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Os enigmas do exame de ordem

Agenda 29/08/2004 às 00:00

"O Liberal" do último dia 23/04/2004 noticiou que a OAB/Pará, preocupada com o alto índice de reprovação do último exame de ordem, propôs a instalação de um Fórum Permanente sobre o Ensino Jurídico, com a participação de representantes dos diversos cursos de Direito, e dos centros acadêmicos, para identificar os problemas e apontar as soluções para a melhoria do ensino jurídico.

Essa iniciativa integra, na verdade, uma campanha nacional da OAB, que recentemente conseguiu sustar os credenciamentos de novos cursos jurídicos, e que pretende que a sua avaliação, o "Ranking" Nacional dos Cursos, seja aceita pelo MEC como definitiva, e não apenas opinativa, para impedir o funcionamento dos cursos por ela avaliados como deficientes.

Não resta dúvida de que o ensino jurídico precisa melhorar, precisa ser avaliado, mas essa responsabilidade cabe essencialmente às próprias Universidades e ao MEC, e não exclusivamente à OAB, como já se pretende, o que poderia permitir a utilização do exame de ordem, de duvidosa constitucionalidade, como um instrumento para a efetivação de uma interessante reserva de mercado, para os advogados já credenciados, e também para o aumento dos poderes da própria Ordem.

Assim, no intuito de contribuir para os debates desse Fórum, tomo a liberdade de apresentar alguns questionamentos preliminares.

Em primeiro lugar, quanto ao exame de ordem: 1) será essa uma forma correta de avaliar a capacidade dos bacharéis, para o desempenho das atividades de advogado? 2) será que essa avaliação pode substituir as dezenas de provas a que os alunos se submetem, durante todo o curso jurídico? 3) qual seria o índice de reprovação, se a esse exame fossem submetidos advogados, promotores, juízes, conselheiros da própria Ordem, professores de Direito, procuradores, etc., todos com dez, vinte ou trinta anos de prática jurídica, e de reconhecida capacidade profissional? 4) se em qualquer concurso jurídico existe a fiscalização da OAB, como no caso da magistratura (CF, art. 93, I) e do Ministério Público (CF, art. 129, parágrafo 3º), não deveria o exame de ordem ser fiscalizado por representantes do Judiciário, do Ministério Público, e das Universidades? 5) considerando-se que esse exame é, na verdade, um "concurso para advogado", com a peculiaridade de que não se sabe quantas vagas existem, porque é eliminatório, e não classificatório, seria possível evitar a influência, nos seus percentuais de reprovação, dos interesses corporativos da classe dos advogados e dos interesses políticos dos dirigentes da Ordem?

Em segundo lugar, quanto aos cursos de Direito: 1) deve o controle da OAB ser conclusivo, para impedir a instalação de novos cursos, ou para determinar o fechamento dos existentes, apenas em decorrência de sua avaliação discricionária, e do "Ranking" que ela publica? 2) não deveriam ser também fiscalizadas pelo MEC as Escolas Superiores da Advocacia, mantidas pela OAB, em todo o Brasil, que cobram altas mensalidades, e que já oferecem inúmeros cursos jurídicos, de preparação para o exame de ordem, de atualização, e de pós graduação? 3) como se justifica que o corpo docente dessas Escolas, que têm a mesma natureza autárquica da OAB, seja preenchido por "professores convidados", e não através de concursos públicos?

Em terceiro lugar, quanto aos objetivos do ensino jurídico: 1) o que se pretende? O estudo e a memorização de fórmulas doutrinárias, ou o estudo exegético do direito positivo, "criado" pelos legisladores e pelos juízes? 2) a simples capacidade de obter aprovação no exame de ordem? 3) ou os bacharéis precisam ter consciência crítica, e precisam ser capazes de participar dos grandes debates nacionais, para que o Brasil possa repensar, reconstruir, e – especialmente – fazer respeitar as suas instituições jurídicas?

Finalmente, quanto ao órgão fiscalizador das Universidades: 1) a OAB é um órgão de controle do exercício profissional, um sindicato, uma instituição de ensino superior, ou um grande censor, um super poder, que possui atribuições para controlar o Judiciário, o Ministério Público, o Legislativo, o Executivo, e as Universidades? 2) como poderia a OAB conciliar sua função institucional, e de conselho fiscalizador, cujo núcleo é a ética, com a função sindicalista, de defesa dos interesses dos advogados, e da sua remuneração? 3) como impedir que os interesses corporativos da Ordem e os interesses políticos de seus dirigentes prevaleçam sobre o interesse público? 4) não seria necessário que a Ordem aceitasse, definitivamente, a sua caracterização jurídica como autarquia, não apenas para gozar de isenções tributárias, mas também para se sujeitar a todas as regras constitucionais, a exemplo do controle externo e da exigência do concurso público? 5) ou será que uma instituição que nem ao menos se enquadra em nossa ordem jurídica pode fiscalizar as Universidades, o Ministério Público e a própria Justiça?

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Não resta dúvida de que a Ordem pode desempenhar um extraordinário papel no aperfeiçoamento do ensino jurídico, e que é muito importante a integração entre a academia, os alunos de direito e a OAB, mas não devemos esquecer que todas as nossas ações exigem um compromisso com a realização da Justiça e do bem comum, e que estamos todos sujeitos a um julgamento, até mesmo o Supremo.

Rui Barbosa, no pedido de habeas corpus contra Floriano, dizia aos Ministros dessa Corte: "Lembrai-vos, juízes, de que vós julgais a causa do povo, mas ele julga vossa justiça. E tal a grandeza e a miséria da vossa condição, que dele não podeis ocultar nem as vossas qualidades nem os vossos defeitos".

O mesmo se aplica a nós todos, que exercemos qualquer função jurídica, como advogados, educadores, promotores, magistrados, ou procuradores. O mesmo se aplica à Ordem dos Advogados, que a todos pretende julgar, mas não se sujeita a qualquer controle.


O Exame de Ordem em Portugal

De acordo com o art. 209 da Constituição Federal Brasileira, o ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: I - cumprimento das normas gerais da educação nacional; e II - autorização e avaliação de qualidade pelo poder público. Apesar disso, cada vez mais se fortalecem as corporações profissionais, que passam a exercer a competência constitucionalmente atribuída ao poder público, através dos exames de ordem (OAB) e dos exames de suficiência (corretores de imóveis, administradores, medicina veterinária, contadores, etc). A Ordem dos Advogados publica um "ranking" destinado a avaliar os cursos de Direito, e continua insistindo para que a sua avaliação tenha caráter conclusivo, para impedir a abertura de novos cursos, ou para fechar os que ela considerar deficitários.

Em Portugal, a situação ainda não chegou a tanto. De acordo com o professor Vital Moreira, constitucionalista de Coimbra, que gentilmente respondeu, por e.mail, aos meus questionamentos, "ultimamente a Ordem tem vindo a reivindicar uma alteração do seu estatuto legal, conferindo-lhe o poder para avaliar e credenciar os cursos de Direito (o que desencadeou a resistência das faculdades), e para estabelecer um exame obrigatório de acesso ao estágio (o que depara com a oposição dos potenciais candidatos)."

O professor Vital não concorda, absolutamente, com essas pretensões. Diz ele que não cabe às ordens profissionais avaliar os cursos universitários, e que a Ordem dos Advogados só deve poder controlar o conhecimento daquilo que ela deve ensinar, ou seja, as boas práticas e a deontologia profissional, e não aquilo que as universidades ensinam, porque o diploma oficial deve atestar um conhecimento suficiente de Direito. Na opinião do professor Vital, o exame de ordem somente poderia ser considerado constitucionalmente lícito "se não conferisse qualquer tipo de poder discricionário à Ordem, na seleção dos candidatos, de modo a garantir a objetividade, igualdade e transparência dos procedimentos, e se fosse provado que tal requisito é necessário (não basta provar que é vantajoso) para o bom exercício da profissão."

Há muito que o professor Vital defende essas idéias, conforme pode ser constatado pela leitura de seus artigos: "O Império das Corporações Profissionais", na página: http://www.fcsh.unl.pt/docentes/cceia/ordens-profis.doc, e "Mais Democracia e Transparência nas Ordens Profissionais", na página: http://www.arquitectura2003.com.pt/files/congresso/pdf/docvitalmoreira.pdf

No Brasil, o Dr. Horácio Wanderley Rodrigues publicou "O Direito Educacional e a Autonomia das Instituições de Ensino Superior", em: http://www.aprendervirtual.com/ver_noticia.php?codigo=27. Diz ele que: "(a) a OAB não possui competência legal para definir qualquer condição para o exercício do direito de ensinar e qualquer restrição à liberdade de ensinar das Instituições de Ensino Superior; (b) a própria exigência de que a OAB seja ouvida, presente no artigo 54 do Estatuto da OAB, é de constitucionalidade e legalidade discutível, tendo em vista que nem a Constituição Federal e nem as normas gerais da educação nacional se referem a essa espécie de manifestação como condição para o exercício da liberdade de ensinar. Ao lado disso, essa exigência fere o princípio da isonomia, tendo em vista que os cursos de Direito formam bacharéis e não advogados; a exigência, para ser isonômica, teria de incluir os órgãos representativos das demais profissões e carreiras jurídicas, em especial a magistratura e o ministério público; (c) a exigência de necessidade social, entendida a partir da relação entre população e número de vagas, não preenche critérios qualitativos – os únicos constitucionalmente previstos -, bem como não está inserida nas normas gerais da educação brasileira, constituindo-se em condição inexigível; (d) não há nenhuma norma no ordenamento jurídico brasileiro – nem mesmo no Estatuto da OAB – que exija a manifestação da OAB para o aumento de vagas dos Cursos de Direito. Entretanto, continua ela exigindo a sua manifestação, tendo inclusive obtido decisão judicial favorável nesse sentido, decisão essa sem nenhuma motivação sólida no campo do Direito Educacional, a demonstrar o total desconhecimento dessa área do Direito, no âmbito do Poder Judiciário."

Felizmente, não estou mais sozinho. Pode ser que agora me ouçam, e desistam dessas exigências juridicamente descabidas, que depõem contra a imagem de nossa Corporação. Se não, como diria Vital Moreira, "Quando o Estado é fraco e os governos débeis, triunfam os poderes fáticos e os grupos de interesse corporativos. Sempre sob invocação da autonomia da "sociedade civil", bem entendido. Invocação despropositada neste caso, visto que se trata de entes com estatuto público e com poderes públicos delegados. Como disse uma vez um autor clássico, as corporações são o meio pelo qual a sociedade civil ambiciona transformar-se em Estado. Mais precisamente, elas são o meio pelo qual os interesses de grupo se sobrepõem ao interesse público geral, que só os órgãos do Estado podem representar e promover".

A que ponto chegou, nos últimos 500 anos, a autonomia universitária, limitada aos interesses e às decisões das corporações profissionais. Quando os Reis de Castela receberam de Cristóvão Colombo o projeto da viagem à Índia, pela rota do Ocidente, submeteram-no à aprovação da Universidade de Salamanca.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Fernando. Os enigmas do exame de ordem. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 418, 29 ago. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5478. Acesso em: 22 nov. 2024.

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