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O delegado de polícia frente ao princípio da insignificância

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Agenda 16/01/2017 às 11:05

5. O DELEGADO DE POLÍCIA COMO GARANTIDOR DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

5.1. O INVESTIGADO COMO SUJEITO DE DIREITOS

Como bem acentua Sannini Neto (2014, p. 74), os tipos penais objetivam proteger os diversos direitos fundamentais previstos na Constituição da República. Considerando que a autoridade policial, centrada na figura do delegado de polícia, é quem comanda, no sistema processual brasileiro, as investigações preliminares que visam à apuração da ocorrência destes tipos penais, ele deve atuar como o garantidor dos direitos do investigado durante essa frase pré-processual.

De forma brilhante, ao tratar sobre o tema, Cabette (2013) expõe o que se segue:

[...] a figura do delegado de polícia como bacharel em Direito, constituindo-se em uma vantagem qualitativa da polícia brasileira em relação às alienígenas. O delegado de polícia com formação jurídica, além de possibilitar uma competente investigação no aspecto jurídico, pode funcionar como uma autoridade capaz de possibilitar uma “paridade de armas” entre acusação e defesa, pois que não será necessária a intervenção do órgão estatal acusador nessa fase, ao contrário de outros sistemas de direito comparado.

Deste modo, as investigações levadas a efeito pelo delegado de policia não podem mais ser vistas como instrumento a ser utilizado apenas para a condenação do suspeito. Pelo contrário, a autoridade policial deve atuar de maneira imparcial, buscando elementos que possam auxiliar tanto na defesa quanto na acusação, sempre com o fito de que a apuração pré-processual chegue o mais próximo possível da verdade dos fatos, garantindo-se os direitos de todos os envolvidos na investigação.

Não em outro sentido decidiu o Supremo Tribunal Federal, nos ED. Caut. MS 25.617-6/DF, de relatoria do Ministro Celso de Mello:

[...] a unilateralidade desse procedimento investigatório não confere ao Estado o poder de agir arbitrariamente em relação ao indiciado e às testemunhas, negando-lhes, abusivamente, determinados direitos e certas garantias – como a prerrogativa contra a auto-incriminação – que derivam do texto constitucional ou de preceitos inscritos em diplomas legais: (...) O indiciado é sujeito de direitos e dispõe de garantias, legais e constitucionais, cuja inobservância, pelos agentes do Estado, além de eventualmente induzir-lhes a responsabilidade penal por abuso de poder, pode gerar a absoluta desvalia das provas ilicitamente obtidas no curso da investigação policial.

Além disso, os tratados e convenções internacionais que versam sobre direitos humanos dispõem, como garantia do cidadão, que quando de sua detenção, este deva ser levado, de imediato, a presença de um juiz ou outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais, o que, no ordenamento jurídico brasileiro, equivale ao Delegado de Polícia. Isto é o que dispõe, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, em seu artigo 9º, §3º:

Art. 9º

 §3. Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência e a todos os atos do processo, se necessário for, para a execução da sentença. (grifo nosso).

De igual modo, estabelece o artigo 7.5 da Convenção Americana dos Direitos (Pacto de San Jose da Costa Rica), in verbis:

Artigo 7º

5. "Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo." (grifo nosso)

Raciocinando sobre o tema, Ruchester Marreiros Barbosa (2014) assevera que caso os tratados não reconhecessem a legitimidade de órgãos não jurisdicionais de exercerem a função jurídica de prender ou soltar, não iriam dispor sobre o direito dos presos de se socorrerem a juízes ou tribunais se as decisões daqueles órgãos em não soltar fossem arbitrárias, conforme estabelece o artigo seguinte do Pacto de San Jose da Costa Rica:

Artigo 7º

6. "Toda pessoa privada da liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida, sem demora, sobre a legalidade de sua prisão ou detenção e ordene sua soltura, se a prisão ou a detenção forem ilegais. Nos Estados-partes cujas leis prevêem que toda pessoa que se vir ameaçada de ser privada de sua liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida sobre a legalidade de tal ameaça, tal recurso não pode ser restringido nem abolido. O recurso pode ser interposto pela própria pessoa ou por outra pessoa." (grifo nosso)

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O mesmo autor cita ainda o “Conjunto de Princípios para Proteção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão – 1988” das Nações Unidas apresenta interpretação acerca do alcance da expressão “ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais”, como se transcreve, respectivamente, de seu anexo e de seu princípio 11.3, in verbis:

Para los fines del Conjunto de Principios:

a) Por "arresto" se entiende el acto de aprehender a una persona con motivo de la supuesta comisión de un delito o por acto de autoridad; b) Por "persona detenida" se entiende toda persona privada de la libertad personal, salvo cuando ello haya resultado de una condena por razón de un delito; c) Por "persona presa" se entiende toda persona privada de la libertad personal como resultado de la condena por razón de un delito; d) Por "detención" se entiende la condición de las personas detenidas tal como se define supra; e) Por "prisión" se entiende la condición de las personas presas tal como se define supra; f) Por "un juez u otra autoridad" se entiende una autoridad judicial u otra autoridad establecida por ley cuya condición y mandato ofrezcan las mayores garantías posibles de competencia, imparcialidad e independencia." (grifo nosso)

Princípio 11

1. Ninguém será mantido em detenção sem ter a possibilidade efetiva de ser ouvido prontamente por uma autoridade judiciária ou outra autoridade. A pessoa detida tem o direito de se defender ou de ser assistida por um advogado nos termos da lei.

2. A pessoa detida e o seu advogado, se o houver, devem receber notificação, pronta e completa da ordem de detenção, bem como dos seus fundamentos. (Grifo nosso) 

3. A autoridade judiciária ou outra autoridade devem ter poderes para apreciar, se tal se justificar, a manutenção da detenção. (grifo nosso)

Ora, que autoridade é essa, no ordenamento jurídico brasileiro, se não o delegado de polícia, que reúne as características da imparcialidade e independência e que tem poderes para manter ou não alguém no cárcere, quando este sujeito lhe é apresentado após a sua detenção, apresentando-lhe, se for o caso, notificação com os fundamentos de sua prisão (nota de culpa)?

Por fim, Ruchester Marreiros Barbosa analisa o Caso Vélez Loor Vs. Panamá, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, objetivando demonstrar que a interpretação aqui exposta tem consonância com a hermenêutica daquela Corte. Aqui, transcreve-se trecho da sentença, em que o Estado do Panamá foi condenado por violação a direitos humanos:

"108. Este Tribunal considera que, para satisfacer la garantía establecida en el artículo 7.5 de la Convención en materia migratoria, la legislación interna debe asegurar que el funcionario autorizado por la ley para ejercer funciones jurisdiccionales cumpla con las características de imparcialidad e independencia que deben regir a todo órgano encargado de determinar derechos y obligaciones de las personas. En este sentido, el Tribunal ya ha establecido que dichas características no solo deben corresponder a los órganos estrictamente jurisdiccionales, sino que las disposiciones del artículo 8.1 de la Convención se aplican también a las decisiones de órganos administrativosToda vez que en relación con esta garantía corresponde al funcionario la tarea de prevenir o hacer cesar las detenciones ilegales o arbitrarias, es imprescindible que dicho funcionario esté facultado para poner en libertad a la persona si su detención es ilegal o arbitraria." (grifo nosso)

Conforme o autor, o caso tratava de um imigrante equatoriano, que havia ingressado ilegalmente no Panamá, onde foi preso pela “Polícia Nacional de la Zona”. Ocorre, entretanto, que a autoridade administrativa competente para verificar a legalidade da prisão, com funções análogas a do delegado de polícia brasileiro, ratificou a condução do preso apenas 25 (vinte e cinco) dias depois, sem nenhuma fundamentação, nem comunicação ao juiz ou defensor público no período em que ficou encarcerado.

Arremata Barbosa que a Corte, ressaltou, conforme o trecho transcrito acima, “a importância da autoridade administrativa exercer a função materialmente jurisdicional de forma imediata para que o judiciário e a defensoria pudessem atuar, bem como sua prisão pelo Diretor (Delegado) fosse necessariamente fundamentada”.

Assim, verifica-se, no cotejo da legislação pátria já analisada e dos tratados e convenções internacionais, que o Delegado de Polícia é a autoridade incumbida pelo Estado para ter o primeiro contato com os fatos eventualmente delituosos, analisando-os sob a ótica jurídica, com respeito às garantias fundamentais do suspeito, possibilitando a este o seu exercício e tratando-lhe como verdadeiro sujeito de direitos.

5.2. A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PELO DELEGADO DE POLÍCIA

Sendo o delegado de polícia bacharel em Direito, que se submete a concurso público de provas e títulos com diversas fases – tais como os de ingresso à magistratura e ao ministério público –, detentor de cargo de natureza jurídica, não há qualquer óbice a sua análise acerca da incidência ou não do princípio da insignificância aos casos que são submetidos a sua apreciação, no cotidiano policial.

Ademais, por ser a autoridade que primeiro tem contato com os supostos fatos delituosos, a atuação do delegado de polícia deve se dar de forma imparcial, garantindo-se os direitos fundamentais dos sujeitos investigados (SANNINI NETO, 2014, P. 202). Possuem ainda certa margem de discricionariedade, a ser utilizada para formação de seu convencimento jurídico, como ensina Roger Spode Brutti (2013):

As autoridades policiais, por suposto, constituem-se agentes públicos com labor direto frente à liberdade do indivíduo. É da essência de suas decisões, por isso, conterem inseparável discricionariedade, sob pena de cometerem-se os maiores abusos possíveis, quais sejam, aqueles baseados na letra fria da Lei, ausentes de qualquer interpretação mais acurada, separadas da lógica e do bom senso.

Em obra doutrinária, o promotor de justiça Cléber Masson (2013, p. 36), discordando de vozes em sentido contrário, assevera ser possível a aplicação do princípio da insignificância pela autoridade policial, já que o princípio da insignificância afasta a tipicidade do fato. E conclui: “Logo, se o fato é atípico para a autoridade judiciária, também apresenta igual natureza para a autoridade policial”.

No mesmo sentido, com maestria, ensina o magistrado carioca André Nicolitt (2010, p. 130):

Com efeito, quando o Delegado de Polícia se depara com um fato que, aprioristicamente, é insignificante, verificado que a notícia de crime não procede (verifica a improcedência das informações - § 3º do art. 5º do CPP) está autorizado a deixar de lavrar o flagrante ou, simplesmente, deixar de instaurar o inquérito.

Isto ocorre porque a função do Delegado de Polícia é fazer o primeiro juízo (provisório) sobre a tipicidade. A função do Delegado de Polícia não pode resumir-se a um juízo de tipicidade legal ou formal, tendo que ser alargada ao juízo de tipicidade material e, mesmo, conglobante. Entendimento diverso retira o significado e a importância que a Constituição deu à atividade de polícia judiciária, cujas atribuições foram definidas por ela, que exigiu, inclusive, a estruturação em carreira do cargo de Delegado de Polícia.

Ainda, o desembargador e professor paulista, Guilherme de Souza Nucci (2007, p. 601) defende a mesma posição, como se vê, in verbis:

Acrescentamos, ainda, o importante aspecto relativo à constatação da tipicidade, que inspira a autoridade policial a lavrar o auto de prisão em flagrante. Prevalece, hoje, o entendimento doutrinário e jurisprudencial de ser admissível o uso do princípio da insignificância, como meio para afastar a tipicidade. Ora, se o delegado é o primeiro juiz do fato típico, sendo bacharel em Direito, concursado, tem perfeita autonomia para deixar de lavrar a prisão em flagrante se constatar a insignificância do fato. Ou, se já deu início à lavratura do auto, pode deixar de recolher ao cárcere o detido. Lavra a ocorrência, enviando ao juiz e ao Ministério Público para a avaliação final, acerca da existência – ou não – da tipicidade.

Conforme se percebe, é matéria assente na doutrina pátria a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância pelo delegado de polícia. Destaque-se, entretanto, que o reconhecimento de tal princípio não se dá apenas nas situações de suposto flagrante delito. Nada impede que a autoridade policial, após instaurar o respectivo inquérito, reconheça, no curso deste, a incidência da bagatela, deixando de indiciar o investigado.

5.3. FORMALIZAÇÃO DO RECONHECIMENTO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PELO DELEGADO DE POLÍCIA

Analisando eventual hipótese de incidência do princípio da insignificância quando de prisão-captura em flagrante, Sannini Neto (2014, p. 205) traz à baila duas formas de se formalizar o reconhecimento do princípio a tela, como se vê a seguir:

1) Ao tomar ciência dos fatos e formar o seu convencimento, a autoridade policial deve instaurar inquérito policial por meio de portaria, ouvir as testemunhas em assentada, a vítima e o conduzido em declarações; após, deve elaborar auto de exibição/apreensão/entrega, auto de avaliação de objeto e juntar uma cópia dos antecedentes criminais do imputado; a fundamentação deve ser feita de maneira simplificada no histórico do boletim de ocorrência e de forma mais detida no relatório final do procedimento investigativo.

2) Após formar seu convencimento, o delegado de polícia ouve todos os envolvidos da mesma forma adrede mencionada, mas não instaura inquérito policial (uma vez que não há crime); em seguida, todo o expediente elaborado deve ser encaminhado ao fórum por meio de ofício como peças de informação.

Entendemos ser mais adequada a segunda opção, uma vez que, ao reconhecer a atipicidade do fato, o delegado de polícia conclui pela inexistência de crime, o que inviabiliza a instauração de inquérito policial, já que este não pode servir à apuração de fato atípico. Caso haja instauração de procedimento, é possível o seu trancamento via habeas corpus.

Adicionalmente, pensamos que as peças de informação, além de serem encaminhadas ao juiz de direito, também devem ser remetidas ao Ministério Público, por ser este o titular da ação penal. Caso haja discordância do promotor quanto à incidência do princípio da insignificância, nada impede que este ofereça denúncia contra o suspeito, com base nas peças de informação remetidas ou, até mesmo, requisite ao Delegado de Polícia a instauração de inquérito policial para auxiliá-lo na formação de sua opinio delicti, sem que isto importe desrespeito ao convencimento jurídico da autoridade policial.

Por fim, há hipóteses em que afastada a situação flagrancial, a autoridade policial, ao tomar conhecimento de fato supostamente criminoso, instaura o respectivo inquérito policial e, no decorrer deste, percebe que a conduta perpetrada pelo investigado é insignificante. Nesses casos, a autoridade policial deve dar regular andamento ao feito, ouvindo os envolvidos, requisitando perícias e realizando outras diligências que julgar necessárias. Ao final da apuração, deve, fundamentadamente e diante da incidência do princípio da insignificância, deixar de indiciar o investigado, incidência do princípio da insignificância, relatando o inquérito policial e remetendo ao juízo.

Sobre o autor
Rafael Faria Domingos

É Delegado de Polícia no Estado de São Paulo. Especialista em Direito Penal e Processo Penal com Capacitação para Docência no Ensino Professor. Professor do Centro Universitário UNIFAFIBE (Bebedouro/SP) e do Centro Universitário UNIFEB (Barretos/SP), onde ministra a disciplina de Direito Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DOMINGOS, Rafael Faria. O delegado de polícia frente ao princípio da insignificância. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4947, 16 jan. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55049. Acesso em: 22 nov. 2024.

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