda dos netos. Porém, nesse caso, não há família no sentido jurídico, pois com o casamento dos filhos e nascimento dos netos surge uma nova família da qual os avós não fazem parte.
Essa situação não muda com o falecimento dos filhos, não podendo os avós constituírem bem de família em benefício dos netos, nem mesmo na qualidade de terceiro, pois os netos órfãos sozinhos não são família. Além disso, não necessariamente os avós terão a guarda dos netos, tendo em vista que os filhos podem, por testamento, afastar os avós da tutela dos netos.
Os nubentes também não podem instituí-lo, pois antes do casamento ainda não há a família, a menos que já vivam em união estável. Os solteiros também não podem (18), pelo mesmo raciocínio, embora já haja jurisprudência concedendo esse direito a eles. Segundo a profa. Maria Helena Diniz (19), o objetivo da norma é proteger a família, não o devedor.
Efetivamente, todas as pessoas têm o direito à habitação, mas isso não implica dizer que qualquer pessoa pode constituir bem de família, pois o objetivo deste instituto, como está explícito na própria nomenclatura, não é proteger o direito à habitação, mas proteger a entidade familiar, sendo que o meio de proteção é a garantia da habitação da família. No direito pátrio, o direito à habitação pode ser alcançado de outras formas, como se vê, por exemplo, no usucapião e na locação de imóveis.
A grande inovação trazida pelo novo código sobre a legitimação para a constituição de bem de família voluntário foi a possibilidade de instituição de bem de família por terceiros, no art. 1.711, parágrafo único. Contudo, o artigo dispõe que a instituição se faça por doação ou testamento, e que só haverá eficácia se houver a concordância dos cônjuges ou da entidade familiar. Deve haver, no caso, transferência de propriedade.
Questiona-se na doutrina se o imóvel poderia voltar ao patrimônio do instituidor quando da extinção do bem de família voluntário. O art. 547, CC/2002, e art. 1.174, CC/16, estabelecem a possibilidade da estipulação de que os bens doados voltem ao patrimônio do doador se este sobreviver ao donatário. Obviamente, uma estipulação desse tipo não poderia interromper a proteção conferida a família pelo bem de família, só seria válida no caso de extinção natural do instituto (20).
7.2. Objeto do bem de família voluntário.
A questão do objeto do bem de família foi uma das principais modificações que o novo código civil imprimiu ao instituto, já que o art. 70, do CC/16, dispõe apenas sobre a proteção dos imóveis.
O art. 1.712, do CC/2002, possibilita que seja objeto de bem de família o imóvel urbano ou rural, e também valores mobiliários, cuja renda será aplicada na conservação do imóvel e no sustento da família. Deve-se entender como valores mobiliários, por exemplo, as ações ou outros investimentos que proporcionem rendimentos periódicos.
Assim, a proteção do bem móvel está vinculada à existência de bem de família imóvel, não existe isoladamente, pois o objetivo de sua constituição, como está expresso na lei, é a conservação do imóvel e sustento da família. Essa inovação, analisada isoladamente, é positiva por ampliar o campo de proteção à família, embora outras inovações do código acabem por restringir essa proteção, como se verá adiante.
A regulamentação da instituição de bens móveis está no art. 1.713 do novo CC. Esse artigo limita a constituição de bem de família móvel determinando que seu valor não poderá ultrapassar o valor do imóvel que visa resguardar.
7.3. Elementos essenciais para a constituição do bem de família voluntário.
7.3.1. Propriedade do bem.
O código de 1916 não traz disposição expressa sobre a necessidade de ser proprietário do bem para instituí-lo como bem de família. Entretanto, essa interpretação deflui do sistema, pois quem não é proprietário não pode estabelecer sobre o imóvel o gravame da impenhorabilidade e da inalienabilidade. Já o código de 2002 é expresso ao estabelecer, no art. 1.711, que se deve tratar de patrimônio próprio do instituidor.
A propriedade do bem que será instituído como bem de família por parte do chefe da família garante o direito de sua família residir no imóvel. Se o instituidor for terceiro, a propriedade deve ser transferida para os chefes da família.
Em regra, não há necessidade de outorga uxória, pois o patrimônio não chega a sair do patrimônio do casal, não havendo alienação ou gravação de ônus real. Assim, também não há interferência no regime de bens. A exceção ocorre no caso de instituição por terceiros. Neste caso deve haver outorga uxória porque haverá transferência de propriedade.
No caso de condomínio nenhum dos condôminos pode instituir o imóvel como bem de família até que se resolva o condomínio, pois haveria o benefício de uma família em detrimento dos direitos de outra pessoa e sua família.
Vale a pena relembrar que, depois de instituído como bem de família, o bem não passa ao patrimônio da família, pois essa não tem personalidade jurídica, não é sujeito de direito.
7.3.2. Destinação do bem.
Os arts. 70 e 72, do CC/16, e arts. 1.712 e 1.717, do CC/2002, são expressos em determinar que a destinação do bem de família deve ser o domicílio da família. Assim entende também a maioria dos doutrinadores.
Alguns autores não concordam, como Carvalho Santos (21). Argumenta ele que o imóvel deve se destinar ao abrigo da família quando esta necessitar e que a interpretação literal dos dispositivos legais pode prejudicar a função do instituto.
Admite, ainda, o citado autor, que pode ser mais interessante à proteção da família alugar o bem de família e viver num imóvel alugado de qualidade inferior, sendo que a qualquer momento que precisassem poderiam voltar a residir no bem de família. Entretanto, esse entendimento esbarra no texto da lei que é expresso em determinar que a destinação deve ser o domicílio.
Vale ressaltar que já há jurisprudência (22) no sentido de se considerar que "se o único bem residencial do casal ou entidade familiar está locado, servindo como fonte de renda para a subsistência da família, que passa a morar em prédio alugado, nem por isso aquele bem perde sua destinação mediata, que continua sendo a de garantia da moradia familiar." (2º TAC/SP, 10ª câm. Ag. 686144-0/4, rel. Juiz Soares Levada, v.u., j. 25.4.2201).
Questão interessante surge também no caso da união estável, pois a lei que atualmente a regulamenta não exige para sua configuração a coabitação. Mas a regulamentação sobre o bem de família determina que deve haver domicílio da entidade familiar no imóvel para que se constitua em bem de família, trata-se de uma exigência específica. Assim, na nossa opinião, no caso de união estável em que os conviventes não coabitem o mesmo imóvel não poderá se instituir o bem de família (23).
7.3.3. Solvabilidade do instituidor.
Outro requisito para a instituição do bem de família voluntário é a solvabilidade do instituidor ao tempo da instituição, o que não significa a inexistência de dívida anterior à constituição, como se compreende pela análise dos arts. 70 e 71, do CC/16, e art. 1.715, do CC/2002, sendo que esse ponto da matéria foi regulado com mais detalhadamente pelo código de 1916.
Os citados artigos estabelecem que o bem de família fica isento da execução por dívidas posteriores a instituição do bem de família, exceto em se tratando de dívida proveniente de tributo referente ao mesmo imóvel ou pagamento de taxas condominiais (essa última hipótese é uma inovação do CC/2002).
O que os dispositivos legais exigem em relação às dívidas anteriores à instituição é a solvabilidade, ou seja, podem existir dívidas anteriores desde que o instituidor tenha patrimônio suficiente para saldar essas dívidas ao tempo da constituição. O que a lei visa coibir é a fraude contra credores, por isso não se justifica negar constituição de bem de família a proprietário solvente.
Ficando caracterizada a insolvência do proprietário em relação às dívidas anteriores ao bem de família voluntário, não valerá o ato de instituição, devendo ser anulada, e a execução da dívida poderá atingir o imóvel livremente.
De acordo com esse raciocínio, nada impede sa a instituição do bem de família sobre imóvel hipotecado, pois neste caso há uma dívida anterior à instituição, só que garantida pela hipoteca, e, caso comprovada a insolvabilidade do instituidor ao tempo da instituição do bem de família, o imóvel será atingido igualmente pela execução.
Nesse sentido admitem Carvalho Santos (24) e Álvaro Villaça (25), em oposição ao pensamento de Clóvis Beviláqua (26), que afirma que o bem deve estar totalmente desonerado no momento da instituição, por isso não cabendo instituição de bem de família sobre imóvel hipotecado.
7.4. Forma de constituição.
O art. 73, do CC/16, exige expressamente que a instituição do bem de família voluntário seja feita por escritura pública, transcrita no registro de imóveis e publicada na imprensa local. Assim, conclui-se que se trata de um ato solene. A razão de toda essa publicidade é justamente prevenir os credores, já que a regra geral é que o patrimônio do devedor responde por suas dívidas (art. 5º, LXVII, da CF/88).
A matéria também está regulada nos arts. 260 a 265, da lei 6.015/73, só que esses dispositivos, mais acertadamente, exigem a precedência da publicação ao registro. A doutrina também é pacífica sobre esse entendimento, pois a razão da publicação é exatamente permitir que o possível prejudicado, tomando consciência da instituição, possa impedir o registro e a constituição definitiva do bem de família.
A lei de registros públicos só exige que se apresente ao oficial a escritura pública da instituição, que este mandará publicar se não houver dúvidas. Não exige a comprovação da existência da família ou entidade familiar, trata-se de simples declaração. A ausência de formalidade nesse sentido pode ser uma porta aberta à fraude, ao permitir que se institua como bem de família imóvel que não sirva de domicílio a uma família. Por outro lado, a exigência da prova documental prejudicaria os conviventes sem filhos, pois a união estável é completamente informal, não se comprovando por certidão como ocorre no casamento.
O novo código não disciplina a matéria, apenas, em seu art. 1.714, estabelece que o bem de família constitui-se pelo registro do seu título no Registro de Imóveis. Já no art. 1.711, o novo código inova ao dispor que poderá ocorrer a instituição também por testamento.
Álvaro Villaça (27) critica a citada inovação, pois a instituição por testamento só vigorará a partir do momento da abertura da sucessão, com a morte do instituidor. Assim, havendo insolvência, as dívidas que constituiu em vida serão aptas para desconstituir o bem de família. Como a constituição de bem de família é ato de previdência, mais razoável seria a instituição em vida, por escritura pública.
Sobre a instituição do bem de família voluntário por testamento, que também é possível no direito argentino (art. 44, da lei 14.394), Zannoni entende que "la constitución del bien de familia por testamento no puede importar lesión a la legítima de los herdeiros que, según lo dispuesto por el art. 3598, del Cód. Civil, tienen derecho a recibirla livre de gravámenes y condiciones aun contra la voluntad del testador." (28)
7.5. Extensão e valor do bem.
O CC/16 não fixa valor nem extensão para que se institua imóvel como bem de família, embora à época de sua publicação houvesse forte campanha em sentido contrário, por influência do instituto texano. Ficava, assim, a escolha do imóvel como uma questão pessoal do instituidor, devendo esse ter em mente que a constituição de imóvel de maior valor provavelmente reduziria seu crédito no mercado, pois o imóvel não mais garantiria suas dívidas.
Houve algumas tentativas posteriores ao código de 1916 de fixar valor máximo para o bem de família, mas, como a nossa economia sempre foi marcada por altos índices de inflação e mudanças de moeda, logo restava desatualizada a norma.
Enfim, a lei 8.009/90, ao regulamentar o bem de família sem qualquer restrição em relação ao seu valor ou extensão revogou todas essas normas. Ficava sendo uma questão pessoal do instituidor a escolha do imóvel, cabendo o direito desde ao mais pobre ao mais abastado. O que importa é a publicidade, o que impede a presunção de ignorância dos terceiros.
O novo CC, entretanto, na contramão dessa evolução legislativa, determinou, em seu art. 1.711, que o patrimônio destinado ao bem de família não deve ultrapassar 1/3 do patrimônio líquido total do instituidor ao tempo da instituição.
Essa regra do novo código civil não coaduna com a realidade social do nosso país, em que a maioria das pessoas não é sequer proprietária de imóveis, quanto mais ter um patrimônio em que o imóvel corresponda a pelo menos um terço do total líquido. De qualquer forma, essa restrição não vale para o bem de família involuntário, que continua vigorando normalmente sem limitação de valor.
7.6. Efeitos do bem de família voluntário.
7.7.1. impenhorabilidade.
A impenhorabilidade do bem de família pode ser considerada relativa a partir do momento em que a própria lei lhe impõe exceções.
Os arts. 70 e 71, do CC/16, e art. 1.715, do CC/2002, estabelecem que o bem de família é isento de execução por dívidas do instituidor posteriores à instituição, exceto em se tratando de dívidas de impostos referentes ao próprio imóvel e dívidas de condomínio (essa última hipótese foi acrescentada pelo novo código). A razão dessas exceções é o fato de que se tratam de obrigações propter rem, despesas assumidas pela própria existência coisa.
Igualmente, desconstitui-se a impenhorabilidade do bem de família quanto a dívidas anteriores à instituição se o proprietário era insolvente a essa época, no intuito de se evitar a fraude a credores.
Considera-se, ainda, a relatividade da impenhorabilidade tendo em vista que a própria destinação do bem como bem de família não é perpétua, existe um momento de extinção. Não possuindo mais o status de bem de família, o bem volta a ser penhorável.
7.7.2 inalienabilidade.
A inalienabilidade que recai sobre o bem de família voluntário também é relativa, pois o art. 72, do CC/16, e o art. 1.717, do CC/2002, prevêem uma possibilidade de alienação ao estabelecem que o imóvel não poderá ser alienado sem o consentimento dos interessados e seus representantes legais.
Interessados, no caso, são o cônjuge, o companheiro e os filhos menores, que são os beneficiados pelo bem de família, de acordo com o art. 70, p.u., do CC/16, e art 1.716, do CC/2002.
Ocorre que, nesse caso, o menor deverá ser representado por curador especial designado pelo juiz e deve haver a participação do Ministério Público, de acordo com o art. 387, do CC/16, e art. 1.692, do CC/2002, pois pode haver colisão entre os interesses de pais e filhos menores, ou seja, representantes e representados.
7.7. Extinção.
De acordo com o art. 70, do CC/16, e art. 1.722, do CC/2002, o bem de família se extingue com a morte de ambos os cônjuges e com a maioridade dos filhos. O novo código civil inova ao determinar que não há a extinção no caso de filhos sujeitos à curatela. Isso se aplica também à união estável, obviamente.
Deve-se observar a coexistência dos dois requisitos para a extinção do bem de família. Mesmo que não haja filhos menores, existirá o bem de família enquanto pelo menos um dos cônjuges ou conviventes sobreviver; e se os pais falecerem deixando filhos menores o bem de família existirá até que os filhos completem a maioridade.
O código civil de 2002 trouxe algumas inovações nesse sentido. O art. 1.719 estabelece a possibilidade de extinção do bem de família pelo juiz se comprovada a impossibilidade de manutenção do bem nos termos em que foi instituído. Nota-se aí um alargamento das possibilidades de extinção do bem de família.
No art. 1.721, p. u., o novo código dispõe que se a dissolução da união ocorrer por morte de um dos componentes do casal e o imóvel for o único bem do casal, o sobrevivente poderá pedir a extinção do bem de família. No caput do art. 1.721, Há a ressalva de que a dissolução da sociedade conjugal não extingue o bem de família.
Segundo o pensamento do prof. Álvaro Villaça (29), o caput do art. 1.721, do CC/2002, não se aplicaria ao caso de divórcio, pois neste caso se extingue o vínculo conjugal, deixa de existir a condição de cônjuge, só podendo, então, persistir o bem de família se houver filho menor do casal.